#Cardume — Dia Internacional para a Cooperação Sul-Sul: Fortalecendo Vínculos no Sul Global

O Dia Internacional da Cooperação Sul-Sul marca o reconhecimento da relação entre países do Sul Global.

Revista Carpas
CARPAS
7 min readSep 12, 2023

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Por Nayra dos Santos

XV encontro do BRICS em Johanesburgo, África do Sul.

Criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 2004, o Dia Internacional das Nações Unidas Cooperação Sul-Sul é celebrado no dia 12 de setembro. O estabelecimento da data marca o reconhecimento internacional da relevância da cooperação entre países subdesenvolvidos e em desenvolvimento como alternativa às relações assimétricas de poder — relações muito comumente observadas entre países do Norte para com o Sul Global.

Mas, afinal, o que é Cooperação Sul-Sul?

A Cooperação Sul-Sul (CSS) é definida pela ONU como um processo onde dois ou mais países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento logram o alcance de objetivos individuais ou mútuos a partir da troca de conhecimento, habilidades e recursos. Para além disso, se trata de uma modalidade de cooperação que propõe uma outra abordagem, distinta no que diz respeito à construção de uma agenda comum que beneficie ambas as partes, feita por meio do reconhecimento dos desafios comuns a ambos os países envolvidos no processo de cooperação. Esse reconhecimento se dá desde a constatação da realidade comum compartilhada entre os países que carregam o cunho de Sul Global e, a partir desta, do desenvolvimento de projetos de cooperação que visem sanar as lacunas identificadas em ambos os países passíveis de serem superados por meio da ajuda mútua.

Em contraposição à lógica de assistência verticalizada disseminada nos processos de cooperação entre países do Norte e do Sul Global, a Cooperação Sul-Sul rege-se sobre o fundamento da horizontalidade das relações entre os países — o que implica que as relações sejam baseadas em princípios como o de igualdade, respeito mútuo e não-interferência nos assuntos internos de outros países –, visando sobretudo a superação dos obstáculos comuns enfrentados por estes, sem necessariamente se basear no aporte financeiro como meio e fim para a cooperação. Dessa forma, a CSS consiste em uma combinação das dimensões técnica, política, científica e tecnológica, conjugadas com o objetivo de promover o desenvolvimento autônomo dos países do Sul Global a partir de seus próprios contextos.

Natalia Kanem, diretora do Fundo de População das Nações Unidas, e Hu Hongtao, diretor do Partners in Population and Development, organização intergovernamental que promove a cooperação Sul-Sul.

A Cooperação Sul-Sul como ferramenta para o desenvolvimento do Sul

A Cooperação Sul-Sul se popularizou como forma de cooperação internacional como é conhecida nos dias de hoje ainda em meados das décadas de 1950 e 1970, tendo como marco histórico a Conferência de Bandung em 1955, e por meio do “boom” das perspectivas decoloniais emergidas a partir do surgimento de novos Estados no Sistema Internacional, ocasionado pela conclusão dos processos de descolonização e independência de grande parte dos países asiáticos e africanos. Essa nova modalidade de cooperação surge, então, da necessidade por parte do Sul Global da produção de seus próprios meios de fazer conhecimento científico e de conduzir sua política internacional — antes subjugados e dominados pelo colonialismo e pela dependência para com o Norte.

A partir de sua popularização como instrumento de política externa para o desenvolvimento, a demanda pela CSS cresceu de modo substancial e se fortaleceu gradualmente na medida em que as epistemologias do Sul se tornaram centrais aos discursos e debates internacionais, sobretudo no que diz respeito aos fóruns e conferências convocadas pelas Nações Unidas — em especial a Conferência de Buenos Aires (1970) (que consolidou a CSS como se conhece atualmente), e a Conferência de Monterrey de Financiamento e Desenvolvimento (2002), já no século XXI.

É nos anos 2000 que a Cooperação Sul-Sul se vê em seu maior crescimento acentuado, segundo o IPEA (2019), devido à mudança de status de diversos países anteriormente considerados pobres, que a partir de então passaram a ser considerados como países emergentes. A dimensão da relevância dos debates acerca da CSS nesse período é evidenciada, é claro, pelo presente tema discutido — o estabelecimento do Dia da Cooperação Sul-Sul pelas Nações Unidas, ainda no início dos anos 2000.

A cooperação Sul-Sul oferece soluções solidárias para os desafios globais — UNCTAD

O Brasil e a Cooperação Sul-Sul

O Brasil, enquanto país em desenvolvimento, exerceu papel fundamental na disseminação e efetivação da Cooperação Sul-Sul como mecanismo de Política Externa para a superação do subdesenvolvimento da periferia mundial. Na segunda metade do século XX, tal papel foi notadamente executado por parte das políticas externas baseadas no paradigma da Política Externa Independente, que previa ações multilaterais de política externa como forma de contraposição à dependência do Norte. É tanto que a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) foi criada ainda em 1987 — se tornando a primeira agência de Cooperação Internacional oficialmente estabelecida entre os países em desenvolvimento. Segundo a ABC, até os dias atuais, a agência registra em torno de 4.000 iniciativas de Cooperação Sul-Sul, em mais de 100 países.

É a partir do ano de 2004, sob a presidência de Luiz Inácio “Lula” da Silva, que o Brasil alcança seu auge no que diz respeito à proliferação de acordos de CSS, que se estendem à todos os âmbitos em que esta possa ser exercida: técnica, tecnológica, educacional, na área de saúde, de meio ambiente, etc. O ambiente externo propício e a busca por uma multilateralização das parcerias por parte da Política Externa vigente possibilitaram uma maior abertura internacional para que o Brasil viesse a firmar diversos processos de Cooperação com países do Sul Global. Para além das características políticas e governamentais, os laços históricos e culturais que unem o Brasil e grande parte desses países é o que oportuniza e favorece a transmissão de conhecimento.

De acordo com a Agência Brasileira de Cooperação, a CSS é uma via de mão dupla: além de possibilitar o desenvolvimento dos país que recebe a Cooperação, favorece o desenvolvimento e a qualificação das instituições brasileiras e seus profissionais envolvidos. Entre as iniciativas de Cooperação Sul-Sul brasileiras mais reconhecidas internacionalmente e mais exitosas, destacam-se o Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) — no qual o Brasil possui projetos de cooperação com países da América do Sul, África e Ásia –, além de iniciativas de Cooperação educacional e técnica no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com destaque para a CSS realizada para com o Timor-Leste e a Angola.

Uma dimensão crítica acerca da efetividade da Cooperação Sul-Sul

Inegavelmente, a Cooperação Sul-Sul é uma ferramenta de política externa de vital importância para a superação das dificuldades e desafios comuns dos países do Sul Global. Seu enfoque crítico à hegemonia do Norte concede um caráter de resistência nacional e cultural, e de autonomia nas relações internacionais executadas por esses países.

Entretanto, a CSS está longe de ser um mecanismo essencialmente satisfatório e sem defeitos enquanto meio para sobrepujar o status periférico: a efetividade e implementação das políticas públicas possibilitadas pelos processos de Cooperação e o interesse individual por trás da seleção das iniciativas de Cooperação a serem ofertadas são algumas das possíveis críticas à Cooperação Sul-Sul.

Os debates acerca de como avaliar a efetividade da implementação das políticas públicas ofertadas pela CSS são muito mais profundos e englobam, em grande parte, a sociedade civil dos países que recebem a Cooperação. Os desafios giram em torno, principalmente, das dificuldades de estabelecer critérios para identificar a real situação de cada iniciativa de Cooperação, e como as populações estão sendo efetivamente beneficiadas por estas.

Além disso, infelizmente, é relativamente comum constatar que alguns dos processos de Cooperação não são de fato concluídos; o que acontece é que muitas vezes os processos são descontinuados ou se estendem por um período muito longo de tempo, e suas funções se tornam obsoletas.

Também é motivo de controvérsias os motivos por trás da seleção feita das iniciativas de CSS que os países demandam e acatam, uma vez que, o que muitas vezes se observa, é que a preferência por certos tipos de CSS e não outros é definida segundo o interesse próprio das elites dos países envolvidos nos processos de Cooperação — se tornando, portanto uma Cooperação na verdade feita entre elites e para elites.

Apesar das críticas apresentadas, a Cooperação Sul-Sul é a ferramenta mais efetiva de Cooperação Internacional entre potências periféricas e emergentes. Seu caráter crítico, que leva em conta os contextos individuais dos países e os desafios comuns, agrega um potencial gigantesco para que os países envolvidos possam superar suas dificuldades compartilhadas, e enfim se desenvolver autonomamente nos planos econômico e, principalmente, social.

Neste Dia Internacional da Cooperação Sul-Sul, portanto, temos muito o que celebrar — se trata de um caminho longo e próspero que já foi e segue sendo traçado. Mas não podemos parar por aqui. Ainda existe muito pelo que lutar para garantir a Cooperação para os povos que mais necessitam, e o debate acerca da CSS é fundamental para a continuidade e para o êxito dessa luta.

REFERÊNCIAS

Afinal, o que é Cooperação Sul-Sul? Disponível em: <https://atlanticoonline.com/afinal-o-que-e-cooperacao-sul-sul/>. Acesso em: 31 ago. 2023.‌

Apelo por mais solidariedade marca Dia para a Cooperação Sul-Sul | ONU News. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2022/09/1800641>. Acesso em: 31 ago. 2023.‌

Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em: <http://www.abc.gov.br/imprensa/mostrarconteudo/988#:~:text=No%20dia%2012%20de%20setembro>. Acesso em: 8 set. 2023.‌

CAIXETA, Marina Bolfarine. A cooperação Sul-Sul e as epistemologias do Sul: novos referenciais para a inovação de iniciativas e produção de conhecimento. Conjuntura Austral, v. 6, n. 32, p. 4–18, 2015.

LEITE, P. S. O Brasil e a Cooperação Sul-Sul em três momentos de política externa: os governos Jânio Quadros/João Goulart, Ernesto Geisel e Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.

Nayra Cecília Beserra dos Santos é pernambucana naturalizada e é estudante de Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Atualmente, pesquisa os temas de Política Externa Brasileira, especialmente no século XXI, e teorias periféricas das Relações Internacionais. É apaixonada por gatos e pelas possibilidades apresentadas pelas perspectivas das abordagens do Sul Global nas RI. Nas horas vagas, gosta de ler um bom livro ou de cozinhar ao som de sua playlist favorita.

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