14 palestinos foram assassinados durante período sagrado do Ramadã

Segundo os dados levantados, violência israelense causou pelo menos 14 fatalidades notificadas na Palestina Ocupada. A Revista Carpas entrevistou Sayid Tenório e Sheik Rodrigo Jalloul para abordar o tema.

Fernanda de Melo
CARPAS
9 min readApr 28, 2023

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Manifestante palestino é detido pelo exército israelense durante confrontos com forças de segurança israelenses perto do Portão de Damasco da Cidade Velha de Jerusalém em 3 de abril de 2022 (Reprodução/Imagem: Middle East Eye)

Hamza era apenas um homem comum

como outros em minha cidade natal

que trabalham apenas com as mãos para ganhar pão.

Quando o conheci outro dia,

esta terra estava vestindo um manto de luto

em silêncio sem vento. E me senti derrotado.

Mas Hamza-o-comum disse:

‘Minha irmã, nossa terra tem um coração palpitante,

não para de bater, e suporta

o insuportável. Ele guarda os segredos

das colinas e úteros. Esta terra que brota

de espinhos e palmeiras é também a terra

que dá origem a um lutador da liberdade.

Esta terra, minha irmã, é uma mulher.

Fadwa Tuqan.

Em 1916, as potências imperiais da França e da Grã-Bretanha se reuniram em segredo para formular o acordo Sykes-Picot, que impactaria o Oriente Médio política, social e culturalmente para sempre. Os burocratas coloniais decidiram que, em vez de conceder aos povos da região o direito à autodeterminação, como inicialmente acordado, eles dividiriam o Oriente Médio entre si e iniciariam um processo de aquisição colonial sob o pretexto do Sistema de Mandatos apoiado pela Liga das Nações.

Ao dividir esses territórios contra a vontade dos povos originários locais, as forças coloniais criaram mais do que apenas barreiras físicas entre eles — elas também transformaram a cultura dos habitantes da região, de seu senso de identidade para sua língua. Após algumas decisões tomadas por pessoas que vieram de milhares de quilômetros de distância, os povos do Oriente Médio ganharam novas identidades nacionais que os separaram dos vizinhos com os quais compartilharam a região e sua cultura por séculos.

A foto acima é uma vista de Jaffa, cidade da Palestina Histórica do Mar Mediterrâneo, entre 1890 e 1900. Enquanto grande parte da cultura palestina e levantina está centrada em cidades costeiras, milhões de palestinos nunca estiveram no Mar Mediterrâneo, devido à ocupação israelense que barra o acesso.

Assim, a Palestina, como outros países, se vê há tempos em um domínio colonial, ora francês e britânico, ora israelense. No Ramadã, tiveram sua resistência reformulada, no sentido de que muitos palestinos precisam resistir às provocações das Forças de Defesa de Israel (IDF), bem como sua tentativa de avanço territorial.

A origem árabe do termo “Ramadã” significa “ser ardente”, por ser um momento de renovação da fé, da prática mais intensa da caridade, e vivência profunda da fraternidade. Neste período, é incentivada uma proximidade maior com os valores sagrados, como a leitura do Alcorão e certa frequência de orações na mesquita.

No que tange ao jejum, é comumente retratado por muçulmanos como um período de profunda reflexão acerca daqueles que vivem em fome e sede constante. Além disso, acredita-se que promove uma limpeza espiritual no sentido de promover uma profunda disciplina espiritual e moral. Há, contudo, vários fatores que podem levar um crente a não jejuar, tais como enfermidades, gravidez, lactante, menstruação, ser idoso ou ter uma doença incurável.

A ação não se limita somente à abstinência de comer ou beber, mas também de todas as coisas más, maus pensamentos ou maus atos. O jejuador deve ser indulgente se for insultado ou agredido por alguém, além de que deve evitar todas as obscenidades, ser generoso, bem mais do que os outros meses e aumentar a leitura do Alcorão.

Os muçulmanos referem-se ao Ramadã como uma prática adotada por todas as classes sociais da comunidade, servindo, também, para que os ricos saibam como é viver como os pobres vivem, os quais, durante os 365 dias do ano, frequentemente possuem apenas uma refeição diária ou nenhuma.

Fonte: Daily Sabah

Em uma entrevista exclusiva à Revista Carpas, Sayid Tenório, muçulmano xiita, historiador e vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal), conversou conosco sobre o período sagrado e a resistência palestina.

O Ramadã é o nono mês do calendário lunar islâmico, quando o Alcorão foi revelado. Em todos os dias desse mês é obrigatório o jejum, que consiste, durante esse tempo, de privar-se de comer, beber e ter relações sexuais, além de manter uma excelente conduta moral, durante o mês completo, uma vez por ano, desde a madrugada até o crepúsculo, com a intenção de se aproximar de Deus. Além disso, é um mês de reflexão, da busca pelo conhecimento, o qual é a base e o fundamento da nossa vida. Conhecimento da religião, das questões do nosso cotidiano pessoal e da sociedade, como forma de reflexão e busca de transformações positivas, de encontrar saídas para as injustiças, das violações e usurpações sofridas não apenas com muçulmanos.

É nesse mesmo período, de reflexão e solidariedade que as forças israelenses todos os anos, durante a celebração muçulmana, se aproveitam da vulnerabilidade dos árabes-palestinos e aumentam os níveis de segurança, através de mais repressão e censura.

Com seu início no dia 22 de março e fim em 21 de abril, muitos palestinos precisam conciliar adoração e luto. Menos de 24 horas após o começo do Ramadã, um jovem palestino foi brutalmente assassinado com um tiro na cabeça na Cisjordânia por forças israelenses. Do seu início até o fim, 14 palestinos foram assassinados.

Quando Israel está com um “bom comportamento ”, mais de duas crianças palestinas são mortas a cada semana, um padrão que remonta a mais de quatorze anos (CHOMSKY;PAPPÉ, 2015).

A violência entre israelenses e palestinos aumentou este ano, com ataques militares frequentes e violência por parte de colonos israelenses em meio a uma série de ataques palestinos. No início desta semana, as forças israelenses mataram um palestino durante uma operação no campo de refugiados de Aqabat Jabr, perto da cidade de Jericó, na Cisjordânia.

Este incidente aumenta o número total de palestinos mortos pelas forças e colonos israelenses desde o início deste ano para 99, incluindo 16 crianças, com seis mortes desde o início de abril.

Al-Aqsa, uma das mesquitas mais sagradas para os muçulmanos, o terceiro lugar mais sagrado no Islã, foi palco para a política de genocídio e limpeza étnica que Israel pratica no começo de abril. As forças israelenses invadiram a Mesquita, em Jerusalém Oriental, ocupada durante duas noites consecutivas, agredindo e prendendo fiéis, gerando condenação global.

Apenas dois dias depois (09/04), centenas de colonos israelenses e ultranacionalistas invadiram o local, ocupada no domingo, enquanto os palestinos foram impedidos de acessar o local. Protegidos por dezenas de policiais fortemente armados, grandes grupos de israelenses percorreram os pátios de Al-Aqsa a partir das 7h30, horário local, para marcar o feriado judaico “Pessach”. Enquanto isso, as forças israelenses agrediram palestinos que tentavam chegar ao local durante a noite para realizar a oração do amanhecer e negaram o acesso a fiéis com menos de 40 anos.

HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA

No último ano, Naftali Bennett se pronunciou publicamente, incitando o uso de porte de armas aos civis de Israel alegando que “esta é a hora de carregar uma arma’’. Neste mesmo ano, as forças israelenses mataram mais de 250 palestinos na Cisjordânia, incluindo combatentes e civis.

O ex-Primeiro Ministro parece não levar em conta, contudo, que em 2021, durante o Ramadã, um conflito entre o Estado de Israel e o povo palestino se intercalou após a tentativa de apropriação e limpeza étnica do bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, resultando em onze dias de violências fatais.

Em 2023, assim como nos últimos anos, a promessa já era de que Israel limitaria o acesso palestino à Mesquita de al-Aqsa. Já desde o primeiro dia, palestinos com idades entre 12 e 55 anos foram proibidos de entrar na mesquita.

O QUE OS MUÇULMANOS NO BRASIL TEM A DIZER?

Sayid Tenório em palestra na UFSCar Sorocaba (Reprodução: Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região)

Autor da obra “Palestina — Do mito da terra prometida à terra da resistência”, Sayid Tenório, quando perguntado sobre o papel da religião para a superação da violência na Palestina, explica:

O Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos é revelado por Deus ao Profeta Muhammad (Que a paz esteja com ele), nos diz que devemos praticar o Jihad, um termo árabe que significa “esforço”, “empenho” ou “dedicação”, no sentido do enfrentamento dos desafios colocados diante de cada um de nós. Desafios que podem ser a elevação pessoal ou a luta de resistência contra a ocupação da Palestina pelos sionistas, a luta anticolonialista do povo do Sahara Ocidental, a luta dos povos latino-americanos contra a dominação imperialista e afins. A religião islâmica trata da alma, do corpo e das sociedades.

O papel da religião, nesse sentido, estende-se ao proteger do corpo, mente e alma para muitos dos povos aflingidos pelo conflito e avanço do colonialismo. Em continuidade:

A religião islâmica é uma importante fonte de inspiração dos muçulmanos em seu esforço (Jihad) e luta constante por se tornar uma pessoa equilibrada, sociável e agente de transformações em diversos aspectos. Desde as transformações interiores, que envolve o conhecimento, o bem estar e a saúde, às transformações da realidade coletiva, como a busca por justiça e direitos. O povo palestino e outros povos do Oriente Médio, são formados por maioria de seguidores do Islã, são muçulmanos.

O Portão de Damasco, uma das principais entradas da Cidade Velha, é um ponto de encontro popular para os palestinos em Jerusalém e um lugar para se reunir e socializar. É também frequentemente palco de manifestações contra Israel. Durante o mês sagrado, multidões se reúnem do lado de fora do antigo portão — que os palestinos chamam de Bab al-Amoud — para cantar, comer e beber.

Contudo, sempre nos últimos anos, acompanhamos as forças de segurança israelenses prenderam palestinos e feriram outros apenas nas primeiros noites do Ramadã no local. São geralmente utilizados balas de aço revestidas de borracha, granadas de efeito moral, cassetetes e forças montadas para dispersar as multidões por parte da polícia israelense.

Os ataques no Portão de Damasco ocorrem em meio a tensões aumentadas e avisos de planos de colonos israelenses de invadir a Mesquita de al-Aqsa durante o mês sagrado, parte do qual coincidirá com feriados judaicos.

Sheikh Rodrigo Jallou e Padre Júlio Lancelotti ajudam a arrecadar doações para a favela do Chaparral (Imagem: Denis Vieira do Nascimento)

Em uma conversa com o Sheikh Rodrigo Jalloul, ele nos descreveu que:

O Ramadã é o mês de renovação espiritual, em que a importância da caridade — tão falada no Alcorão — é reforçada […] É o mês em que Deus cede muitas bençãos para os fiéis. É o mês do perdão, caridade, fraternidade. É o mês de reflexão sobre a fome, sobre a necessidade dos mais pobres e também de igualdade, onde todos sentam e quebram o jejum com a comida. É o mês em que vemos os valores da religião, porque o mês do Ramadã, muito mais do que pedir para si mesmo, é sobre acolher e pedir pelo próximo.

Para o líder religioso muçulmano, a religião ainda tem uma função imprescindível na busca pela resolução dos conflitos no mundo. Com derivação na palavra “paz”, o islã deve exercer essa função. Jalloul completa ainda que:

Para alcançar a paz, algumas coisas precisam ser enfrentadas, outras relevadas, buscando diálogo e acordos comuns. A religião, então, busca fazer esse intermédio […] Quando falamos da causa palestina, a religião tem um papel ainda mais importante, de fortalecer a fé para que as pessoas não desanimem, apesar da opressão. E lutem, de todas as formas, seja através da mídia, denunciando, seja através de uma resistência pelo território. A fé, a crença em Deus, na justiça de Deus, fortifica a luta pelos direitos na Palestina, no Iêmen e na Síria. Nossa religião é contra todo tipo de opressão. Se é para estar do lado dos fracos e oprimidos, preferimos do que estar ao lado dos vitoriosos.

Com o intuito de reforçar as palavras do sheikh, trago uma reflexão descrita no Alcorão para a busca da paz e da justiça social:

Mesmo do ponto de vista humano, a causa de Deus é a causa da justiça, a causa dos oprimidos.

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