A exploração animal e as lutas sociais são pautas inconciliáveis

Fernanda de Melo
CARPAS
Published in
12 min readMay 29, 2020

O agronegócio é um termo utilizado para fazer referência ao contexto socioespacial da produção da agropecuária, incluindo todos os serviços, técnicas e equipamentos a ela relacionados, direta ou indiretamente.

Além disso, é um dos principais setores da economia brasileira, integrando práticas urbanas e rurais. Portanto, esse setor econômico envolve uma cadeia de atividades que inclui a própria produção agrícola, a demanda por adubos e fertilizantes, o desenvolvimento de maquinários agrícolas, a industrialização de produtos do campo e o desenvolvimento de tecnologias para dinamizar todas essas atividades.

É importante observar que a constituição do agronegócio enquanto uma rede que articula: especulação do capital financeiro, utilização de agrotóxicos e transgênicos, concentração da terra e da renda e utilização de técnicas e tecnologias avançadas; se constitui também e inserido na lógica de reprodução e acumulação do modo de produção capitalista.

Ao contrário do que muitos imaginam, o agronegócio não está somente relacionado com o campo, ele espacializa-se também no meio urbano, sendo um dos vetores de promoção da subordinação das atividades rurais à dinâmica das cidades. Isso ocorre porque, à medida que moderniza-se, mais ele torna-se dependente de atuações industriais e produtivas advindas das cidades.

Esse campo da economia envolve uma inter-relação entre os três setores: o primário (com a agropecuária), o secundário (com as indústrias de tecnologias e de transformação das matérias-primas) e o terciário (com o transporte e comercialização dos produtos advindos do campo).

Dito isso, um embate político envolvendo os chamados “ruralistas” contra os “ambientalistas” é extremamente recorrente. Os primeiros são responsáveis pela expansão desordenada das terras cultiváveis no território nacional, expandindo a fronteira agrícola e diminuindo a quantidade de reservas ambientais e áreas verdes. Também recusam e travam quaisquer resoluções apresentadas no campo político que remetam à Reforma Agrária no Brasil, que se arrasta desde meados do século XX.

O Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) afirma que o agronegócio intensifica o processo de concentração fundiária, em que um número cada vez maior de terras fica detido sob a posse de um número cada vez menor de investidores.

Embora seja uma fonte diária de nutrição e prazer culinário para bilhões de pessoas, a carne animal é pouco sustentável.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), não será possível cumprir as metas do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas sem uma redução em massa na escala da pecuária.

Utilizemos como exemplo a redução do consumo de carne. Hambúrgueres vegetais industrializados usam 99% menos água e 93% menos espaço de plantio em seu processo de produção, além de gerar 90% menos emissões de gases do efeito estufa e consumir 46% menos energia. No entanto, apenas utilizo esses dados para mostrar como repensar os hábitos alimentares pode ajudar perante as questões ambientais. Particularmente, acredito que hambúrgueres vegetais caseiros ou feitos por produtores locais são ainda menos maléficos, extremamente baratos e altamente ecológicos comparado aos industrializados, vegetais ou não.

Tese Onze

Por que é prejudicial?

O modelo do agronegócio deixa em foco o domínio do capital sobre a produção dos bens da natureza. Isto é, a produção organizada de acordo com o critério do lucro máximo. Para consegui-lo, seus partidários buscam aumentar cada dia a escala de produção, tornando a área de monocultura cada vez maior. E, para viabilizar este projeto, necessitam de máquinas, assim como de grande quantidade de agrotóxicos.

O Brasil, por exemplo, transformou-se no maior consumidor mundial de agroquímicos, aplicando 713 milhões de litros por ano. Isto significa 3 mil litros de agrotóxicos por pessoa e 6 mil litros por hectare cultivado. Não sendo o bastante, apenas produz alimentos contaminados. Ou, pior ainda, não produz alimentos: produz commodities.

O primeiro tópico que pontuo é a questão hídrica.

Nossos esforços cotidianos para reduzir o uso de água em casa são importantes, mas tornam-se quase insignificantes comparados à eliminação da carne do cardápio, uma vez que são utilizados entre 10 e 20 mil litros de água para produzir apenas 1kg de carne bovina. Outros tipos de carne e produtos animais também requerem um aporte de água muito superior ao de alimentos sem origem animal.

O consumo de água nos países pobres é quase a metade do consumo dos países ricos. Se considerarmos apenas o consumo direto, o de carne parece ser bem maior do que o de água. Porém, se levarmos em conta os custos ambientais, as desigualdades socioeconômicas se acentuam. Não é possível, por exemplo, pensarmos a produção de carne sem levarmos em conta as grandes extensões de terra necessárias para a formação dos pastos que alimentam o gado.

O aumento do consumo de carne provoca a derrubada de florestas, como ocorre na Amazônia, para a formação de novas pastagens para um rebanho cada vez maior.

É notório que 15 mil litros de água são necessários para a produção de cada quilo de carne. Isso significa que o consumo de carne vem acompanhado pelo consumo indireto de água. Se multiplicarmos os 94 quilos de carne consumidos por pessoa anualmente nos países ricos por 15 mil litros de água, temos um consumo anual indireto de mais de 1 milhão de litros de água por pessoa.

Sabesp
  • Devido ao uso intensivo de água na cadeia de produção de carnes, um típico e bem-nutrido consumidor de carne demanda indiretamente mais de 3.800 litros de água a cada dia (Fonte: U.S. Department of State, 2011);
  • As granjas industriais também geram grande poluição de água devido ao despejo dos dejetos de bilhões de animais em corpos d’água (Fonte: Pew Commission, 2008). Há milhares de granjas industriais no Brasil, e segundos dados do governo dos Estados Unidos, “uma granja com uma grande população de animais pode facilmente igualar-se a uma pequena cidade em termos de produção de dejetos” (Fonte: EPA, 2004);
  • Estas granjas borrifam dejetos minimamente tratados ou não-tratados nos campos, potencialmente contaminando a água, o solo e o ar (Fonte: Pew Commission, 2008). Dejetos de granjas industriais, em geral, contêm, entre outros contaminantes, resíduos de antibióticos que estão contidos na alimentação de gordura dos animais. Estes resíduos, assim, terminam excretados no meio ambiente e já foram recorrentemente encontrados como contaminantes de água subterrânea, superficial e encanada (Fonte: FAO/ONU, 2006);
  • O setor da pecuária é, provavelmente, a maior fonte setorial de poluição de água, contribuindo para eutrofização de ecossistemas aquáticos, “zonas mortas” em áreas costeiras, degradação de recifes de corais, problemas de saúde humana e de emergência de resistência a antibióticos, entre outros impactos (Fonte: FAO/ONU, 2006)
  • Mundialmente, a pecuária usa cerca de 70% da água limpa e acessível do planeta. Sendo 20% para a indústria e 10% para uso doméstico (Fonte: Worldo Meters)

O Brasil, apesar de deter 20% das reservas hídricas do mundo, possui índices crescentes sobre a falta de água potável e saneamento básico. Esse fenômeno é acometido por uma série de razões, como pela diferença na maneira como a água se distribui geograficamente — priorizando regiões de mais alto desenvolvimento socioeconômico — e a degradação ambiental das áreas em volta das bacias hidrográficas, mudanças climáticas e infraestrutura de abastecimento deficiente.

Em poucas palavras, em um mundo cuja 748 milhões de pessoas passam sede, como a ONU afirma, encaminhar 70% da água para o setor pecuário, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), é dizer aos mais pobres à quem a indústria serve: à desigualdade.

É preciso frisar aqui, nesse contexto, que a ONU nos fornece o dado de que mais de 820 milhões de pessoas no mundo passam fome. A população do Brasil corresponde a 200 milhões de pessoas. Em uma analogia, é como se toda a população brasileira e outros três países, com as mesmas proporções, não tivessem acesso a sequer um grão de arroz. E, ao mesmo tempo, apenas no Brasil, em um só país, quase 27 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados.

De acordo com Robert Van Otterdijk, especialista em agricultura da FAO, com apenas um quarto deste total é possível alimentar os mais de 800 milhões de famintos.

Diariamente, segundo estimativa do Instituto Akatu 2016, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), 41 mil toneladas de alimentos são desperdiçadas no Brasil.

Isto daria para alimentar 25 milhões de pessoas, também por dia, ou seja, 13% da população do país, um número quase comparável à soma da população das regiões metropolitanas de São Paulo (20 milhões) e do Rio de Janeiro (12 milhões).

Portanto, é possível alegar que o consumo de carne é, também, uma questão de status social. A classe social financeiramente mais vulnerável tende a consumir menos carne e, se o faz, então são as de menor qualidade e ultra processadas — o que gera maior riscos de problema de saúde e são, consequentemente, o grupo social com menor amparo médico.

Essas desigualdades entre os modos de acesso aos bens de consumo e serviços, bem como de apropriação de renda, refletem um mundo estruturalmente desigual. No entanto, é imprescindível enfatizar que esses dados são efeitos do consumo do agronegócio e sim, obviamente, do sistema capitalista. A proposta, aqui em questão, é uma espécime de boicote e não conformidade.

Não obstante, é intrínseca a relação entre a pecuária e as mudanças climáticas.

► Produzir 1 quilograma de carne bovina no Brasil envolve a emissão de 335kg de CO2, equivalentes às emissões geradas ao dirigir-se um carro médio por 1.600km (Fonte: Schmidinger K, Stehfest E, 2012). Considerando todas as emissões da cadeia, desde os cultivos que viram ração animal até o transporte e varejo da carne processada, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que o setor pecuário é responsável por 14,5% das emissões de gases do efeito estufa globais oriundas de atividades humanas.

► A pecuária é responsável pela maior parte do desmatamento na Amazônia Legal (Fonte: Governo Federal, 2009). Desde os anos 1970, em particular, o Brasil tem sofrido extensivo desmatamento em sua região amazônica para a pecuária (Fonte: Barona E, Raman N, Hyman G, Coomes OT, 2010). 80% de todo o crescimento do rebanho bovino brasileiro ocorrido entre 1990 e 2002 deu-se na Amazônia (Fonte: Kaimowitz D, Mertens B, Wunder S, Pacheco P, 2004);

► Aproximadamente 70% da terra desmatada da Amazônia é usada como pasto, e uma grande parte do restante é coberta por plantações cultivadas para produção de ração (Fonte: FAO/ONU, 2006);

► Para agravar ainda mais as consequências do desmatamento no Brasil, é a supressão da floresta amazônica a maior fonte de emissões de CO2 do país (Fonte: Morton DC, De Fries RS, Shimabukuru YE, et al, 2006).

Após essa introdução, explano, por conseguinte, o porquê da afirmação de que o consumo animal ou quaisquer tipos de consumo proveniente da exploração animal são antagonistas perante lutas sociais.

Como as pautas de gênero, raça e classe se interligam à questão?

  • Os casos de trabalho escravo têm sido encontrados, principalmente, na pecuária em 80% dos casos (Fonte: Organização Internacional do Trabalho);
  • Conforme a Comissão Pastoral da Terra, 51% dos casos de trabalho escravo ocorridos em 2008 estavam ligados à pecuária e, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, a pecuária é o setor da economia do qual foram resgatadas mais trabalhadores em condições análogas à escravidão no ano de 2012;
  • Segundo Ruth Vilela, ex-secretária de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), as fazendas pecuárias “prendem” as pessoas por um sistema de servidão por dívida, de modo que elas não podem abandonar a fazenda antes de terminar a empreitada e, assim, seguem trabalhando em condições severas de exploração, sem água limpa para beber, sem locais apropriados para descanso e sendo obrigadas a assumir dívidas referentes à compra de seus próprios equipamentos de trabalho. Desta forma, os trabalhadores abusados nestas fazendas não podem deixar o local porque vão adquirindo dívidas com os donos das propriedades;

Atualmente, não há mais como separar o feminismo, a luta racial e a de classes da luta pela proteção da natureza. É notório e gritante que mulheres, pessoas não-brancas e os mais pobres são os que mais sofrem com a destruição do meio ambiente ao mesmo tempo que, são eles também, quem mais o protegem. A natureza é a água que bebemos, o ar que respiramos, o solo de onde vem nossa comida, os oceanos que garantem equilíbrio sistêmico, é a provedora de todos os recursos imprescindíveis para a vida na terra.

Isto posto, é válido analisar a inclinação das mulheres para a preservação ambiental ao analisarmos os estudos responsáveis por mostrar que:

  • Mulheres produzem menos lixo (Fonte: Carl A. Kallgren, Raymond R. Reno, Robert B. Cialdini, 2010);
  • Mulheres reciclam mais (Fonte: Lynnette C. Zelezny, Poh-Pheng Chua, Christina Aldrich, 2002);
  • Mulheres comem menos carne (Fonte: BBC News)
  • Mulheres são mais preocupadas com questões ambientais (Fonte: Raphael J. Nawrotzki, 2012), e votar de acordo com essas preocupações (Fonte: Swiss Info, Claude Longchamp);
  • Mulheres deixam uma pegada de carbono menor (Fonte: R. Raty, A. Carlsson-Kanyama, 2010).

Ao mesmo tempo, mulheres, crianças, pessoas racializadas e mais pobres, sofrem desproporcionalmente com as mudanças climáticas e tragédias ambientais:

  • Desastres naturais são mais propensos a matar mulheres do que homens, principalmente onde mulheres são as mais pobres. Além disso, 80% de todos os refugiados por problemas climáticos são mulheres (Fonte: BBC News, 2018);
  • As mulheres normalmente enfrentam “maiores riscos e maiores encargos” com os impactos das mudanças climáticas (Fonte: UNFCCC), principalmente porque a maioria das pessoas pobres do mundo são mulheres e as pessoas pobres são mais propensas a serem vítimas das mudanças climáticas e também não têm como escapar dos efeitos de seu ambiente hostil (Fonte: UN Women, 2017);
  • Um relatório das Nações Unidas de 2010 revelou em, em 63% das casas na África Subsaariana rural, são as mulheres que recolhem e transportam a água da família. Em apenas 11% dos domicílios esse trabalho é feito por homens. São elas que precisam andar mais sob condições extremas para conseguir água limpa. (Fonte: BBC News);

Atualmente, o agronegócio é um dos maiores inimigos dos povos ameríndios.

Os indígenas são, hoje, cerca de 800 mil indivíduos, sendo que apenas 50% deles reside no campo e habita as aldeias. Pertencem a cerca de 250 etnias, falando mais de 150 línguas de quatro troncos linguísticos. Seu conhecimento da Natureza é impressionante, e compreende um universo de costumes, saberes tradicionais, habilidades e técnicas de uso e ocupação do solo que deveriam servir de modelo para nossos cidadãos urbanos.

Os territórios indígenas são produtores de natureza; os territórios do agronegócio, de lucro — Carlos Frederico Marés, ex-presidente da FUNAI.

A PEC 187/2016 libera a atividade agropecuária em terras indígenas e tramita junto com outra PEC, a 343/2017, que prevê a parceria entre quem quiser fazer essa exploração e a Fundação Nacional do Índio (Funai).”

A PEC da agropecuária teve apoio de integrantes do PSL e da bancada ruralista, além de confirmar o discurso do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre a questão indígena. Desde antes de tomar posse, o presidente costuma reforçar que os indígenas não querem ser tratados como “animais de zoológico” e já disse que não vai realizar demarcações de terra em seu mandato. Por outro lado, ele se manifesta favorável a alterações na lei que permitam atividades como garimpo e mineração nos territórios indígenas, assim como agropecuária.”

A PEC contraria uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e também não considera que as terras indígenas já “geram lucro”, considerando os valores obtidos pela redução das emissões de CO².

O fazendeiro que atira num índio hoje, no século XXI, reproduz o mesmo gesto do bandeirante caçador de índios e escravos. — Vicent Carelli, antropólogo.

As críticas elaboradas aqui não devem ser direcionadas à classe economicamente vulnerável, tampouco aos povos originários. Escrevo com o intuito de proporcionar uma reflexão de consumo, estilo de vida e hábitos alimentares aos leitores.

Reforço, ainda, que a individualização de culpa de consumo pelo sistema de produção capitalista não deve ser considerada nesta análise. A proposta em questão não é fazê-los sentir culpa por um sistema implantado culturalmente através dos interesses financeiros da elite agrária, mas, sim, buscar meios para reduzir os impactos sociais e ambientais que nossa consumação provoca.

REFERÊNCIAS

Revolução Agroecológica em Cuba. Braulio Machín Sosa, Adilén Maria Roque Jaime, Dana Rocio Ávila Lozano, Peter Michael Rosset, tradução Ana Corbisier — 1.ed. — São Paulo: Outras Expressões, 2012.

Um equilíbrio delicado: crise ambiental e saúde no planeta. Carlos Machado de Freitas. Editora Garamond, 2018.

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