A maternidade real em A Cachorra

A Cachorra escancara a maternidade que não estampa os comerciais, mas que faz parte do dia a dia das mães.

Maria Eduarda Lima
CARPAS
5 min readFeb 12, 2023

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A Cachorra consolida Pilar Quintana como uma das principais vozes da literatura contemporânea latino-americana.

(…) Então o tio pegava um galho de goiabeira duro e elástico e a açoitava. Tia Gilma tinha lhe dito que não se retesasse, que quanto mais relaxadas estivessem as coxas, que era onde o tio batia, menos doeria. Ela tentava fazer isso, mas o susto e o estalido da primeira chicotada faziam com que tensionasse todos os músculos, e cada nova chicotada a machucava mais do que a anterior. Suas coxas pareciam as costas de Cristo. No primeiro dia, tinha lhe dado uma, no segundo, duas, e assim ia aumentando por cada dia que Nicolasito não aparecia. Tio Eliécer parou no dia em que deveria ter lhe dado trinta e quatro chicotadas. Tinham se passado trinta e quatro dias, o maior tempo que o mar havia demorado em devolver um corpo.

Em A Cachorra, romance de Pilar Quintana, Damaris é uma mulher de meia-idade cuja vida no litoral colombiano é permeada por culpa, abandono, solidão e violência. Fruto de uma gravidez não-planejada, Damaris é abandonada pelo pai antes mesmo de nascer; sua mãe, para sustentá-la, a deixa aos cuidados do tio, dono de um grande terreno no povoado em que vivem, que o divide em quatro e vende uma das partes aos Reyes, uma família bogotana que passa as férias no lugar. A família tem um filho da idade de Damaris, Nicolasito, que acaba morrendo afogado durante uma brincadeira dos dois nos rochedos. Responsabilizada pelo tio, Damaris fica marcada pela culpa, física e emocionalmente.

Com a morte da mãe na adolescência, Damaris se vê mais uma vez sozinha. Anos depois, ela casa com o pescador Rogelio, mas a lua de mel é interrompida após as tentativas frustradas do casal de engravidar. Ao se aproximar dos quarenta anos, a idade em que as mulheres secam, como apontado por seu tio, a adoção da cachorrinha Chirli é como um analgésico que, temporariamente, aplaca as dores do seu dia a dia.

Desde o início, a relação com Chirli ganha a responsabilidade de ser tudo o que falta na vida de Damaris; nela, a protagonista projeta o filho que nunca teve, a companhia que Rogelio, o marido, não proporciona e o amor que a família não soube dar. Involuntariamente, a cachorra passa a ocupar os vazios que o cotidiano lhe impôs quase como uma extensão sua, o que é figurado pelo costume da personagem de andar com o animal entre os seios.

O ambiente em que se passa o livro ajuda a criar o cenário dramático que acompanha os infortúnios de Damaris: uma vila de pescadores a uma hora de Buenaventura, uma cidade de veraneio que dá a sensação de ser quase abandonada na baixa temporada e é habitada por pessoas cuja existência é desprezada pelo resto do mundo; um não-lugar à la Marc Augé, onde as pessoas são todas iguais, vulneráveis às vontades do mar e às mudanças do tempo; um espaço que não permite aos seus moradores fugir do script, ser diferente do que se é esperado — no caso dos homens, provedor de suas famílias; no das mulheres, mães e esposas.

Ao não conseguir ser mãe, Damaris converte-se numa espécie de desajustada para si mesma. Somado a isso, os julgamentos que recebeu a vida inteira acionam nela as inseguranças que estavam adormecidas dentro de si e são o combustível que a levam diretamente para uma posição de carência e dependência emocional da cachorra.

O livro apresenta vários paralelos e metáforas que apontam para as fases da maternidade: o já citado carregar da cachorra entre os seios como representação da relação simbiótica de Damaris com Chirli nos primeiros meses de vida, onde a cachorra é inteiramente dependente dela, e a raiva que domina a personagem quando nota que a canina não é mais um prolongamento de si mesma, mas um ser à parte com desejos e vontades próprias, são somente algumas delas.

Uma das inspirações para a obra está no momento vivido por Quintana, que a escreveu enquanto amamentava, após ser mãe aos 42 anos, e para quem o fato de pintarem a maternidade enquanto uma coisa intrinsecamente boa nega às mães o direito de expressarem outros sentimentos.

Em entrevista para a editoria de cultura da Folha de S. Paulo, a Ilustrada, ela diz: “Minha sensação é que nossas mães e avós não nos contaram a história completa. Falavam da maternidade como se fosse uma coisa idílica e maravilhosa, um estado de realização e pureza no qual não cabiam as emoções negativas ou feias.”

Quando a cachorra cresce e foge, assumindo a animalidade inerente a sua natureza, Damaris sente mais uma parte de si sendo tirada. De repente, o amor é substituído pelos sentimentos já familiares: culpa, abandono, solidão e, mais tarde, violência. A cachorra já não é mais a filha maternada com amor que outrora fora, mas a pródiga, rebelde e ingrata. Nesse momento, não é apenas a relação entre elas que muda, mas a própria Damaris.

Aquela tinha sido sua cachorra: Damaris a tinha resgatado, carregado em seu sutiã, ensinou-a a comer, a fazer as necessidades nos lugares adequados e a se comportar como devia até que ficou adulta e não precisou mais dela. Damaris a seguiu por todo o jardim até a escadaria e a viu descer por ali, cruzar a angra, que estava seca, alcançar o outro lado, se sacudir, seguir seu caminho entre os garotos que voltavam da escola e se perder no povoado, já sem olhar mais para trás. Damaris não chorou, mas quase.

O que nos é apresentado em A Cachorra é a maternidade real sem qualquer maquiagem, com todos os sentimentos que recalcamos à vista: as projeções, a criança interior machucada, a inveja, o que fomos e o que não fomos. Sobre isso, Quintana completa: “Na Colômbia, e creio que na América Latina como um todo, há uma ideia de mãe como um ser perfeito. Mas as mães, antes de serem mães, são seres humanos. Seres complexos dentro dos quais se aninham todas as emoções. Incluindo aquelas que se contrapõem ao amor.”

Em pouco mais de 100 páginas, A Cachorra comporta uma narrativa intensa, densa, forte e tocante; ao nos apresentar Damaris, ela nos apresenta o outro lado de nossas matriarcas e os sentimentos que não souberam nomear, de forma que é impossível não sair outra pessoa da experiência que Pilar Quintana nos proporciona.

Pilar Quintana (1972) é autora de outros três romances: Conquilhas en la lengua (2003), Coleccionistas de polvos raros (2007) — com o qual venceu o XVIII Premio de Novela La Mar de Letras — Conspiración iguana (2009), além da coletânea de contos Caperucita se come al lobo (2012). Em 2007 foi selecionada pelo Hay Festival, no País de Gales, como um dos 39 escritores com até 39 anos de maior relevância da América Latina. Seus contos já foram traduzidos para vários idiomas em periódicos e publicações por todo o mundo. Com A Cachorra (2017), Quintana se consolida como uma das principais vozes da literatura contemporânea latino-americana.

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Maria Eduarda Lima
CARPAS
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Pernambucana, graduanda em Relações Internacionais (UEPB) e apaixonada por literatura latino-americana.