A romantização do patriarcado: conheça o movimento Tradwife

A mais nova tendência da internet questiona os paradigmas da modernidade e convida jovens moças a adentrar em um universo de idealizações dos costumes dos anos 1950.

Laís Helena Farias
CARPAS
7 min readJun 12, 2023

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Em um vídeo publicado no TikTok, uma criadora de conteúdo publica o questionamento: “você realmente se dispõe a depender financeiramente de um homem?”, seguido da resposta na legenda “sim, eu farei isso!”, com um emoji feliz, e sequências de imagens românticas de casais dos anos 1950.

A influenciadora em questão é a Estee Williams, uma jovem estadunidense de 25 anos, que, até o momento, registra 115 mil seguidores no TikTok, onde expõe o seu estilo de vida de uma esposa convencional que segue os papéis de gênero impostos socialmente. Também conhecidas como “stay at home wife” (SAHW) — em português: esposa que fica em casa — tais mulheres constituem o movimento Tradwife, que se pauta pelo retorno aos papéis de gênero impostos pelo patriarcado, no qual a figura feminina carrega a função de cuidadora do lar, reprodutora da espécie humana, tutora principal dos filhos e submissa ao marido.

No final da década de 2010, a tendência cresceu exponencialmente nas redes sociais, com a ajuda de mulheres que compõem uma narrativa de necessidade da exploração da real feminilidade, da importância de cuidar do lar e desenvolver um comportamento hierárquico de gênero, reafirmando estereótipos ligados à condição feminina. A dicotomia abordada, implicitamente, é inserida entre o feminino e o feminismo. Segundo algumas tradwives (esposas tradicionais), o movimento feminista excluiu as dimensões acerca do que é “ser feminina”, optando por promover uma “energia masculina” ao estilo girlboss, onde as mulheres são extremamente independentes e se voltam para o mercado de trabalho, ignorando seu papel perante a sociedade patriarcal (ZAHAY, 2022).

Entre a estética Tradwife e a Ultradireita

Sob esse prisma, é essencial ressaltar a importância da estética no que tange à atração de mulheres para o movimento Tradwife. Traduzido como “esposa tradicional”, as tradwives revivem um padrão estadunidense dos anos 1950, idealizado por meio de propagandas da época, compostas por figuras femininas com longos vestidos coloridos, vivendo uma vida doméstica feliz, de voluntária submissão ao marido e dever de cuidar dos filhos.

Nesse sentido, o movimento se pauta por uma estética romantizada da década de 1950, em conjunto com argumentações provocantes, que buscam fazer as mulheres se questionarem sobre a realidade da condição feminina na modernidade, na qual, ao passo que algumas se dividem entre vida materna e trabalho, outras almejam focar apenas no aspecto profissional. Sob esse viés, o apelo visual — indispensável na era da internet — é entrelaçado com a justificativa de que abraçar a feminilidade é a chave para se tornar uma mulher de verdade.

[…] a feminilidade abrange uma série de atributos e práticas relacionados aos papéis tradicionais de gênero. No entanto, nada disso é mais comum ou significativo do que a exibição de um eu feminino. O eu feminino é composto por um rosto e um corpo tradicionalmente belos, vestidos com roupas da moda, porém modestas, complementados por um comportamento elegante e até mesmo pela elocução. Essas exibições físicas funcionam não apenas como uma estratégia para atrair homens, mas também como um argumento visual para a naturalidade da vida tradicional (ZAHAY, 2022, p. 175 — tradução própria).

Portanto, é interessante analisar que, através de uma estética aparentemente “inocente” e válida perante às premissas da liberdade de expressão, há um viés político escondido. O uso de dog whistles — os “apitos de cachorro”, que funcionam como um chamado entendido apenas por um determinado grupo — são repetidamente feitos, por meio de palavras-chave, ao exemplo de “feminilidade”, “busca do eu feminino”, “mulher de valor” e “energia feminina”. Nesse cenário, o discurso neorreacionário se encontra não só no visual estético, como também no que as esposas tradicionais influenciadoras afirmam, por meio de seus ensinamentos sobre como ser hiperfeminina e atrair homens — não qualquer homem, mas os que exalam uma masculinidade hegemônica dos papéis de gênero.

A narrativa antifeminista é percebida ao demonizar o feminismo enquanto um fenômeno que “esvaziou” a verdadeira condição feminina, forçando mulheres à buscarem independência financeira e emancipação intelectual. Sob esse viés, Zahay (2022) aponta a relação entre Ultradireita e gênero, uma vez que o conteúdo Tradwife possui uma mensagem ambígua e política, intrinsecamente e implicitamente (ZAHAY, 2022, p. 171). Por conseguinte, a mensagem captada pelo espectador é a de que viver como uma esposa do lar é a maneira correta de se estar em um casamento e de construir uma família, apelando para uma nostalgia de um passado “glorioso e puro”, onde as hierarquias de gênero eram naturalizadas e a ordem era o principal pilar da sociedade; em contraste com o presente “torpe” e dotado de adversidades que “corrompem” as mulheres.

No imaginário Tradwife, uma mulher de verdade deve se comportar com discrição, elegância e submissão ao sexo masculino, ao compreender sua função doméstica e biológica designada. Outros aspectos também estão englobados nos estereótipos femininos, ao exemplo da preocupação prioritária com moda e beleza. Sendo assim, a força do algoritmo, através das palavras-chave usadas pelo movimento, pode fazer com que o conteúdo invada outras bolhas e capte a atenção de mais mulheres para uma comunidade que aparenta ser receptiva e compreensível.

Ademais, é conveniente destacar o movimento Tradwife enquanto um fenômeno ocidental, e que tem por foco mulheres brancas. A noção desse recorte geográfico e de cor também influencia no entendimento do conceito de Tradwife, visto que se volta para o cenário estadunidense da década de 1950, onde as mulheres negras eram desumanizadas institucionalmente, devido à segregação racial vivenciada no país. Acerca dessa lógica, há uma limitação de quem pode desfrutar do “sonho americano” e gerar mais vidas para a espécie humana — as mulheres ocidentais brancas, ao estilo da propaganda idealizada dos anos “baby boom”.

Uma romantização questionável: o passado era realmente bom?

Tendo em vista toda essa noção de Tradwife, vale a pena se perguntar: o passado realmente era bom?

Nem tudo eram flores. O casamento ainda era visto como a maior realização da vida de uma mulher, e devia ser feito em sua mocidade, nos moldes da castidade pregadas pelos costumes tradicionais da Igreja. Devido a isso, os focos se voltavam para a construção de conhecimentos domésticos e de conselhos amorosos, sendo a escola relegada ao segundo plano. O aspecto intelectual feminino era sempre negligenciado, impedido de florescer, ou questionado, diante dos homens. Uma das formas de se informar acerca de etiqueta e modos de se portar socialmente e como parceira romântica eram através das revistas femininas, escritas por homens.

A idealização da década de 1950 também não conta sobre os casamentos violentos e a crueldade masculina entre quatro paredes. A dependência financeira e a visão da sociedade sobre mulheres divorciadas eram apenas algumas razões pelas quais a permanência em um casamento mal-sucedido se fazia comum. As esposas se viam obrigadas a suportar traições frequentes, abusos e agressões, tendo em vista que a lei não as amparava, pelo contrário, as culpavam por toda a violência acometida a elas. Lendo as revistas, as mulheres eram ensinadas sobre a necessidade da submissão ao marido, de nunca reclamar com ele ou se posicionar acerca de algum ponto do casamento (GABRIEL, 2016). Se apanhou, foi porque despertou a ira do marido.

Tradução: “Mostre-a que é um mundo dos homens”.

Diante do exposto, é inegável afirmar que os direitos da mulher nunca estão totalmente garantidos pelo Estado, que, por séculos, privilegiou a condição masculina e as hierarquias de gênero tradicionais. Ademais, a romantização do passado no movimento Tradwife também inclui a romantização da sobrecarga feminina como cuidadora dos filhos e do lar, além da submissão aos homens e a idealização do patriarcado. Ao invalidar toda a conquista dos direitos femininos e a importância insofismável do feminismo, é corrido o risco de um retrocesso, atingindo todas as mulheres. As tradwives também estão inclusas na agenda da Direita Alternativa, que se pauta por um caráter nacionalista, neorreacionário, supremacista e de saudosismo pelos costumes tradicionais.

Não, o passado não era bom — para as mulheres. A luta pelos direitos femininos ainda está longe de ser finalizada, uma vez que as violências diárias ainda se fazem presentes. As idealizações do movimento Tradwife são construções irreais de cenários que nunca aconteceram, e que obedecem a uma agenda política da Ultradireita.

REFERÊNCIAS

GABRIEL, Dulce. A Mulher nos Anos 50. Alqueidão da Serra, jan/2016. Disponível em: https://alqueidao.com/2016/01/22/a-mulher-nos-anos-50/. Acesso em 28 mai. 2023.

LIU, Bruna. Limpar, cozinhar e ser submissa: quem são as tradwives, que vivem como nos anos 1950. Marie Claire, mar/2023. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/comportamento/noticia/2023/03/limpar-cozinhar-e-ser-submissa-quem-sao-as-tradwives-que-vivem-como-nos-anos-1950.ghtml. Acesso em 28 mai. 2023.

VEJA. Lei que mudou a história dos negros dos EUA faz 50 anos. Revista Veja, jul/2014. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/lei-que-mudou-a-historia-dos-negros-dos-eua-faz-50-anos. Acesso em: 28 mai. 2023.

YES I AM. Direção: Estee Williams. Produção: Estee Williams. Tik Tok, 10 jun. 2022. 20seg. Disponível em: https://www.tiktok.com/@esteecwilliams/video/7107756348745452842?embed_source=71223855%2C121331973%2C120811592%2C120810756%3Bnull%3Bembed_card_play&refer=embed&referer_url=revistamarieclaire.globo.com%2Fcomportamento%2Fnoticia%2F2023%2F03%2Flimpar-cozinhar-e-ser-submissa-quem-sao-as-tradwives-que-vivem-como-nos-anos-1950.ghtml&referer_video_id=7200868713480867115. Acesso em 28 mai. 2023.

ZAHAY, Megan L. What “Real” Women Want: Alt‐Right Femininity Vlogs as an Anti‐Feminist Populist Aesthetic. Media and Communication, 2022, Volume 10, Issue 4, pp. 170–179.

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Laís Helena Farias
CARPAS
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Estudante de Relações Internacionais (UEPB), coordenadora informal do GEPURI-UEPB, pesquisadora em temas de Política Externa Brasileira.