As dificuldades de acesso à saúde reprodutiva no Brasil: um recorte de raça e classe

Neste artigo, busca-se compreender como a opressão racial e patriarcal, e as desigualdades sociais podem limitar o acesso à saúde sexual e reprodutiva.

Pâmela Lins
CARPAS
8 min readFeb 17, 2023

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Os direitos reprodutivos objetivam garantir o exercício individual, livre e responsável da sexualidade e da reprodução humana. Para isso, é importante defender a autonomia e autodeterminação reprodutiva, ou seja, o direito de decidir e estar livre de todas as formas de violência e coerção que afetam a vida sexual e reprodutiva das mulheres (FERNANDES et. al., 2018, p. 1). No entanto, é constantemente negado à mulher as decisões relativas ao seu corpo, especialmente, a sua vida sexual e reprodutiva.

A negação dos direitos reprodutivos se apresenta desde o não acesso à informação, até as barreiras para aquisição de métodos contraceptivos ou maior autonomia da saúde reprodutiva. Ainda hoje, não há uma educação sexual satisfatória no Brasil que informe como a mulher pode cuidar da sua saúde reprodutiva. Há uma defasagem de políticas e programas sociais que ampliem essas informações e torne-as acessíveis.

Além disso, os serviços de saúde limitam o uso dos métodos contraceptivos, não informando a gama de possibilidades e escolhas disponíveis à mulher na hora de evitar gravidez, submetendo-as ao uso indiscriminado de métodos como o anticoncepcional, mesmo em situações de não adaptação. Em outras situações, na garantia de sua saúde reprodutiva, muitas mulheres são submetidas a situações de violência, quando, por exemplo, precisam pedir permissão ao parceiro para colocar o DIU.

Somente no ano de 2022, foi aprovado no senado o Projeto de Lei (PL) 1.941/2022 que facilita o acesso à contracepção. Essa PL, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima, em homens e mulheres de capacidade civil plena, para submeter-se a procedimento voluntário de esterilização. Esse limite mínimo de idade não é exigido de quem já tenha pelo menos dois filhos vivos. Além disso, a PL proíbe a necessidade de aprovação do cônjuge na decisão pela esterilização.

Segundo reportagem realizada por Victoria Damasceno (2021), para a revista Folha de São Paulo, planos de saúde têm exigido o consentimento do companheiro para autorizarem o procedimento de inserção do DIU (dispositivo intrauterino e método contraceptivo), em mulheres casadas. Além de uma violência patriarcal e expressão de uma prática de controle sobre o corpo feminino, essa exigência aumenta as barreiras de acesso ao método contraceptivo, pois diante de uma cultura machista ou desacordo sobre os desejos de reprodução, esse direito pode ser inviabilizado.

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Segundo Valenga (2023), foram diversos os ataques à saúde reprodutiva da mulher pelo governo Bolsonaro, dentre eles, tentativa de barrar a distribuição de absorventes para a população vulnerável, lançamento de uma caderneta de gestante que incentiva violência obstétrica e o salto da mortalidade materna no percentual de 77% em dois anos.

Outras ações desse governo, que reduziram os direitos sexuais e reprodutivos, foi o fim da Rede Cegonha, criada em 2011 e referência na assistência ao pré-natal, parto e puerpério. Ela se apresenta como uma rede de cuidados que assegura para as mulheres o direito ao planejamento reprodutivo, à atenção humanizada à gravidez, parto, abortamento e puerpério; e para as crianças o direito ao nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis.

A Rede Cegonha foi substituída, em 4 de abril de 2022, pela Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI) apresentando diversos problemas. “Um dos pontos criticados da portaria é a ausência dos Centros de Parto Normal (CPN), que oferecem assistência especializada às gestantes de risco habitual. Além disso, ao contrário da Rede Cegonha, o RAMI não especifica a presença da Enfermagem Obstétrica e Obstetrizes entre os profissionais que atuam na rede” (CATARINAS, 2022).

Com o governo Lula, em 2023, todas as portarias que traziam retrocessos aos direitos sexuais e reprodutivos foram revogadas, resultando no retorno da Rede Cegonha e na revogação da caderneta de gestante mencionada anteriormente.

A violência e a negação de direito, na saúde sexual e reprodutiva, é agravada quando direcionamos nossa análise para a mulher negra. Soma-se a ela, uma dinâmica perversa de opressão, que permeia raça, gênero e classe social. O sistema capitalista se estrutura em cima das diversas formas de opressão, se apropriando delas e adaptando-as aos seus interesses. Com isso, a mulher negra, muitas vezes, tem sua vida permeada por todas essas opressões, encontrando-se no final da hierarquia social. No entanto, as opressões não existem apresentando graus distintos de gravidade, mas existem concomitantemente, somando as formas de violência que uma mulher pode sofrer, quando também é negra, pobre e LGBT+.

“No Brasil, historicamente, os indicadores de saúde materna e neonatal sempre demonstraram um quadro de desvantagem para as negras […], o que se observa é um menor número de consultas de pré-natal, de exames ultrassonográficos, mais cuidado pré-natal considerado inadequado, maior paridade e mais síndromes hipertensivas dentre as negras. Ademais, também são penalizadas por não serem recebidas na primeira maternidade que procuram e por receberem menos analgesia” (FERNANDES et. al., 2018, p. 7).

Conforme analisa Fernandes et. al. (2018), identifica-se a descriminação racial no atendimento ofertado pelos serviços de saúde, com ausência ou redução de práticas de acolhimento, de escuta qualificada e menor cortesia pelos(as) profissionais. “Um estudo com afro-americanas nos mostra que mulheres negras são mais propensas do que as brancas a sofrer discriminação, receber cuidados médicos abaixo do padrão e a submeter-se a cirurgias desnecessárias, como histerectomias, repercutindo nos direitos sexuais e autonomia reprodutiva” (FERNANDES et. al., 2018, p. 9).

Créditos: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

A luta pela justiça reprodutiva e sua conceituação surge em 1994, protagonizado pelo movimento de mulheres afro-americanas, partindo do entendimento de que a justiça reprodutiva fornece um ambiente político para um conjunto de ideias, aspirações e visões que englobam as questões relacionadas à justiça social e aos direitos humanos (SANTOS et. al., 2019). Ou seja, o acesso à saúde reprodutiva perpassa as condições socioeconômicas das mulheres, assim como o combate ao racismo. Garantir os direitos reprodutivos, é também garantir condições dignas de vida e existência.

As desigualdades sociais que mulheres negras enfrentam, tem sua incidência na dificuldade de acesso à informação e aos métodos que lhes dão autonomia nas decisões relativas à saúde reprodutiva. Dessa forma, gostaria de elencar alguns dados que comprovam a realidade dessas mulheres.

Pesquisa desenvolvida pela ONG Criola, no período entre 2020 e 2021, demonstra que, dentre as pessoas que se encontram em situação de extrema pobreza, 38,8% são mulheres negras, enquanto 11,9% são mulheres brancas. Quanto à insegurança alimentar grave, 72,3% são negras(os). No acesso ao saneamento básico, dentre a população negra, 42,8% não têm esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial; e 44,5% não possuem ao menos um serviço de saneamento (quase metade das residências). Entre a população branca, 26,5% não tem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial; e 27,9% não possuem ao menos um serviço de saneamento (quase ¼ das residências).

Outro dado importante é o acesso ao trabalho. A taxa de desemprego no período entre 2020 e 2021 foi de 13,3%, porém, entre pessoas negras, esse percentual foi de 32,3%, sendo 18,2% mulheres negras. A taxa entre mulheres não negras foi de 11,3%. Com relação à taxa de subutilização, que calcula as pessoas que estão desempregadas e desistiram de procurar emprego; entre mulheres negras foi de 40,5%, enquanto, entre mulheres não negras, foi de 26,4%. Quanto à renda média salarial, identifica-se que a população negra possui renda mais baixa do que a média brasileira, que é de R$2.436,00. Nesses dados, demonstra-se que para mulheres negras, a média de rendimento é de R $1.573,00, enquanto, mulheres não negras possuem uma renda média de R $2.660,00.

Esses dados escancaram as disparidades das situações econômico-sociais enfrentadas pelas mulheres negras no país. Com isso, podemos inferir que além do racismo que essas mulheres sofrem na garantia de sua saúde reprodutiva, a questão da classe social se apresenta como mais um fator determinante.

Quanto aos direitos sexuais e reprodutivos, os dados também são alarmantes. A mortalidade materna, entre 2020 e 2021, foi de 1.576 casos. Dentre estes, 65,93% foram mulheres negras e 30,14%, mulheres brancas. Quanto às diversas formas de violências, os dados demonstram que as mulheres negras foram a maiores vítimas de estupro (57,28%) comparado às mulheres brancas (34,90%), de violência repetição (49,56% comparado a 43,73%), de violência física (51,42% comparado a 38,90%), violência psicológica e moral (54,29% comparado a 38,90%) e violência sexual (56,21% comparado a 35,67%). Quanto aos óbitos por aborto, 45,21% foram mulheres negras e 17,81% mulheres brancas.

“Ainda de acordo com a pesquisa, as puérperas pretas apresentam menor vinculação com a maternidade, maior ausência de acompanhante e sofrem menos intervenções obstétricas necessárias. De acordo com os dados produzidos pelo Observatório Obstétrico Brasileiro de Covid-19, até maio de 2021, as mortes maternas entre mulheres negras foi 77% superior às das brancas. O Brasil representa 75% das mortes maternas pela doença no mundo todo”.

Diante do exposto, enfatizamos a urgência da luta pela justiça reprodutiva, pela garantia da autonomia e autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres e a necessária superação desse sistema de opressões ao qual se estrutura o capitalismo.

REFERÊNCIAS

DAMASCENO, Victoria. Seguros de saúde exigem consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/08/seguros-de-saude-exigem-consentimento-do-marido-para-insercao-do-diu-em-mulheres-casadas.shtml#:~:text=Planos%20de%20sa%C3%BAde%20t%C3%AAm%20exigido,no%20interior%20de%20S%C3%A3o%20Paulo. Acesso em: 13 fev. 2023.

FERNANDES, Elionara Teixeira Boa Sorte (et.al). Autonomia reprodutiva e racismo: repercussões na saúde reprodutiva de mulheres negras. 2018. In: XX REDOR, 2018, Salvador.

PORTAL CATARINAS. Retrocessos nos Estados Unidos pode impactar no direito ao abordo no Brasil. 2022. Disponível em: https://catarinas.info/retrocesso-nos-estados-unidos-pode-impactar-no-direito-ao-aborto-no-brasil/#Caderneta. Acesso em: 13 fev. 2023.

PORTAL CATARINAS. Ano novo, velhos desafios no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. 2023. Disponível em: https://catarinas.info/novo-ano-velhos-desafios-no-campo-dos-direitos-sexuais-e-reprodutivos/. Acesso em: 13 fev. 2023.

OLIVEIRA, Juliana Ribeiro. “Você nem tá com tanta dor assim”: o racismo na atenção à saúde reprodutiva das mulheres negras no DF. Orientador: Lucélia Luiz Pereira. 2022. 126 p. Dissertação (Serviço Social) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.

REDE FEMINISTA DE SAÚDE. O cenário brasileiro de injustiça reprodutiva para meninas e mulheres negras: sistematização de dados. 2021.

SANTOS, Carmem Regina Gardin dos (et.al). Mulheres negras: direitos sexuais e reprodutivos. In: XXIV Seminário interinstitucional de ensino, pesquisa e extensão, 2019, Cruz Alta.

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A Revista Carpas discute fenômenos sociais, políticos e culturais através das lentes de gênero no Brasil e no mundo.

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Written by Pâmela Lins

Assistente social e Pesquisadora no PPGSS-UFAL. Escritora na revista Carpas. Literatura e política em uma perspectiva marxista.