#Cardume — Copa do Mundo Feminina e os caminhos para a igualdade de gênero nos esportes

A Copa do Mundo Feminina da FIFA, sediada na Austrália e na Nova Zelândia, encerra sua edição 2023 com marcas históricas e novas promessas para o futebol feminino neste novo ciclo.

Revista Carpas
CARPAS
7 min readAug 23, 2023

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Por Vivian Campos

Imagem: Al Jazeera

Em sua nona edição, a competição mundial bateu pela primeira vez seu maior público desde a primeira Copa feminina, realizada na China em 1991, em parte pelo aumento de jogos realizados — dessa vez 32 seleções femininas se enfrentaram — mas sem dúvida também pelo alcance cada vez maior da modalidade feminina do esporte. A Copa é uma vitrine do crescimento do futebol feminino na última década, já em março deste ano mais de 91 mil pessoas assistiram uma disputa da Champions League, o maior número registrado em competições femininas.

Apesar dos avanços, é inegável a disparidade de investimentos e exibição em relação à modalidade masculina do esporte. No Brasil, essa é apenas a segunda Copa Feminina transmitida em TV aberta e a primeira vez que jogos da seleção foram considerados como ponto facultativo, prática já comum durante as exibições da Copa Masculina.

Durante três décadas, o futebol feminino foi proibido no Brasil. Entre 1941 e 1979, mulheres eram proibidas por lei de jogar sob o argumento de que o forte contato traria problemas de fertilidade. Apesar de se autodenominar “país do futebol”, a profissionalização da modalidade feminina do esporte é recente, foi só em 2013 que ocorreu o primeiro campeonato brasileiro de futebol feminino. Em 2019, com a audiência histórica atingida pelos jogos exibidos na TV aberta e o aumento do interesse do público geral, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) determinou que todos os times da Série A da categoria masculina do brasileirão deveriam manter equipes femininas, adultas e de base.

Apenas esse ano a delegação brasileira da Copa do Mundo contou com maioria de integrantes mulheres na equipe e teve seu maior investimento, sob a pauta da igualdade. Mesmo assim, mais uma vez, Marta, uns dos maiores nomes do futebol brasileiro e consagrada como um dos gênios do futebol feminino mundial, entrou em campo com chuteiras camufladas. Desde 2019, a jogadora premiada seis vezes como melhor do mundo e maior artilheira da seleção brasileira (feminina e masculina) negou propostas de patrocínio pela disparidade de valores ofertados para atletas homens e chamou atenção para a pauta da igualdade de gênero no esporte.

Essa discrepância também ocorre em outras delegações participantes da competição, seleções como Vietnã e África do Sul tem várias de suas jogadoras com jornada dupla, exercendo outras profissões além do futebol. Segundo dados da FIFpro, associação internacional que representa jogadores de futebol pelo mundo, um número expressivo de jogadoras tiveram que tirar licença não remunerada de outros trabalhos para conseguir disputar as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2023.

Os investimentos também chamam atenção pela diferença. Nesse ano, a FIFA vai pagar o maior valor até então nas premiações da competição, serão US$110 milhões ao todo, dez vezes mais do que o valor pago em 2015, mas, ainda assim, 4 vezes menor que o valor pago na última Copa masculina. No Qatar, em 2022, a FIFA desembolsou US$440 milhões só com premiações, ao juntar gastos com infraestrutura e hospitalidade, o valor investido chegou a US$1,7 bilhão. Apesar da diferença explícita, o discurso do presidente da FIFA, Gianni Infantino, é de que a igualdade de serviços e estrutura entre as modalidades feminina e masculina foi atingida.

Torcedora segura cartaz com dizeres “Paguem as mulheres canadenses”.

Em relação aos salários dos jogadores, essa desigualdade é ainda mais gritante. Mesmo jogadoras consideradas as mais bem pagas da categoria feminina, como Alex Morgan e Rapinoe dos Estados Unidos — que faturam cada uma cerca de US$5,7 milhões — estão muito atrás de nomes do mesmo peso na categoria masculino, como Cristiano Ronaldo que fatura cerca de US$137 milhões. Vale lembrar que o salário de um jogador de futebol envolve não só a quantia recebida de um clube, mas também patrocínios, premiações e taxas recebidas ao representar suas seleções nacionais. Ou seja, para superar a desigualdade salarial é preciso ir além das federações de futebol, mas reformular toda uma estrutura que vai desde a FIFA até patrocinadores do esporte.

Ainda em países em que o esporte é mais tradicional, as seleções femininas experimentam um ainda recente fortalecimento, com investimento em categorias de base. É o caso da Inglaterra e Espanha, que disputaram pela primeira vez a final da Copa, e da Colômbia, que chegou pela primeira vez às quartas de final, deixando para trás seleções fortes como Estados Unidos, que sozinho ganharam 4 das 9 Copas disputadas e são hegemonia indiscutível na modalidade. Ainda assim, as atletas continuam a travar lutas internas com suas federações por condições igualitárias de trabalho, a própria seleção inglesa foi negada bônus da federação por seu desempenho na Copa do Mundo e a tão consagrada seleção dos Estados Unidos apenas ano passado chegou a um acordo de igualdade de salários, após 6 anos de disputa judicial.

Para além da desigualdade salarial, o futebol feminino também enfrenta uma luta contra o sexismo. Ainda hoje, a maioria dos tomadores de decisão dentro das federações de futebol são formadas por homens, na própria FIFA apenas 7 dos 37 membros do conselho são mulheres e cerca de 74% dos técnicos são homens. A seleção espanhola, que garantiu o título na Copa de 2023, enfrenta desde o ano passado conflitos com a RFEF, Real Federação Espanhol de Futebol, após 15 jogadoras pedirem a demissão do técnico Jorge Vilda e de sua comissão devido aos seus métodos tóxicos de treinamento. A federação resolveu expor o pedido ao público e apoiar a permanência de Vilda enquanto 12 das 15 jogadoras não foram ao mundial. Em diversos momentos durante o avanço do time na competição, cenas de comemoração separadas entre as jogadoras e a comissão técnica explicitaram o clima mal resolvido da situação.

Já durante a entrega das medalhas às campeãs, Luis Rubiales, presidente da RFEF, deu um beijo na boca da jogadora Jenni Hermoso, que após o momento afirmou em live não ter gostado da situação. Após a declaração de Rubiales de que o momento foi um pico de alegria compartilhada entre amigos, a jogadora afirmou ter mudado de opinião e repetiu as palavras do presidente. Por causa da repercussão do gesto nas redes, Luis Rubiales pediu desculpas um dia após o ocorrido e afirmou ter sido um gesto sem má-fé, compartilhado num momento de felicidade. Amizade ou não, a prática comemorativa não é comum em competições masculinas e reforça discussões sobre os abusos e a vulnerabilidade das jogadoras, cuja luta por igualdade e melhores condições de trabalho, faz frente aos principais dirigentes do esporte, responsáveis pela manutenção de oportunidades das atletas.

Nouhaila Benzina (Imagem: CNN).

Com todos esses entraves a serem superados, a Copa de 2023 traz vitórias a serem celebradas pelo futebol feminino. O mundial bateu recordes de arrecadação, audiência e torcedores nos estádios, mais de 1 milhão de torcedores compareceram aos estádios ainda na fase de grupos. No Brasil, o canal de Youtube CazéTV registrou mais de 1 milhão de telespectadores simultâneos no jogo da seleção contra o Panamá. A exibição dos jogos na mídia televisa, que é forte no país, também registrou recordes de audiência na faixa de horário de transmissão dos jogos. Além disso, foram 8 novos times disputando pela primeira vez o mundial, a seleção marroquina foi a primeira nação árabe a disputar o mundial feminino e fez história ao chegar às oitavas de final. A zagueira marroquina Nouhaila Benzina foi a primeira jogadora a usar o hijab, vestimenta recomendada pela doutrina islâmica, em um jogo sênior de futebol feminino.

Para 2027, a promessa da FIFA é igualar os investimentos entre as modalidades masculinas e femininas. Muito ainda tem de ser garantido junto às federações: as vitórias da Copa de 2023 são um reflexo da luta de jogadoras pela profissionalização do futebol femino dentro de seus próprios países. A visibilidade e o interesse do público são aliados fortes na luta pela igualdade de gênero no esporte, mas é preciso ir além de assistir aos jogos do mundial. É preciso apoiar os times locais, as ligas nacionais, exigir condições de jogo profissional para as atletas desde as categorias de base, comprar a briga para fora de campo. O futebol feminino evoluiu a partir da luta de suas jogadoras e agora precisa de condições realmente justas para alçar novos voos.

Vívian Campos é estudante em Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), pesquisa Política Externa Brasileira durante o período ditatorial e tem o futebol como uma de suas paixões, apesar de não ter talento com a bola nos pés. Atualmente é uma das hosts do @driblenosacrescimos, podcast sobre futebol e Relações Internacionais, junto com outras mulheres que pesquisam o tema.

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