A socialização da mulher negra
“Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias necessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engasgando.”
– Audre Lorde (escritora caribenha-americana, mulherista, feminista lésbica e militante dos direitos civis.)
A socialização e a construção identitária de gênero são processos importantes do desenvolvimento psicológico humano. O pensamento de socialização ocidental caracteriza-se pela dicotomia mente/corpo herdada pelos gregos. Esse modo de pensar deu origem às separações homem/natureza e mente/corpo e, assim, à dicotomia masculino/feminino, que foram colocados em posições hierárquicas diferentes. Dessa maneira, a mulher representaria o corpo, caracterizando tudo o que diz respeito à natureza e aos instintos (como o maternal, por exemplo) e ao homem caberia o papel da mente, sendo teoricamente o ser mais racional e objetivo.
A partir da manutenção desse pensamento, a criança, ao nascer, precisa se integrar na sociedade como ‘’homem’’ ou ‘’mulher’’ e é aí que os papéis sociais são destituídos e construídos. Assim, a noção de feminilidade e masculinidade é adotada, transformando os indivíduos em membros da sociedade.
Dessa forma, se você nasce com todas as características biológicas masculinas, você é automaticamente rotulado como homem e colocado numa posição dominante em relação as mulheres. Ao nascer com todas as características femininas, você é condicionada desde o nascimento a ser submissa, solicita, e delicada.
A situação da mulher negra, no entanto, é muito mais complexa, pois esta é duplamente estigmatizada: pela sua condição de mulher e pela questão racial.
‘’Por não serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. (…) Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.’’ — Grada Kilomba.
Sendo assim, a socialização de mulheres negras começa verdadeiramente quando esta ingressa na escola ainda criança e não é um processo tranquilo e fluído como acontece com as crianças brancas, pois instituições de ensino são espaços onde as relações estão entremeadas por um conjunto de elementos que tem no geral a finalidade de uniformizar, homogeneizar, padronizar comportamentos, atitudes e oportunidades. As situações de constrangimentos e discriminações vivenciados no espaço da escola por negras (os) é uma constante. Portanto, ao longo de seu processo de socialização as mulheres negras vem criando estratégias de sobrevivência diante do racismo para se defenderem nos espaços que se faz presente como na escola, no trabalho e lazer, e durante toda a sua vida ela precisa fazer uso dessas estratégias para sobreviver tanto ao racismo quanto a misoginia.
Ao longo da história, a sociedade negra no geral tem sido obrigada a se adaptar na sociabilidade e culturas próprias dos brancos, sofrendo desigualdades impostas pela ordem social competitiva, pelas condições econômicas e raciais. Na sociedade brasileira, a população negra é o grupo que “tem sido, ao longo de nossa história, a maior vítima da profunda desigualdade racial vigente em nossa sociedade”. (Castro, s/d. p. 5) e quem mais sofre são, certamente, as mulheres negras. Sua expectativa de vida é cinco anos menor que a da mulher branca. Sua renda per capita mensal é de 0,76 SM. É o que faz com que a diferença entre sua remuneração e a remuneração média de um homem branco atinja a média de 295% (Santanna & Paixão & Alexandre, 2000, p. 17). Em todos os níveis, as relações de convívio na sociedade tornam-se problemáticas na medida em que não se tem explícito qual é o pertencimento real do negro nessa sociedade, já que sua posição real está “camuflada” pelo ‘’mito da democracia racial’’.
O que observamos é que, devido a marcação pelo estigma da escravidão, mediante o que esta colocado no inconsciente coletivo da sociedade de que o negro é inferior, às mulheres negras se destinam, muitas vezes, os trabalhos sem qualificação e instrução. Sobre elas pesa também o fardo das representações como objeto sexual e não é raro se deparar com esteriótipos seja no físico quanto no psíquico. Em “Dicionário da Escravidão Negra do Brasil”, Clóvis Moura nos traz uma ideia sobre a construção da identidade erotizada na mulher negra durante o período escravocrata brasileiro:
“Escrava doméstica, negra ou parda, escolhida, quase sempre pela senhora, para os serviços domésticos, especialmente nas casas grandes do Nordeste. Acompanhava a cadeirinha na qual a senhora saía a passeio e podia ser ama-de-leite, cozinheira, copeira, confidente das filhas do senhor, alcoviteira ou objeto de uso sexual do seu dono ou de outros membros da família. Transformou-se em símbolo erótico para uma certa tendência literária. Dava crias na casa-grande sem que isso causasse espanto, mas os seus filhos, mesmo sendo do senhor ou dos seus filhos e parentes, continuavam escravos. Esta sexualização da imagem da mucama é responsável por muitas lendas e fabulações, especialmente no tocante aos ciúmes das suas senhoras em relação aos maridos (…)”.
O processo de socialização e aceitação pode ser doloroso para grande parcela da sociedade pois, para se fazer ‘’homem’’ ou ‘’mulher’’, seguindo os padrões da cultura em que se está inserido, fazem-se necessários diversos rituais para legitimar certa identidade de gênero, determinado pelos parâmetros estéticos e comportamentais vigentes que variam de acordo com a temporalidade e espacialidade.
A questão é que, para a mulher, essas regras são mais evidentes, tornando as exigências e autoimposições mais fortes. Para a mulher negra e racializada, entretanto, a raça acaba sendo um catalisador dessas imposições, por apresentar ainda a exigência pelo repúdio ao corpo racializado. Procedimentos ou técnicas de representação que incluem determinada forma de vestir-se, calçar, andar, falar, dentre outras inúmeras possíveis inscrições, aos quais as mulheres estão subjugadas colocam a mulher negra em um patamar ainda mais alto de vulnerabilidade. Poucos estudos no Brasil abordam a intersecção de gênero e raça/etnia, como disse Claudia Cardoso, assim como as representações de gênero racializadas e os efeitos sobre a vida das mulheres nas mais diferentes áreas, reforçando a necessidade das mulheres negras reconhecerem o ponto de vista especial que a marginalidade as impõe e fazer uso dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar e criar uma contra-hegemonia (Hooks, 2015/1984).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, L.M.X. Mulheres negras e direitos humanos no Brasil. [s]: s.n, [1999].
HOOKS, b. Mulheres Negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, n.16, 2015.
KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Berlim: Unrast, 2008.
LORDE, Audre. Textos escolhidos. Disponível em: <difusionfeminista@riseup.net> Acessos em 05 de abril de 2020.