A ascensão da ultradireita e sua ameaça aos Direitos Humanos

Pesquisas apontam o aumento dos índices de perseguição às minorias sociais a medida que grupos extremistas avançam de Norte à Sul

Fernanda de Melo
CARPAS
10 min readFeb 1, 2023

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Créditos: A. Machado

As articulações políticas que se desdobraram ao longo da segunda década do século XXI — que contou com a presença de uma elite político-econômica consolidada, a implementação de selvagens políticas liberais e uma pandemia de proporções devastadoras — podem ser examinadas enquanto efeitos colaterais de um fenômeno da história recente do país: a reinterpretação à brasileira do fascismo clássico.

Perpassando pela Ditadura Militar, a ascensão desenfreada da extrema-direita no cenário político brasileiro apresenta elementos centrais que podem ser analisados através da investigação de Cas Mudde em seu livro The Far Right Today, ainda que de forma generalista, que explica quais fatores elevam o fascismo a uma posição de poder nacional, seriam eles: 1. a divergência entre os eleitores que votam em protesto contra o sistema e os eleitores que votam em apoio a extrema-direita; 2. os períodos de recessão e/ou crise econômica; 3. a globalização neoliberal; 4. a linha tênue entre líder e organização. Esse atestado, contudo, não se restringe às fronteiras brasileiras, mas é agora um problema global.

O século XXI apresentou graus alarmantes de crises humanitárias por fatores variáveis e, consequentemente, a migração forçada, mais conhecida como a “Crise de Refugiados”. Como resultado, fenômenos como nacionalismo, xenofobia e vigilantismo emergiram nos países de principal destino das vítimas. Esses aspectos foram influenciados e auxiliaram no processo de emergência política especialmente dos partidos de extrema-direita, que estabeleceram políticas segregacionistas, tal como a militarização das fronteiras.

Poderíamos caracterizar os movimentos fascistas como as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu próprio conceito — Theodor Adorno

Partido grego neonazista “Aurora Dourada” nas ruas em 2018

Em 2022, o relatório do Instituto de Economia e Paz classificou o mundo como menos pacífico do que era em 2008. Apesar dos avanços sociais conquistados, o que mudou para possibilitar um retrocesso no que tange a violência?

A partir da ascenção da figura de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, em 2016, no cargo de liderança do poder público do hegemônico mundial, a ultradireita se legitimou de norte à sul. A preocupação com a articulação e organização das figuras e grupos da ultradireita não deve ser limitada aos processos eleitorais internos, uma vez que as personalidades em questão compartilham de uma agenda em comum.

À título de exemplo, Giorgia Meloni, recém eleita presidente da Itália, que reinvindica abertamente Benito Mussolini, usufrui do slogan “Deus, pátria e família”, amplamente difundido pelos integralistas brasileiros no século passado e repercutido nas falas de Bolsonaro. Em destaque, Meloni pontua como um “bingo”: reforça as políticas anti-imigração, além de propor a redução dos direitos da comunidade LGBT+ e de acesso ao aborto. São diversos os países europeus que agora ou possuem um governo de ultradireita ou contém partidos políticos parte deste grupo ideológico que aparecem com notoriedade no cenário doméstico, como Itália, Suécia, Húngria, Polônia, França, Alemanha, Espanha e Áustria.

A primeira questão que se impõe a respeito do fascismo é a sua posição enquanto categoria analítica, visto ser um fenômeno histórico datado. Como tal, encontra-se na identificação de sua configuração multidimensional, de modo que seja estabelecido um modelo capaz de qualificar distintas experiências da referência empírica original. De tal forma, seria possível aplicar a categorização mesmo que em dinâmicas históricas e políticas divergentes da experiência italiana do fascismo, por um conjunto de práticas, valores, crenças, organizações, padrões afetivos, projetos de poder e inserções no Estado e na sociedade que satisfaça as exigências do modelo.

O movimento fascista é, de tal forma, um movimento reacionário de massa e, seguindo os estudos de Georgi Dimitrov em relação ao caráter de classes do fascismo clássico, este surge enquanto uma das ferramentas políticas da burguesia nacional para atrasar qualquer possibilidade de quebra do capitalismo e, consequentemente, da dominação da sua classe, sendo, portanto, a fusão do capital financeiro das multinacionais com o poder político mais reacionário. Aqui, faz-se necessário pontuar, portanto, que os direitos das minorias sociais são postos em risco através da conservação de uma sociedade ocidental que estaria, supostamente, ‘’em crise”.

Em conssonância com a recente entrevista de Cas Mudde para o jornal O Globo, onde ele alega que a ascensão desse escopo da direita na comteporaneidade está interligada com a normalização da sua agenda nas democracias liberais.

“Em todos os países onde ascendeu, o extremismo encontrou aliados em setores supostamente moderados, que abriram mão de princípios cruciais ao sistema democrático.”, disse Mudde.

Sem dúvidas, os princípios cruciais ao sistema democrático também pode ser atrelado ao sistema de Direitos Humanos. Foram incontáveis os retrocessos dos direitos sociais sob tutela da ultradireita. No Brasil, o governo federal cortou R$ 89 milhões da verba de combate à violência contra mulher. Na Húngria, mulheres são forçadas a ouvir o batimento cardíaco do feto antes de realizarem o procedimento abortivo.

O fato é que, quando você dá direitos às mulheres, elas destroem absolutamente tudo ao seu redor, não importa qual outra variável esteja envolvida… Mesmo se você se tornar o macho alfa definitivo, alguma cadela estúpida ainda arruinará sua vida. — Andrew Anglin, DailyStormer.com

Andrew Anglin é um neonazista americano, mas não é uma exceção da regra dos conteúdos extremistas que rondam o mundo cibernético, tampouco a única figura que livremente expressa suas ideias fascistas, machistas e racistas. Francis Roger Devlin, por exemplo, é um nacionalista branco e ativista dos chamados “direitos dos homens”. Ele é um editor-colaborador da The Occidental Quarterly, uma revista nacionalista branca americana publicada pela Charles Martel Society com o propósito declarado de defender “os interesses culturais, étnicos e raciais dos povos da Europa Ocidental” e examinar “as tendências políticas, sociais e demográficas contemporâneas que impactam a posteridade da civilização ocidental”.

Devlin escreveu o ensaio Sexual Utopia in Power, que argumenta que a “libertação das mulheres” prejudicou ativamente a capacidade dos homens (brancos) de procriar, porque quando as mulheres brancas têm escolhas, é menos provável que se casem, tenham filhos e perpetuem a raça branca. Devlin passou grande parte de sua carreira condenando o surgimento de mulheres autorrealizadas que ameaçam a existência dos brancos e lamenta que as mulheres tenham ganhado muito poder — o que supostamente “perturbou a ordem natural das coisas”.

No caso de personalidades brasileiras, os nomes de Arthur do Val e Gabriel Monteiro vêm à mente. Em 2022, em uma viagem para a Ucrânia, enquanto deputado estadual de São Paulo, Arthur do Val alegou que mulheres ucranianas “são fáceis porque são pobres”, durante viagem à Ucrânia em meio à guerra contra a Rússia. Já Gabriel Monteiro, responde a múltiplos processos e acusações: estupro, peculato (desvio de dinheiro público), falsidade ideológica, coação à testemunha e filmagens de relações sexuais com uma adolescente de 15 anos.

Uma reportagem da Humanista, revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), reportou que os dados da SaferNet, organização não-governamental, demonstram o aumento de crimes de ódio e intolerância durante os anos eleitorais. Entre os crimes, destaca-se: intolerância religiosa, xenofobia, racismo, neonazismo, misoginia, LGBTfobia e apologia à crimes contra a vida. Só em 2018, os ataques frutos da misoginia representaram um aumento de 1.639,50% nas denúncias recebidas em relação ao ano de 2017. Os dados parciais de 2022 já apontam para aumento das violências: ataques às mulheres foram de 5.593 denúncias no primeiro semestre de 2021, para 7.096 denúncias no segundo semestre de 2022.

O levantamento da organização alerta que 2022, ainda, é o terceiro ano eleitoral consecutivo com crescimento de crimes de ódio, principalmente xenofobia, intolerância reliogiosa e misoginia, que lideraram o aumento global de 39,3% no total de denúncias de discurso de ódio na internet registrados pela Safernet.

Tradicionalmente, a extrema direita expressava principalmente o chamado sexismo benevolente, no qual as mulheres são vistas como moralmente puras e fisicamente fracas. Isso significa que (boas) mulheres devem ser adoradas pelos homens, pois as mulheres são necessárias para tornar os homens completos — através da família heterossexual, coração da nação ou raça. Homens de verdade trabalham, de preferência trabalho físico, e são agressivos e musculosos, para proteger “suas” mulheres. A família é heterossexual e dominada por homens, em termos de autoridade e finanças, embora muitas vezes seja atribuído às mulheres um peso moral particular, que mantém os aspectos mais agressivos, até animalescos, de seus homens. Antes de tudo, porém, a mulher é o ventre da nação, a mãe dos filhos, responsável pela criação moral e física da próxima geração. (The Far Right Today)

Na Europa, de modo geral, desde 2017, o número estimado de indivíduos que viveram algum tipo de violência e/ou abuso nas fronteiras europeias atingiu 18.200. Diante desse dado, é possível analisar que os fluxos comerciais se portam de maneira transfronteiriça, enquanto a migração de trabalhadores do terceiro mundo recebem o tratamento oposto ao examinarmos as ondas de xenofobia e racismo para com o estrangeiro: inibem seu fluxo, reforçam sua vulnerabilidade e os colocam como inimigos da nação. Em outras palavras, o capital e os indivíduos que o detém, ultrapassam os limites territoriais sem maiores problemas, enquanto a classe trabalhadora internacional é regulamentada e, por vezes, até mesmo criminalizada. Em resumo, é um mundo sem fronteiras para tudo e todos, exceto para os pobres.

De acordo com o mais recente relatório do Índice Global de Terorrismo, em 2018, o número de mortes e incidentes de terrorismo político foi maior do que qualquer outra forma pela primeira vez desde 2007, aumentando de forma constante na última década, com 73% dos ataques no Ocidente sendo atribuídos a grupos e indivíduos politicamente motivados. Em 2019, o mesmo relatório identificou que atos de terrorismo cometidos pelos grupos de extrema-direita aumentaram ao redor do mundo em 320%.

Nesta foto de abril de 2020, terroristas carregam rifles perto dos degraus do prédio do Capitólio do estado de Michigan em Lansing. Uma conspiração para sequestrar o governador de Michigan colocou o foco na segurança dos governadores nos Estados Unidos (Fonte: The Conversation / Foto: AP/Paul Sancya)

No Brasil, em 2021, o índice de violência política do V-Dem pontua 3.85 em uma escala de 0–4, incrivelmente próximo à pontuação da Síria, que alcançou 3.91, e Iêmen, com 3.93, ambos os países considerados as maiores crises humanitárias contemporâneas e que enfrentam uma guerra civil. A indignação cresce ao examinar, através da mesma base de dados, que de 2003 a 2010, ao longo de sete anos, o Brasil manteve-se estável com uma pontuação de apenas 1.61.

A partir de 2011, os números saltam assustadoramente: de 1.61, o país passa a apresentar agora um número total de 2.31. É em 2016 que, se os números nos contassem tudo, acreditaríamos que vivemos em uma guerra. E, talvez, para alguns, estejamos.

Índice de violência política no Brasil entre os anos de 2000 e 2021 (Produzido por: Revista Carpas)

No recém-lançado documentário da plataforma Globoplay, extremistas.br, alguns discursos pedem uma análise semântica mais atenciosa:

Iremos para cima, mesmo que seja preciso uma Guerra Civil, disse uma mulher no acampamento bolsonarista

Nós estaremos vigilantes, prontos para combatê-los de qualquer forma. Quer na via eleitoral, e quer na luta armada, disse um dos líderes do movimento “Voto impresso auditável já!”, intitulado de “Corenel Bezerra”

O discurso de militarização e securitização da política, principalmente aqui, expôs o paradigma militar do “fazer política” da extrema direita. São presentes e constantes os termos de “guerra”, “defesa”, e “ameaça” nos discursos dos grupos organizados, seja uma guerra ideológica, uma defesa dos valores da família e uma “ameaça dos padrões morais”. Em todo o Brasil, espalham-se teorias da conspiração e narrativas securitárias de “combate à esquerda”, com sentidos amplos; desde um combate no mundo das ideias até um confronto físico. O ocorrido em Brasília apenas uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva demonstra até onde os extremistas estão dispostos a chegar, destruindo símbolos vitais da democracia brasileira.

Trata-se de um “combate” à corrupção, mas não àquela tradicional monetária. Trata-se da corrupção moral, institucional e de valores. Trata-se da luta maquiavélica do “bem” contra o “mal”.

Apesar de analistas políticos subestimarem uma ameaça real de golpe, as imagens registradas em acampamentos e protestos bolsonaristas mostram cartazes “Intervenção federal já!”, “Criminalização do comunismo já!”, com riscos reais à democracia. O que nos traz, inclusive, para a compreensão do quão grave a situação deve ser para se tornar, de fato, uma ameaça democrática. É preciso, realmente, um golpe de Estado para se avaliar que a democracia brasileira encontra-se vulnerável? Até porque isso, comprovadamente, constava nos planos da máquina bolsonarista.

Bolsonaristas pedem “intervenção federal” em manifestação em Balneário Camboriú (SC) (Fonte: UOL / Foto: Herculano Barreto)

Origina-se desde então a perseguiçào aos ativistas e militantes dos Direitos Humanos, vide o relatório da Global Witness, que diz que mais de 1.700 pessoas morreram enquanto tentavam impedir mineração, perfuração de petróleo ou extração de madeira em suas terras. Ao longo dos 10 anos, Brasil e Colômbia registraram os maiores números de mortes. Atualmente, a Colômbia possui um governo progressista, mas nem sempre esta fora a realidade. De 2017 a 2021, 1097 ativistas, incluindo sindicalistas, camponeses, afro-colombianos, indígenas, direitos das mulheres, LGBTQ, ativistas ambientais e outros foram assassinados.

Na visão de Bell Hooks, não é possível erradicar a misoginia sem erradicar “o patriarcado capitalista e supremacista branco”. Nesse sentido, as expectativas para uma segunda onda progressista na América do Sul crescem, especialmente com a possibilidade de expansão de políticas públicas mais rígidas no que tange à justiça e igualdade social, mas para além disso: medidas rigorosas contra àqueles que homenageiam e realizam apologias à Ditadura Militar, regimes fascistas, e violam os símbolos da democracia e a dignidade humana.

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