A maternidade compulsória e o (não) direito de escolha

Beatriz Firmino
CARPAS
Published in
5 min readMay 5, 2020

Somos seres sociais com a capacidade de viver no coletivo e temos nossas escolhas influenciadas pelo meio em que vivemos. Nós, mulheres, há décadas vivemos em uma sociedade onde o patriarcado domina. Podemos perceber esse sistema nas configurações que o mantêm, que vai desde o controle reprodutivo por meio da criminalização do aborto à ideia de que a maternidade é um dever biológico. Segundo o dicionário, compulsório significa algo que se é obrigado ou estimulado a fazer. Maternidade compulsória é, portanto, a pressão social para que a mulher seja mãe.

Você consegue separar o que é desejo pessoal e o que é socialização?

Na sociedade heteronormativa — monogâmica e heterossexual — , a família expressa uma forte relação de poder capaz de criar dois papéis sociais distintos: o de ser mãe e o de ser pai. Nesse arranjo familiar convencional, cabe ao homem o papel de patriarca: ponto de estabilidade do casal, responsável pelo sustento financeiro. À mulher, cabe o papel de recatada e do lar, que ama seu esposo e filhos (biológicos) incondicionalmente. É a partir dessa divisão desigual entre os sexos que surge a romantização da maternidade, capaz de reduzir a autonomia da mulher à “tendências naturais” onde a fêmea é essencialmente cuidadora e o macho, alfa. É importante ressaltar que na divisão desses papéis gera uma dependência financeira e vulnerabilidade que muitas vezes se torna um problema no divórcio, pois a necessidade de criar os filhos é um dos motivos que levam muitas mulheres a continuarem em relacionamentos abusivos.

“As mulheres têm estado nessa posição por gerações, então o status quo prevalece, mas é importante ressaltar que é tarefa de cuidar dos outros, e não o sexo de quem assume essa tarefa, que opera como desvantagem.” Martha Albertson Fineman em The Autonomy Myth.

Essa ideia de essência — onde o homem é a razão e a mulher é o coração — pode ser percebida na imagem religiosa da mulher como um ser divino capaz de gerar a vida em seu ventre, trazendo realização pessoal (“só estou completa se sou mãe”) e felicidade para o lar. Dentro do âmbito familiar, a socialização ocorre desde o nascimento por meio de estímulos: às meninas são dadas bonecas para que elas possam cuidar e “treinar” o seu “instinto materno”, assim como outros brinquedos que simulam deveres domésticos (vassoura, itens de cozinha); aos meninos são dados carrinhos e brinquedos que envolvam profissões importantes (médico, bombeiro, policial).

“(…) a desconstrução dessa instituição permitiria desvincular casamento e direitos sexuais de uns sobre os outros — na prática, o controle da sexualidade pelo Estado e o controle privado de um homem sobre uma mulher — ao desconectar formalmente sexo e família e legitimar arranjos distintos da família nuclear monogâmica e convencional.” Flávia Biroli em Feminismo e Política.

Mas o instinto materno não existe?

Segundo a historiadora e filósofa feminista Elisabeth Badinter, o amor materno não é um sentimento inerentemente feminino e depende da socialização, época e costumes da sociedade. Em O Mito do Amor Materno, Badinter mostra que tanto as ambições quanto a cultura são responsáveis pela construção (ou não) desse amor, pois ele pode ser “adquirido ao longo dos dias passados ao lado do filho, e por ocasião dos cuidados que lhe dispensamos”. Ela admite, ainda, que o amor materno existe há muito tempo na História, mas que não necessariamente em todas as mulheres. Isso é explicado em um exemplo dado pela autora, onde ela usa pais que não são biológicos como possibilitados de “maternar” uma criança, ou seja: embora a ideia de construção do amor materno seja baseada em filhos biológicos, mulheres são capazes de amar e educar crianças que não vieram de seu ventre, desde que seja da sua vontade.

Além dos valores religiosos (o sexo para a procriação e construção da família), ela menciona a divisão sexual do trabalho como outra forma de manutenção do controle patriarcal sobre nossos corpos a partir das funções atribuídas, cabendo à mulher a função de criar, educar e cuidar da família. Embora, hoje, se possa admitir não desejar a maternidade e exercer sua liberdade, ela ainda está presa a sua biologia e será tratada como anormal pela sociedade. Isso pode ser percebido no decorrer do seu envelhecimento e o passar do “relógio biológico”, quando a cobrança para ser mãe tende a aumentar.

“Contrariando a crença generalizada em nossos dias, ele [amor materno] não está profundamente inscrito na natureza feminina (…). O amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire.” Elisabeth Badinter em O Mito do Amor Materno.

Escolha pressupõe opções, e não se pode falar em escolha pela maternidade se a mulher ainda se encontra subordinada ao Estado de forma que não haja recursos eficazes para a prevenção da gravidez indesejada. Embora a existência de diversos métodos contraceptivos seja um argumento para justificar a proibição do aborto em todos os casos, na prática vemos que os anticoncepcionais não cumprem o papel de prevenção porque não há uma distribuição adequada. Segundo dados divulgados pelo IBGE a partir do perfil dos municípios brasileiros divulgados pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), apenas nove capitais disponibilizam todos os contraceptivos indicados pelo Ministério da Saúde.

Falta, principalmente, a disponibilidade do método considerado mais eficaz:

Ser mãe não é uma escolha, embora ser pai seja. No Brasil, há mais de 5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento, e não há qualquer lei ou crítica para os homens que optam por não serem pais. A nós cabe somente a função maternal, e ir de encontro a essa norma social, por mais absurdo que isso seja, condena a mulher ao julgamento mesmo que engravidar signifique manter-se infeliz com uma vida que não foi planejada.

Gostou do texto? Deixe seu comentário e aplausos (de 1 a 50)!

INDICAÇÕES DE LEITURA

Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno de Elisabeth Badinter.

Feminismo e Política: uma introdução de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel.

Sexo e gênero: suas principais funções na opressão feminina.

Precisamos falar sobre socialização das meninas.

10 coisas que realmente ninguém diz sobre a maternidade.

--

--

Beatriz Firmino
CARPAS
Writer for

Latino-americana, socialista e estudante de Relações Internacionais. beatrizfirmino.contato@gmail.com