22/08: Dia Internacional em Homenagem às Vítimas de Atos de Violência Baseados em Religião

A data propõe a promoção da liberdade religiosa e o direito humano de expressar sua religiosidade em público. Entretanto, a bússola da realidade mundial aponta para um caminho mais sombrio.

Laís Helena Farias
CARPAS
8 min readAug 22, 2023

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Em 28 de maio de 2019, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), através da Resolução 73/296, cria o Dia Internacional em Homenagem às Vítimas de Atos de Violência Baseados em Religião, no qual foi designado o dia 22 de agosto para a comemoração da data. A resolução propõe que os Estados-membros da ONU condenem qualquer tipo de crimes e práticas de terrorismos relacionados à religião, enfatizando o princípio da liberdade religiosa consolidado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como a necessidade da construção de esforços mais sólidos para a elaboração de uma cultura de tolerância e paz em diversos aspectos. Um dia antes da data, em 21 de agosto, é também comemorado pela ONU o Dia Internacional em Memória e Tributo às Vítimas de Terrorismo.

Nos últimos anos, é evidente que houve um crescimento na atividade terrorista com alvo em sinagogas e mesquitas. Embora sejam, em um primeiro olhar, ataques isolados, desconexos e provocados por “lobos solitários”, faz-se necessário afirmar a existência de um paralelo entre o surgimento da internet, o terrorismo extremista antissemita e anti-Islã, e o fortalecimento de narrativas de Ultradireita no Ocidente no século XXI.

A Ultradireita e a questão religiosa

Em primeiro plano, embora a criação da internet tenha registros no final da década de 1960, foi nos anos 1990 que sua popularização se iniciou, com a Rede Mundial de Computadores (World Wide Web) e o surgimento dos navegadores, locais do ciberespaço onde se costuma navegar pelos variados sites da internet. Até então, o divisor de águas dos meios de comunicação foi a televisão. Logo, a proposta da internet se voltava para a conexão instantânea com pessoas e ideias ao redor do mundo, por meio das redes sociais e dos blogs.

Uma vez que se tornou possível a reunião de indivíduos com particularidades em comum, onde são disponibilizados fóruns de conversação e troca de saberes, os grupos sociais evoluem sua organização para uma maior coesão e solidez. Dessa forma, não foi diferente com os ideais radicais de direita e extremistas, que caminhavam em paralelo com a ascensão de políticos e partidos de Ultradireita.

Blogs de notícias alternativas, ao exemplo do Breitbart News, American Renaissance e Unqualified Reservations, fomentam o adaptado modus operandi da ideologia, se utilizando de uma máquina de propaganda e marketing efetivos, de modo a recrutar, com êxito, tanto adolescentes como adultos. Do outro lado, os fóruns underground, localizados em lugares menos populares da internet, foram tomados por grupos de indivíduos predispostos a sofrer um processo de radicalização, onde se reúnem para falar sobre ideias extremistas, crimes violentos e preconceito explícito contra minorias.

Ao promover soluções simples para temas complexos e transversais, políticos de Ultradireita influenciam a população a concluir que problemas como desemprego e inflação são consequências do acentuado fluxo imigratório, ao invés de encarar realidades como o lento colapso do sistema capitalista, que expõe suas contradições insustentáveis a cada crise desdobrada.

A partir disso, são criados “bodes expiatórios” para os problemas socioeconômicos e culturais, levando em consideração o processo histórico de cada região. Em geral, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, judeus, muçulmanos, imigrantes e fiéis de religiões de matriz africana são grupos suscetíveis a sofrer a violência ultradireitista, desde o discurso até a ação.

Acerca dessa lógica, um relatório do FBI aponta que, em 2017, nos Estados Unidos, foram registrados mais de sete mil crimes de ódio, onde quase 60% dos incidentes tiveram motivação discriminatória. A religião judaica contou com o maior número de ataques direcionados; em seguida, está a religião muçulmana. Tais posições se devem ao aumento exponencial da islamofobia após 11 de setembro de 2001 e a consequente Guerra ao Terror, que disseminou a aversão ao muçulmano no Ocidente. Já o elevado antissemitismo se dá pelo avanço das ideias neonazistas, uma vez que os EUA considera eventos como o protesto de Charlottesville uma manifestação válida através da liberdade de expressão.

Além disso, outras narrativas do imaginário ultradireitista se voltam para o conspiracionismo existente há muitas décadas e alastrado atualmente nos sites de notícias alternativas. Hipóteses sem fundamento acerca de um “genocídio branco” praticado pelos muçulmanos no Ocidente, as “Cruzadas modernas” contra uma suposta cristofobia e os variados planos de dominação mundial judaica envolvendo empresários judeus e a política tradicional são apenas alguns dos argumentos — sem fontes sólidas — usados pela Ultradireita para procurar uma justificativa que legitime seus preconceitos já enraizados estruturalmente.

Existe terrorismo de Ultradireita?

Os anos 2010 presenciaram o crescimento do terrorismo ultradireitista, causado por “lobos solitários”, terroristas que planejam a estrutura dos ataques majoritariamente sozinhos, sem a ajuda de grandes grupos; seu arcabouço se volta para a pesquisa online, conversas em fóruns extremistas e compra de armamentos em sites ilegais. Nessa conjuntura, algumas das motivações promovidas pelo terrorismo desembocam na questão do multiculturalismo e imigração, visto que o cenário internacional observa um movimento imigratório em massa pelos muçulmanos para o Ocidente, em busca de melhores condições de vida ou fugindo de conflitos civis.

Alguns alvos do terrorismo de Ultradireita são mesquitas, sinagogas, escolas e centros de refugiados; em suma, lugares nos quais são frequentados por populações não-brancas. De pouco mais de 330 ataques terroristas ocorridos no Ocidente, entre 2002 e 2019, quase cinquenta ocorreram no último ano da pesquisa. Os atentados de Christchurch, na Nova Zelândia, pensado para a eliminação de islâmicos, são um exemplo do atual terrorismo ultradireitista: anunciado previamente online, planejamento solitário, inspiração em outros ataques, e a escrita de um manifesto viral, que propõe a difusão das ideias do assassino. O tiroteio causou um efeito no sentido de promover outros massacres ao redor do mundo, que aconteceram no mesmo ano, 2019.

Já nos Estados Unidos, um dos maiores ataques a fé judaica ocorreu em 2018, quando um extremista entrou na sinagoga Árvore da Vida, em Pittsburgh, e matou 11 fiéis que estavam no templo.

E as religiões de matriz africana no Brasil?

Em 2022, o país registrou quase 2.500 ocorrências envolvendo casos de racismo, e quase 11 mil notificações por injúria racial, conforme os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Embora a miscigenação seja uma realidade que conta com a fusão de elementos indígenas e africanos na cultura e na vivência brasileira, parte da população tende a rejeitá-la, perpetuando o racismo estrutural na sociedade.

Em paralelo a isso, as religiões de matriz africana são heranças da verdadeira cultura brasileira, trazidas dos povos escravizados desde o século XVII. Sua origem e variedade de vertentes desperta o preconceito entre a população, que implicitamente associam cor e religião ao formular discursos racistas, “demonizando” o sagrado religioso alheio. Só no ano de 2021, as ocorrências envolvendo ataques as respectivas religiões tiveram um acréscimo de 270%; no Rio de Janeiro, se tornaram alvos de 91% das notificações envolvendo intolerância religiosa.

O estudo também estipulou que em quase 60% dos casos, o agressor esteve ligado ao protestantismo. Atos vandalistas, como a violência verbal e física, a destruição de templos de Umbanda e Candomblé, e a perpetuação de falas que procuram criar um vínculo maniqueísta entre “religião do mal e religião do bem”, são algumas agressões sofridas pelos fiéis das religiões de matriz africana no Brasil.

Diante disso, embora a teoria descreva que todo ser humano possui o direito de expressar sua religião, percebe-se que, ao depender da fé, essa demonstração torna o indivíduo vulnerável a agressões, visto que a realidade de um cenário no qual o impensável é normalizado através dos ideais de Ultradireita se pauta pela argumentação em série de premissas intolerantes a uma parcela da sociedade, intimidando as minorias a se esconderem. Enquanto a catástrofe do neofascismo não for combatida com afinco, os preconceitos estruturais sempre serão alimentados em tempos de crise — e velados em outras ocasiões, mas nunca eliminados.

REFERÊNCIAS

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Laís Helena Farias
CARPAS
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Estudante de Relações Internacionais (UEPB), coordenadora informal do GEPURI-UEPB, pesquisadora em temas de Política Externa Brasileira.