#Cardume — Manosfera: fenômeno digital de opressão feminina

Com o surgimento da internet, esperava-se a democratização de opiniões e um pacífico progresso da sociedade em escala mundial através da crescente interconexão humana; entretanto, não é bem isso o que vivemos hoje.

Revista Carpas
CARPAS
10 min readMar 20, 2023

--

por Laís Helena Farias

Imagem: Extinction Rebellion/Helena Smith

Novas modalidades de opressão e degradação da figura feminina foram difundidas, iniciando outro capítulo da história da luta das mulheres pela sua condição e sobrevivência numa estrutura patriarcal que persiste em reafirmar suas hierarquias insustentáveis, silenciando e inferiorizando as mulheres em papéis de gênero que não possuem mais espaço na modernidade (SUÁREZ, 2022).

Sob a narrativa de uma “guerra cultural” que está depredando os valores ocidentais, a misoginia encontra espaço para se expandir e perpetuar seu ciclo de violência, que se eleva cada vez mais, pela mão de homens que acreditam ter um direito de dominação sob a condição feminina.

A explosão do Gamergate

Em 2014, a toxicidade machista do universo dos videogames veio à tona com o Gamergate. Mascarado pelo propósito de debater sobre a ética do jornalismo gamer, o caso foi originado após o fim do relacionamento entre o programador Eron Gjoni e a desenvolvedora de jogos Zoe Quinn.

A inconsequente exposição de Quinn pelo seu ex-namorado, mediante um texto publicado na internet, no qual afirmava que Gjoni sofreu uma traição com o jornalista Nathan Grayson, levou seu público-alvo majoritariamente masculino a iniciar uma campanha de ódio contra a desenvolvedora, acusando-a de garantir boas avaliações nos seus jogos por meio de favores sexuais.

O Gamergate se espalhou pelos chans da internet, — locais underground que reúnem, em sua maioria, adolescentes e jovens do sexo masculino — estimulando ações em grupo no intuito de assediar, perseguir e ameaçar Quinn. Por conseguinte, o fenômeno foi estendido a outras mulheres envolvidas no meio dos videogames, como a cientista política e crítica de jogos Anita Sarkeesian e a desenvolvedora de jogos Brianna Wu.

Uma comunidade de homens que odeia mulheres

A comunidade dos jogos está indiretamente ligada ao universo channer. Os chans, ou fóruns da internet, são páginas de conversação em formato de imageboard, — postagem de uma foto, seguida de um comentário — que são divididas em subtópicos e estão espalhadas por todas as camadas da internet, desde a superfície até a deep web, onde se encontram chans menores e mais extremistas (BAELE; BRACE; COAN, 2021).

Duas características do modelo designado pelos fóruns são favoráveis aos usuários, como também à manutenção do site: o anonimato dos indivíduos que acessam e fazem postagens, e a efemeridade do conteúdo, que funciona por meio de um mecanismo que deleta as publicações após um certo número de comentários. Em primeiro plano, nos primórdios dos fóruns que datam do final dos anos 1990, seu conteúdo se limitava a conversas acerca de animes e jogos.

Com efeito, a ascensão da Ultradireita no cenário internacional influenciou o discurso jovem, que seguiu o roteiro ideológico extremista de absorver uma cosmovisão paranoica e apocalíptica, culpando os avanços dos direitos das mulheres, a intensificação da imigração, a igualdade racial e, principalmente, o politicamente correto, como sementes do colapso do Ocidente. Ao misturar frustrações pessoais e ódio, a denominada Manosfera nasce sob a égide da Direita Alternativa nos anos 2000, com os blogs conspiracionistas dos fundadores da Alt-Right, corrente de pensamento essencialmente supremacista e antidemocrática.

Fonte: Unqualified Reservations, de Mencius Moldbug — o “príncipe da Red Pill” e um dos pioneiros da Alt-Right.

Dessa forma, a Manosfera se caracteriza por um conjunto de comunidades que, através de um background misógino e antifeminista, estabelecem uma rede de apoio de supremacia masculina, reunindo-se, geralmente, nos chans de conversação, para buscar suporte nas suas causas.

Ao partir da premissa enviesada sobre a existência de uma sociedade que gira em torno das mulheres (ginocêntrica), tomando como argumentos os avanços pelo direito feminino e garantias contra a violência de gênero, os indivíduos da Manosfera afirmam que a opressão advinda das mulheres se tornou real por meio do feminismo.

Scaptura e Boyle (2020), a partir de Branscombe et al. (1999), concluem que o movimento masculinista deriva de duas ameaças abstratas: as ameaças externas de status, onde os homens sentem o abalo nas estruturas patriarcais consolidadas na sociedade, devido ao empoderamento feminino; e as ameaças internas de aceitação, na qual sentem a necessidade de se reafirmar homens, por meio da masculinidade hegemônica, enfatizando papéis de gênero tóxicos tanto para as mulheres, como para a condição masculina.

O preconceito está enraizado em um sentimento de direito a certos privilégios e recursos entre o grupo dominante; o medo de que o grupo subordinado esteja planejando tomar esses recursos resulta na percepção de ameaça — BLUMER, 1958, apud SCAPTURA; BOYLE, 2020, p. 280.

Em suma, infere-se que o teor supremacista, exalado pelos homens, se encontra em um grau tão intrínseco às estruturas sociais, que sua crença sob a dominação do corpo feminino já está consolidada como uma espécie de “norma”, na qual a subversão da mulher é expressa pelo “não”, pela rejeição a alguma proposta feita pelo homem.

Sob esse prisma, a figura feminina, ao impor seus limites, é posta como opressora, perversa, cruel. As vontades e desejos das mulheres são implicitamente invalidados pelo complexo de superioridade masculino; quando seu ego e sua “honra” são feridos, sentem a necessidade de canalizar seus sentimentos através da violência.

Não importa quanto dano cause ao psicológico e físico feminino, seu modus operandi é egoísta, enxergando as mulheres como um objeto a ser utilizado de maneira sexual ou agressiva. A misoginia desumaniza a condição feminina.

Quais as divergências da Manosfera?

A Manosfera está dividida em quatro principais vertentes, que partem do mesmo pressuposto da opressão feminina e necessidade de reafirmação de hierarquias de gênero; todavia, possuem suas particularidades e se distinguem em suas soluções.

Fonte: A Bad Zoom Date Led Me to the Online Black Manosphere

Os ativistas pelo direito dos homens (men’s rights activists — MRAs) são a esfera mais militante do conglomerado, e acreditam que o empoderamento feminino prejudicou os homens, uma vez que as mulheres “ganharam” um poder sexual para objetificar e visualizar o sexo masculino como portadores de uma potencial fonte financeira. Ademais, argumentam que os homens são, em muitos casos, vítimas de falsas acusações de estupro; obrigados a servir ao Estado através do alistamento miliar obrigatório; entram em acordos de divórcio desiguais; entre outras situações, sempre colocando as mulheres no papel de vilãs e perversas dominadoras.

Os artistas da sedução (pickup artists — PUA) se popularizaram no meio masculino no início da década de 2020, e contam com um viés de necessidade de reafirmação da masculinidade como uma maneira de atrair mulheres. Inúmeros canais no YouTube, Instagram e Tik Tok comportam os “gurus da paquera”, que vendem seu conteúdo misógino para homens que buscam maior sucesso nos relacionamentos. Entre as técnicas discutidas por esses gurus, estão incluídas desde mudanças estéticas, até estratégias de manipulação, agressividade e assédio. Também estimulam o engano às parceiras femininas, com o fito de “testar” seu nível de interesse financeiro, ao passo que é necessário diminuir a mulher, reduzindo sua autoestima e seu valor. Fitzgerald (2020, p. 33) escreve que os artistas da sedução promovem a misoginia, em troca de lucros, seguidores e a consolidação da masculinidade hegemônica.

Já a corrente dos MGTOW, ou homens que seguem seu próprio caminho, é uma comunidade que promove a desistência de relacionamentos, casamento e filhos, argumentando que as mulheres não são confiáveis e são “biologicamente programadas” para destruir a vida dos homens (FITZGERALD, 2020, p. 33). Enxergam o feminismo como principal ferramenta de opressão masculina, e o isolamento parcial de contatos com mulheres é considerado como a alternativa ideal de seguir a vida.

Os celibatários involuntários, ou incels — involuntary celibates — , se autodenominam dessa forma porque se julgam incapazes de engatar relações sexuais ou amorosas com outra mulher. Nesse sentido, toda sua raiva e frustração são despejadas no sexo feminino, através dos diversos chans dedicados a comunidade incel existentes na internet. Em uma narrativa indubitavelmente misógina, afirmam que o feminismo é um obstáculo a uma “ordem natural” de que todos os homens possuem o direito de ter uma parceira (FITZGERALD, 2020, p. 36). A visão determinista dos incels discorre que a rejeição sofrida é fruto da falta de beleza e condições financeiras de alguns homens, sendo a preferência das mulheres por homens másculos, fortes, bonitos e bem-sucedidos. Essa premissa também coloca o sexo feminino como ambicioso e interesseiro.

De ataques virtuais à realidade

A Manosfera articula seu ódio contra as mulheres por meio de inúmeras formas. O caso do Gamergate foi apenas uma delas. O Comicsgate seguiu por uma lógica semelhante, quando funcionárias da Marvel foram atacadas na internet por usuários que demandavam o fim da politização e representatividade nos quadrinhos.

Os ataques por via das redes sociais são combinados em grupos ou fóruns, com táticas de trolling (ofensas provocativas), shitstorm (difamação em grande escala), doxxing (divulgação de dados pessoais) e da linguagem memética sarcástica e degradante (PRADO, 2021). O intuito é de gerar uma reação emocional elevada visando culpabilizar as vítimas como “exageradas” ou “sensíveis demais” para conviver na internet.

No auge do ódio e do desejo insensível por eliminar o Outro, se encontram os ataques terroristas de autoria de membros da Manosfera, também conhecidos pela nomenclatura de “tiroteios em massa”. Conforme Fitzgerald (2020, p. 35), os incels são a subcultura mais violenta, estando associados a até dez assassinatos em massa. Em 2014, o Massacre de Isla Vista, nos Estados Unidos, popularizou a comunidade e inspirou outros terroristas a cometerem ataques similares.

José Cardoso, 50, chora em frente a um memorial improvisado para um estudante de 20 anos da UCSB, Christopher Ross Michaels-Martinez, do lado de fora de uma delicatessen em Santa Bárbara, Califórnia, em 25 de maio de 2014. Imagem: Lucy Nicholson — Reuters.

As pílulas da frustração

A filosofia da Manosfera propõe a existência de um mercado sexual, onde é necessário que os homens compitam com as mulheres, — em termos de hierarquia — e entre si, para conquistar parceiras. Essa mistura confusa de sentimentos acerca do sexo feminino, envolvendo ódio, possessividade, objetificação e frustrações, atrai homens com baixa autoestima de todas as faixas etárias, para um discurso que pretende aumentar a “energia masculina” através de pensamentos misóginos.

A corrente das pílulas é inspirada em Matrix, trilogia das irmãs Lilly e Lana Wachowski. No primeiro filme da saga, o protagonista Neo precisa fazer uma escolha: a pílula vermelha, que mostrará a verdade oculta sobre o sistema; e a pílula azul, que permitirá que o personagem permaneça alienado em mentiras confortáveis. O vocabulário da Manosfera se apropria da metáfora para ressignificar seus termos.

Traduzindo, “tomar” a pílula vermelha consiste num despertar masculino para a “natureza cruel feminina”, que explora e humilha os homens. Diante dessa paranoia, surgem artigos, livros e outras leituras enviesadas que objetivam reforçar o machismo e uma suposta supremacia masculina, ensinando a tratar as mulheres de forma degradante, inferior e através de manipulações. O ciberespaço — especialmente os chans, redes sociais e sites — também é dotado de conteúdos misóginos.

A pílula vermelha é entendida em termos de impor a masculinidade hegemônica, por meio de estereótipos agressivos. Já a pílula azul é um sinônimo de “atestado de fraqueza”, no qual o homem prefere viver subordinado por mulheres, sendo desprezado e usado pela crueldade feminina. Outra pílula preocupante é a black pill, que consiste no suicídio como forma de findar o “sofrimento gerado pelo feminismo e pelas mulheres”.

Em resumo, é importante compreender a Manosfera como resultado de uma masculinidade hegemônica tóxica que prejudica homens e mulheres. O discurso agressivo e manipulador do movimento molda o pensamento de adolescentes e jovens na atualidade, que passaram por poucas experiências amorosas e/ou sexuais, e passam a acreditar que tais situações mal sucedidas os condenarão pela eternidade.

Outra variável desse aspecto é a monetização da misoginia, que entrelaça o capitalismo como parceiro da perpetuação das estruturas patriarcais, sem se preocupar com os resultados dessa aliança. Em consequência disso, o ódio da Manosfera colocam as mulheres como alvo principal de eliminação, as obrigando a permanecer à margem da sociedade, vivendo com medo de se expressar e de exercer sua liberdade sexual, devido às desconfianças que desencorajam as mulheres a manter uma relação com outros homens.

Laís Helena Farias é estudante de Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ultradireita e Relações Internacionais (GEPURI). Adora cultura pop e, por isso, criou o projeto autônomo politica.mp3, onde versa sobre acontecimentos políticos no cenário musical.

#Cardume é uma seção na Revista Carpas no qual convidamos mulheres, pessoas trans e não-bimárias a compartilharem conosco seus textos autorais de forma voluntária. Serão aceitos artigos de opinião, produções literárias, resenhas críticas sobre livros, filmes, músicas e de temas variados. Envie seu texto aqui.

REFERÊNCIAS

BAELE, Stephane J.; BRACE, Lewys; COAN, Travis G. Variations on a Theme? Comparing 4chan, 8kun, and Other chans’ Far-Right “/pol” Boards. Terrorism Research Initiative: Perspectives on Terrorism, February 2021, Vol. 15, №1 (February 2021), pp. 65- 80.

FITZGERALD, Kelly C. Mapping the Manosfere: a Social Network Analysis of the Manosphere on Reddit. Monterey: Naval Postgraduate School, 2020.

PRADO, Michele. Tempestade Ideológica — Bolsonarismo: a Alt-Right e o Populismo Iliberal no Brasil. São Paulo: Editora Lux, 2021.

RUFFO, Emanoella dos Santos. O Fenômeno Contemporâneo dos Incels: uma investigação psicanalítica. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2021. SCAPTURA, Maria N.; BOYLE, Kaitlin M. Masculinity Threat, “Incel” Traits, and Violent Fantasies Among Heterosexual Men in the United States. Feminist Criminology, Vol. 15(3), 2020, 278–298.

SUÁREZ, Agueda Gómez. Algoritmos, teletrabajo y otros grandes temas del feminismo digital. Capitulo 17: Aparatos ideológicos del patriarcado: La Manosfera. Madrid: Colección Conocimiento Contemporáneo, N.º 82, 1ª edición, 2022. GAGLIONI, Cesar. O Gamergate 5 anos depois. E seu papel para a extrema direita. Revista Nexo, 22 de agosto de 2019. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/22/O-Gamergate-5-anos-depois.-E-se u-papel-para-a-extrema-direita. Acesso em: 10 de março de 2023.

--

--

CARPAS
CARPAS

Published in CARPAS

A Revista Carpas discute fenômenos sociais, políticos e culturais através das lentes de gênero no Brasil e no mundo.