As dificuldades de acesso à saúde reprodutiva no Brasil: um recorte de raça e classe
Neste artigo, busca-se compreender como a opressão racial e patriarcal, e as desigualdades sociais podem limitar o acesso à saúde sexual e reprodutiva.
Os direitos reprodutivos objetivam garantir o exercício individual, livre e responsável da sexualidade e da reprodução humana. Para isso, é importante defender a autonomia e autodeterminação reprodutiva, ou seja, o direito de decidir e estar livre de todas as formas de violência e coerção que afetam a vida sexual e reprodutiva das mulheres (FERNANDES et. al., 2018, p. 1). No entanto, é constantemente negado à mulher as decisões relativas ao seu corpo, especialmente, a sua vida sexual e reprodutiva.
A negação dos direitos reprodutivos se apresenta desde o não acesso à informação, até as barreiras para aquisição de métodos contraceptivos ou maior autonomia da saúde reprodutiva. Ainda hoje, não há uma educação sexual satisfatória no Brasil que informe como a mulher pode cuidar da sua saúde reprodutiva. Há uma defasagem de políticas e programas sociais que ampliem essas informações e torne-as acessíveis.
Além disso, os serviços de saúde limitam o uso dos métodos contraceptivos, não informando a gama de possibilidades e escolhas disponíveis à mulher na hora de evitar gravidez, submetendo-as ao uso indiscriminado de métodos como o anticoncepcional, mesmo em situações de não adaptação. Em outras situações, na garantia de sua saúde reprodutiva, muitas mulheres são submetidas a situações de violência, quando, por exemplo, precisam pedir permissão ao parceiro para colocar o DIU.
Somente no ano de 2022, foi aprovado no senado o Projeto de Lei (PL) 1.941/2022 que facilita o acesso à contracepção. Essa PL, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima, em homens e mulheres de capacidade civil plena, para submeter-se a procedimento voluntário de esterilização. Esse limite mínimo de idade não é exigido de quem já tenha pelo menos dois filhos vivos. Além disso, a PL proíbe a necessidade de aprovação do cônjuge na decisão pela esterilização.
Segundo reportagem realizada por Victoria Damasceno (2021), para a revista Folha de São Paulo, planos de saúde têm exigido o consentimento do companheiro para autorizarem o procedimento de inserção do DIU (dispositivo intrauterino e método contraceptivo), em mulheres casadas. Além de uma violência patriarcal e expressão de uma prática de controle sobre o corpo feminino, essa exigência aumenta as barreiras de acesso ao método contraceptivo, pois diante de uma cultura machista ou desacordo sobre os desejos de reprodução, esse direito pode ser inviabilizado.
Segundo Valenga (2023), foram diversos os ataques à saúde reprodutiva da mulher pelo governo Bolsonaro, dentre eles, tentativa de barrar a distribuição de absorventes para a população vulnerável, lançamento de uma caderneta de gestante que incentiva violência obstétrica e o salto da mortalidade materna no percentual de 77% em dois anos.
Outras ações desse governo, que reduziram os direitos sexuais e reprodutivos, foi o fim da Rede Cegonha, criada em 2011 e referência na assistência ao pré-natal, parto e puerpério. Ela se apresenta como uma rede de cuidados que assegura para as mulheres o direito ao planejamento reprodutivo, à atenção humanizada à gravidez, parto, abortamento e puerpério; e para as crianças o direito ao nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis.
A Rede Cegonha foi substituída, em 4 de abril de 2022, pela Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI) apresentando diversos problemas. “Um dos pontos criticados da portaria é a ausência dos Centros de Parto Normal (CPN), que oferecem assistência especializada às gestantes de risco habitual. Além disso, ao contrário da Rede Cegonha, o RAMI não especifica a presença da Enfermagem Obstétrica e Obstetrizes entre os profissionais que atuam na rede” (CATARINAS, 2022).
Com o governo Lula, em 2023, todas as portarias que traziam retrocessos aos direitos sexuais e reprodutivos foram revogadas, resultando no retorno da Rede Cegonha e na revogação da caderneta de gestante mencionada anteriormente.
A violência e a negação de direito, na saúde sexual e reprodutiva, é agravada quando direcionamos nossa análise para a mulher negra. Soma-se a ela, uma dinâmica perversa de opressão, que permeia raça, gênero e classe social. O sistema capitalista se estrutura em cima das diversas formas de opressão, se apropriando delas e adaptando-as aos seus interesses. Com isso, a mulher negra, muitas vezes, tem sua vida permeada por todas essas opressões, encontrando-se no final da hierarquia social. No entanto, as opressões não existem apresentando graus distintos de gravidade, mas existem concomitantemente, somando as formas de violência que uma mulher pode sofrer, quando também é negra, pobre e LGBT+.
“No Brasil, historicamente, os indicadores de saúde materna e neonatal sempre demonstraram um quadro de desvantagem para as negras […], o que se observa é um menor número de consultas de pré-natal, de exames ultrassonográficos, mais cuidado pré-natal considerado inadequado, maior paridade e mais síndromes hipertensivas dentre as negras. Ademais, também são penalizadas por não serem recebidas na primeira maternidade que procuram e por receberem menos analgesia” (FERNANDES et. al., 2018, p. 7).
Conforme analisa Fernandes et. al. (2018), identifica-se a descriminação racial no atendimento ofertado pelos serviços de saúde, com ausência ou redução de práticas de acolhimento, de escuta qualificada e menor cortesia pelos(as) profissionais. “Um estudo com afro-americanas nos mostra que mulheres negras são mais propensas do que as brancas a sofrer discriminação, receber cuidados médicos abaixo do padrão e a submeter-se a cirurgias desnecessárias, como histerectomias, repercutindo nos direitos sexuais e autonomia reprodutiva” (FERNANDES et. al., 2018, p. 9).
A luta pela justiça reprodutiva e sua conceituação surge em 1994, protagonizado pelo movimento de mulheres afro-americanas, partindo do entendimento de que a justiça reprodutiva fornece um ambiente político para um conjunto de ideias, aspirações e visões que englobam as questões relacionadas à justiça social e aos direitos humanos (SANTOS et. al., 2019). Ou seja, o acesso à saúde reprodutiva perpassa as condições socioeconômicas das mulheres, assim como o combate ao racismo. Garantir os direitos reprodutivos, é também garantir condições dignas de vida e existência.
As desigualdades sociais que mulheres negras enfrentam, tem sua incidência na dificuldade de acesso à informação e aos métodos que lhes dão autonomia nas decisões relativas à saúde reprodutiva. Dessa forma, gostaria de elencar alguns dados que comprovam a realidade dessas mulheres.
Pesquisa desenvolvida pela ONG Criola, no período entre 2020 e 2021, demonstra que, dentre as pessoas que se encontram em situação de extrema pobreza, 38,8% são mulheres negras, enquanto 11,9% são mulheres brancas. Quanto à insegurança alimentar grave, 72,3% são negras(os). No acesso ao saneamento básico, dentre a população negra, 42,8% não têm esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial; e 44,5% não possuem ao menos um serviço de saneamento (quase metade das residências). Entre a população branca, 26,5% não tem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial; e 27,9% não possuem ao menos um serviço de saneamento (quase ¼ das residências).
Outro dado importante é o acesso ao trabalho. A taxa de desemprego no período entre 2020 e 2021 foi de 13,3%, porém, entre pessoas negras, esse percentual foi de 32,3%, sendo 18,2% mulheres negras. A taxa entre mulheres não negras foi de 11,3%. Com relação à taxa de subutilização, que calcula as pessoas que estão desempregadas e desistiram de procurar emprego; entre mulheres negras foi de 40,5%, enquanto, entre mulheres não negras, foi de 26,4%. Quanto à renda média salarial, identifica-se que a população negra possui renda mais baixa do que a média brasileira, que é de R$2.436,00. Nesses dados, demonstra-se que para mulheres negras, a média de rendimento é de R $1.573,00, enquanto, mulheres não negras possuem uma renda média de R $2.660,00.
Esses dados escancaram as disparidades das situações econômico-sociais enfrentadas pelas mulheres negras no país. Com isso, podemos inferir que além do racismo que essas mulheres sofrem na garantia de sua saúde reprodutiva, a questão da classe social se apresenta como mais um fator determinante.
Quanto aos direitos sexuais e reprodutivos, os dados também são alarmantes. A mortalidade materna, entre 2020 e 2021, foi de 1.576 casos. Dentre estes, 65,93% foram mulheres negras e 30,14%, mulheres brancas. Quanto às diversas formas de violências, os dados demonstram que as mulheres negras foram a maiores vítimas de estupro (57,28%) comparado às mulheres brancas (34,90%), de violência repetição (49,56% comparado a 43,73%), de violência física (51,42% comparado a 38,90%), violência psicológica e moral (54,29% comparado a 38,90%) e violência sexual (56,21% comparado a 35,67%). Quanto aos óbitos por aborto, 45,21% foram mulheres negras e 17,81% mulheres brancas.
“Ainda de acordo com a pesquisa, as puérperas pretas apresentam menor vinculação com a maternidade, maior ausência de acompanhante e sofrem menos intervenções obstétricas necessárias. De acordo com os dados produzidos pelo Observatório Obstétrico Brasileiro de Covid-19, até maio de 2021, as mortes maternas entre mulheres negras foi 77% superior às das brancas. O Brasil representa 75% das mortes maternas pela doença no mundo todo”.
Diante do exposto, enfatizamos a urgência da luta pela justiça reprodutiva, pela garantia da autonomia e autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres e a necessária superação desse sistema de opressões ao qual se estrutura o capitalismo.
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REFERÊNCIAS
DAMASCENO, Victoria. Seguros de saúde exigem consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/08/seguros-de-saude-exigem-consentimento-do-marido-para-insercao-do-diu-em-mulheres-casadas.shtml#:~:text=Planos%20de%20sa%C3%BAde%20t%C3%AAm%20exigido,no%20interior%20de%20S%C3%A3o%20Paulo. Acesso em: 13 fev. 2023.
FERNANDES, Elionara Teixeira Boa Sorte (et.al). Autonomia reprodutiva e racismo: repercussões na saúde reprodutiva de mulheres negras. 2018. In: XX REDOR, 2018, Salvador.
PORTAL CATARINAS. Retrocessos nos Estados Unidos pode impactar no direito ao abordo no Brasil. 2022. Disponível em: https://catarinas.info/retrocesso-nos-estados-unidos-pode-impactar-no-direito-ao-aborto-no-brasil/#Caderneta. Acesso em: 13 fev. 2023.
PORTAL CATARINAS. Ano novo, velhos desafios no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. 2023. Disponível em: https://catarinas.info/novo-ano-velhos-desafios-no-campo-dos-direitos-sexuais-e-reprodutivos/. Acesso em: 13 fev. 2023.
OLIVEIRA, Juliana Ribeiro. “Você nem tá com tanta dor assim”: o racismo na atenção à saúde reprodutiva das mulheres negras no DF. Orientador: Lucélia Luiz Pereira. 2022. 126 p. Dissertação (Serviço Social) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.
REDE FEMINISTA DE SAÚDE. O cenário brasileiro de injustiça reprodutiva para meninas e mulheres negras: sistematização de dados. 2021.
SANTOS, Carmem Regina Gardin dos (et.al). Mulheres negras: direitos sexuais e reprodutivos. In: XXIV Seminário interinstitucional de ensino, pesquisa e extensão, 2019, Cruz Alta.