“A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende, um olhar sobre a história do Chile

A obra resgata a história do povo chileno a partir de representações do real, com seus personagens marcantes e complexos, além de apresentar uma ambientação de identidade e proximidade para os povos latinos.

Pâmela Lins
CARPAS
7 min readJan 18, 2023

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Isabel Allende, escritora chilena, ganhou meu coração com o livro A casa dos espíritos, datado de 1982, que retrata a história das famílias Del Valle e Trueba, perpassando suas quatro gerações: Nívea e Severo Del Valle, pais de Clara e Rosa; e Blanca e Alba, filha e neta de Clara, respectivamente. A primeira fase do enredo aborda o envolvimento de Esteban Trueba com as irmãs, Rosa e Clara; sendo a última quem constrói uma família com o personagem.

Ademais, Allende usa da técnica do realismo mágico [1] na construção do enredo, apresentando-nos personagens inusitados e singulares. A exemplo de Rosa, com seus cabelos verdes e olhos amarelos, sendo comparada a uma sereia; e Clara, com suas previsões do futuro, clarividência e a habilidade de mover objetos com o uso da mente.

Nívea soube que Rosa não era deste mundo antes mesmo de trazê-la à luz, tendo-a visto em sonhos; por isso, não lhe causou surpresa o grito da parteira ao vê-la. Quando nasceu, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca de porcelana, com o cabelo verde e olhos amarelos, a criatura mais formosa nascida na Terra desde os tempos do pecado original, como disse a parteira, benzendo-se. […] Tinha qualquer coisa de peixe e, se tivesse uma cauda com escamas, seria certamente uma sereia, mas suas pernas punham-na no limite impreciso entre a criatura humana e o ser mitológico.

Segundo Soares (2022), o realismo mágico, no período da ditadura militar, era utilizado como forma de driblar a censura e também como forma de resistência cultural. “O realismo mágico não se propõe apenas em trazer narrativas que giram em torno de tensões com elementos mágicos e/ou sobrenaturais, mas em produzir um gênero literário especificamente marcado e caracterizado por fatores históricos, nos quais os elementos sobrenaturais não geram tensões aparentes na trama. […] O Realismo Mágico caminha ao redor dos costumes, do cotidiano, religião, valores, conceitos, da socialização entre as culturas” (SOARES, 2022, p. 6). O uso desse elemento traz um clima mais leve ao enredo, nos dando um alívio em meio a tanta tragédia.

A história é contada por um narrador em terceira pessoa, outras vezes, por Esteban Trueba e por Alba. Porém, a maior centralidade está em Trueba e as consequências de suas decisões. É ele quem encontra os cadernos de “anotar a vida” [2] de Clara e se lamenta pelo homem que foi para ela. Ele é um personagem horrendo, conservador, orgulhoso, sendo a representação dos homens autoritários da época, do machismo e do retrocesso.

Blanca nunca pôde explicar à sua mãe as razões pelas quais aceitara se casar, porque nem ela própria sabia. Analisando o passado, quando já era uma mulher madura, chegou a conclusão de que a causa principal fora o medo que sentia do pai. Desde bebê conhecia a força irracional de sua ira e estava habituada a obedecer-lhe.

Ao vê-la entrar na sala de jantar, seu pai deu um grito de horror.

— O que faz aqui, filha?!? — rugiu.

— Nada… Vim vê-los — murmurou Blanca, aterrorizada.

— Está louca! Não percebeu que, se alguém a vê, vão dizer que seu marido a devolveu em plena lua de mel? Vão dizer que você não era virgem!

— E não era, papai.

Esteban esteve a ponto de lhe dar um bofetão no rosto, mas Jaime se interpôs com tanta determinação que se limitou a insultá-la por sua estupidez.

Mulheres camponesas, Reforma Agrária, Chile.

As representações identificadas no livro com a realidade social do Chile são diversas. Um dos fatores a ser destacado é a apropriação privada da terra e a presença dos latifundiários a partir do personagem já mencionado, Esteban Trueba. Ele sonhava em transformar as terras herdadas de sua família em grandes exportadoras, tornando-o rico. No entanto, em diversos momentos, a autora nos põe a refletir sobre o pertencimento da terra, que por décadas foi abandonada e cultivada pelos povos nativos que ali habitavam. Teria Trueba o direito de reaparecer, se apropriar da região e explorar os povos nativos?

Tudo isto é seu, vovô?

— Tudo, desde a estrada pan-americana até a ponta daquelas colinas. Está vendo?

— Por quê, vovô?

— Como por quê?!? Porque eu sou o dono, claro!

— Sim, mas por que você é o dono?

— Porque era da minha família.

— Por quê?

— Porque a compraram dos índios.

— E por que os empregados que sempre viveram aqui também não são os donos?

— Seu tio Jaime anda botando ideias bolchevistas em sua cabeça!

Por diversos momentos da narrativa, identificamos a crítica social que Isabel Allende faz ao Chile, seja ao machismo presente na época, seja à miséria vivenciada pela maior parte da população, ao abandono do Estado em relação às necessidades sociais, à burguesia autocrática e dependente com relação ao imperialismo, ao anticomunismo, ao receio de uma revolta popular e a perversa ditadura militar. Elementos presentes em toda a história da América Latina, nos levando a inúmeras identificações e paralelos com histórias de outros países latinos, como o Brasil.

Porém, na medida em que somos apresentados à violência de um país marcado pelo colonialismo, também conhecemos os processos de luta e resistência pela emancipação dos povos. Allende cria personagens incríveis para representar a vontade popular pela libertação da exploração de uma população dominada pelo capitalismo dependente. Desse modo, somos apresentados a personagens marcantes como Pedro Terceiro Garcia, Miguel e Alba, cada um representando momentos distintos de resistência diante do autoritarismo e violência presente na ditadura militar.

Todo o enredo nos leva ao momento mais crítico da violência que marcou para sempre a história do Chile. Allende escreve uma verdadeira obra prima de como o fascismo se impregna em um país e, apesar dela apresentar personagens com características próprias, podemos identificar diversos elementos no enredo que nos remete aos acontecimentos do golpe no Chile. A exemplo disso, tem-se o fato histórico quando Salvador Allende é deposto e o palácio presidencial é tomado por militares em 11 de setembro de 1973, dando início a ditadura de Pinochet (SOARES, 2022); acontecimento presente na narrativa com bastante semelhanças.

Em suma, Salvador Allende, grande líder político e médico, tornou-se presidente do Chile em 4 de novembro de 1970, gerando grande comoção internacional por ser um candidato de esquerda eleito com um projeto que promovia reformas de bases para o país. Conforme comenta Carlos Casanueva Trancoso em entrevista ao Brasil de Fato (2021), no período em que Allende governou, “tivemos um projeto para construir uma sociedade melhor para os chilenos e as chilenas, interrompido por um golpe fascista. O fascismo instaura um sistema que até então era de laboratório, com a teoria dos Chicago Boys do neoliberalismo”.

Com a ditadura militar no Chile, tem-se a instauração do neoliberalismo, tornando-o em um dos primeiros a adotar tal política e, também, no país com uma das maiores desigualdades sociais do mundo. “De acordo com a Comissão Econômica Para América Latina e o Caribe (Cepal), 1% da população chilena concentra 26% da riqueza, já 66% dos chilenos possuem 2% do capital que circula no país” (MELLO, 2021).

Isabel Allende virou minha escritora favorita, pela sua sensibilidade em abordar temas tão necessários, pelos seus personagens incríveis e complexos, pelo uso do realismo mágico como forma de trazer um pouco de alívio para histórias difíceis de digerir e pela ambientação que tanto traz identificação ao povo latino-americano.

[1] O realismo mágico na América Latina, refere-se a “um modo narrativo em que os acontecimentos mágicos são relatados de forma quotidiana, realista, […] em que ‘o sobrenatural não é algo simples ou óbvio, mas é de fato algo ordinário, um acontecimento do dia a dia — admitido, aceito e integrado na racionalidade e materialidade do realismo literário’” (SIMÃO, 2021).

[2] Termo criado por Clara para se referir ao seu caderno de memórias/diário.

REFERÊNCIAS

MELLO, Michelle. Depois de 48 anos do golpe, qual o legado de Allende para a constituinte no Chile?. Brasil de Fato, Online, 11 nov. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/11/depois-de-48-anos-do-golpe-qual-o-legado-de-allende-para-a-constituinte-no-chile. Acesso em: 17 jan. 2023.

Soares, Maria Cristina do Couto. Realismo mágico, feminismo e resistência ao autoritarismo em A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. 2022. 23 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras) — Departamento de Letras, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2022.

SIMÃO, Luciano. Afinal, o que é (e o que não é) realismo mágico?. Escotilha, Online, 1 fev. 2021. Disponível em: https://escotilha.com.br/literatura/contracapa/afinal-o-que-e-e-o-que-nao-e-realismo-magico/. Acesso em: 17 jan. 2023.

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Pâmela Lins
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Assistente social e Pesquisadora no PPGSS-UFAL. Escritora na revista Carpas. Literatura e política em uma perspectiva marxista.