As mães, os presos e os filhos

Maria Paula Maciel
CARPAS
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8 min readMar 24, 2023
Monumento “Tortura nunca mais”, criação de Demétrio Alburqueque, na Rua da Aurora, cidade do Recife — PE (Fonte: Memórias da Ditadura)

“Oi, pai. Saudade!” foi assim que começou minha entrevista com uma testemunha da história brasileira. Hoje, é celebrado internacionalmente o Dia do Direito à Verdade Sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas.

A Carpas é uma revista que preza diversidade, a transmissão de novos olhares sobre temas que podem ser “batidos”, mas que ainda incomodam alguns setores da sociedade brasileira. Claro, poderia escrever sobre o que simboliza esse dia e lembrar que o Brasil já teve, repetidas vezes, incontáveis seres humanos que tiveram seus direitos dilacerados.

Em vez disso, aproveitando a chegada do 1º de abril, data que se relembra os 59 anos do início dos anos de chumbo não só apenas no Brasil, mas na América Latina, trago uma reflexão na forma de crônica: a história ouvida dentro de filmes, livros de história, matérias de jornal, pode, para muitos, parecer uma história no passado. Entretanto, ela é uma marca eterna na história de pessoas: pais, mães, filhos, irmãos, netos, amigos, primos. Pensando nisso, escrevo resumindo em três grupos: as mães, os presos e os filhos.

As mães

Quando se fala das mães dos presos políticos, pensamos nelas como heroínas que buscaram colocar luz à verdade. Já eu, vejo diferente: no ofício de mãe, existe um desespero que apenas quem sentiu na pele sabe. O futuro incerto de um filho que desaparece não só da sua vida, mas da história de um país inteiro, se desfibra em misto de sentimentos de esperança, medo e luta. Com quase mais nenhuma dessas mulheres vivas, o que me restou foi olhar para o passado e procurar em cartas, filmes e entrevistas compreender um terço desse sentimento.

Minha viagem começou com o filme Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, da cineasta Carol Benjamin. Nele, a diretora busca compreender o passado do pai, Cid Benjamin — preso em 1969, ainda adolescente, pelo sequestro do embaixador americano. O filme, apesar de seu tom investigativo, mais me parece uma grande carta de amor: é sobre a maternidade. Para isso, a cineasta buscou as cartas que sua avó, Iramaya Benjamin (1924–2012), enviou na tentativa de salvar o filho dos terrores da prisão, da tortura, e de um possível assassinato. O motivo que decidi começar por Iramaya é simples: ela foi uma das criadoras do Comitê Brasileiro pela Anistia, no ano de 1977.

O Comitê Brasileiro pela Anistia foi responsável pela realização de passeatas, comícios, criador do lema: “Anistia ampla, geral e irrestrita”.

Pôster do filme “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, disponível no site da Globoplay.

Essas mulheres não queriam ser heroínas, elas queriam seus filhos à salvo. Política por necessidade, com urgência de resgate. Iramaya é apenas um dos exemplos das mães da democracia. Sem elas, me questiono: “onde estaria o Brasil?” É… era necessário uma mãe para salvar o Brasil.

O final da história de Iramaya pode ser visto feliz, pois, apesar dos traumas vividos e cicatrizes eternas na história de sua família, salvou seu filho, salvou muitos filhos. Foi mãe de muitos, de tantos que não tinham como serem acolhidos.

O mesmo não pode ser dito sobre tantas outras mães.

Era fevereiro de 1974, Fernando Santa Cruz estava no Rio de Janeiro para pular o carnaval quando desapareceu. Elzita Santa Cruz, em busca de seu filho, foi em quartéis do Rio e de São Paulo. Foi apenas em 2009 que sua morte foi revelada com dias após seu desaparecimento”

Aqui, não cabem dados ou estatísticas. A ordem natural da vida é a mãe morrer antes dos filhos, mas, nesse caso, a crueldade humana perpassa e faz com que pensemos o inimaginável: como uma mãe se despede quando não existe nem um corpo?

Elzita, em busca de respostas, se eternizou na história: tornou-se símbolo de resistência e dos direitos humanos. A espera pelo filho fez com que ela nunca mudasse de casa:

Manteve, também, o quarto de Fernando. Dona Elzita dizia que não tinha ânsia de encontrar quem matou Fernando; queria o direito de enterrá-lo. “É uma dor muito grande porque o único crime que ele [Fernando] cometeu foi defender a igualdade social, essas coisas pelas quais eu luto até hoje”, afirmou em 2009, enquanto pedia providências ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

(Tirado da aba Biografias da Resistência, no site Memórias da Ditadura, autor não revelado).

Assinatura de Elzita Santa Cruz (acervo pessoal)

Elzita Santa Cruz morreu aos 105 anos, quase metade desse tempo foi passado perguntando: “onde está meu filho?”. E, em uma reflexão pessoal, acredito que essa mãe resistiu tantos anos de vida movida pela vontade de se despedir.

Os presos

Recomecei esse trecho umas cinco vezes. Como falar dos presos? Como falar dessas pessoas, desses seres humanos que foram capturados, torturados e, até mesmo, mortos?

Não tem como.

Juntando informações produzidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), por comissões estaduais da verdade, por entidades de Direitos Humanos, foi possível contar, aproximadamente, 450 nomes de mortos e desaparecidos. Todos sabemos que o número de mortos é superior.

Foram ceivados tantos Direitos Humanos, que julgo ser impossível citar todos: mulheres eram estupradas por militares, homens levavam choques elétricos. Mães eram separadas de seus filhos, eram presas ainda grávidas.

Então, como se colocar no lugar de alguém que passou por isso? Eu conheço histórias, conheço pessoas, mas, não acho possível. Então, eu escolho a poesia.

Chico de Assis, foi preso em 1970 e foi solto em 1979, como afirmou seu advogado Paulo Henrique Maciel :

Ele foi solto via pedido de livramento condicional requerido por mim. Decisão de Theodulo Miranda. Porém, o procurador militar recorreu a decisão. Fui ao STM para apressar o julgamento. Com a decisão do STM, ele foi solto. A Lei da Anistia permitiu que fosse reintegrado ao seu (antigo) cargo.

E foi assim que, em 27 de novembro de 1979, Chico de Assis atravessou os portões da Penitenciária Barreto Campelo.

Com ele, levou um caderno de brochuras datilografas a que ele chamou na apresentação do seu livro de “um conta-gotas, na resistência”. Sobre seus escritos, ele define:

“Em rabiscos, versos soltos, textos inacabados anotações dispersas ou meros insights, a literatura cumpriu seu papel habitual de recriação da vida.”

(Chico de Assis, na apresentação do seu livro Cárceres da Memória).

Ainda no livro, ele explica que foi na prisão que sua relação com a poesia tornou-se mais íntima. Ao ler seu livro, notei como, apesar de preso, um tema era recorrente: a vontade de viver. Com versos como “na antessala do verso, visito a vida”. Quis trazer a vida de Chico à essa crônica por uma razão: focamos tanto nos abusos sofridos, nos relatos históricos, que esquecemos de parar e olhar para esses presos políticos: o que eles sentiam? O que pensavam? O que imaginavam do futuro? Tinham tempo de sentir medo?

A resposta que encontrei no livro Cárceres da Memória foi: viver. Eles queriam viver. Seguem abaixo alguns versos de Chico:

Cárceres da Memória (2017). Fonte: acervo pessoal

Os filhos

“Esta é uma carta de amor”. É assim que inicia a carta feita por Francisco Julião, escrita no cárcere, para sua filha Isabela. Sim, eu disse que tentaria trazer olhares diferentes para pessoas que tiveram seus direitos engolidos nesse dia do Direito à Verdade.

Essa carta — que virou um livro, “Até quarta, Isabela”, raro de achar e verdadeiro tesouro histórico brasileiro — é o maior exemplo que eu poderia trazer. Nas suas breves 80 páginas, Julião escreve tudo que imagina ser possível para sua filha, Isabela. Ele tenta ensiná-la sobre a vida, sua preciosidade, com suas belezas e claras injustiças, caso ele não sobrevivesse ao cárcere.

Francisco Julião, felizmente, foi solto em 1965 e exilado no México, onde permaneceu até ser anistiado. A carta existe como o relato de todos os pensamentos que um pai pode ter sobre o medo de deixar uma filha desamparada. Um dos momentos do livro que mais me comovem é quando ele escreve para filha sobre o valor de ter uma colher para comer, coisa que era rara nos quartéis.

Mas, e esse filhos? Muitos não possuem respostas. Carol Benjamin fez um documentário tentando investigar o passado do pai porque as memórias — certamente doloridas e trumaticas — eram demais para que o pai aguentasse relata-las. Os pais e mães que foram presos se tornam enigmas pros seus filhos que tentam, a qualquer custo, entender à eles.

O direito à verdade honra a esses filhos. Os que não tiveram seus pais e mães presentes porque a ditadura os tirou do ninho. É a inversão da síndrome do ninho vazio. São cicatrizes que não pensamos quando falamos de honrar os mortos, de tirar a camada de névoa que ainda escondem as memórias da ditadura. Todos nós brasileiros merecemos saber a verdade. Os filhos, mais ainda.

Escrevi esse texto em primeira pessoa por isso. Escolhi escrever sobre o tema por isso. Sou filha de um preso político, advogado dos presos de Itamaracá e participante da Comissão da Verdade de Pernambuco. Também sou prima — distante - de Elzita Santa Cruz. Eu cresci com a memória da ditadura, cresci sabendo a importância do direito à verdade. Cresci ouvindo relatos, indo para lançamentos de livros, rodas de poesias e tantas outras coisas que relembram dos anos de chumbo e suas vítimas. Para mim, nunca foi dado o luxo da ignorância. E no Brasil, quem de nada sabe acaba sendo mais feliz, pois não faz ideia como esse país, tão lindo em tantas coisas, pode ter uma mancha tão grande e sagrenta na sua memória.

Paulo Henrique Maciel, meu pai, preso no congresso de Ibiuna em 1968. Quando solto se formou em direito e tornou-se advogado de vários presos políticos entre eles Chico de Assim e Ricardo Zaratinni.

Gostaria de acabar esse texto com uma nota feliz. Que os tempos sombrios são uma memória na vida eterna de famílias inteiras. Entretanto, não é possível.

Segundo Paulo Henrique Maciel a anistia é:

O apaziguamento de um país conflagrado. No Brasil, por pressão dos militares, os torturadores, homicidas e sequestradores foram perdoados, ao contrário da Argentina. Lá, Vilela morreu na cadeira, numa situação humilhante.

Nesse dia do Direito à Verdade Sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas, lembro que o brasileiro ainda não teve direito à verdade por completo e muitos criminosos responsáveis pela ditadura morreram em situações dignas enquanto famílias ainda perguntam onde estão seus filhos e seu pais.

Carlos Brilhante Ustra morreu deitado numa cama. O antigo presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, elogiou um torturador, um assassino: um homem que não deveria ter direito à anistia. Marielle Franco foi assassinada há cinco anos, ninguém sabe quem foi o mandante do crime.

Sobre essas pessoas que ajudaram no desmonte do Brasil, torturadores e genocidas, eu afirmo, eu grito. Por Marielle, por Cid, por sua mãe (Iramaya), e sua filha (Carol), por Elzita, por Fernando, por Chico, pelo meu pai, Paulo e por mim: para essas pessoas, SEM ANISTIA!

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Maria Paula Maciel
CARPAS
Writer for

Recifense convicta e Pernambucana bairrista. Mestranda em Estudos Culturais pela USP, redatora da Revista Carpas. Cinema, música, saudosismos culturais.