#Cardume — Gênero nas religiões afro-brasileiras: o papel fundamental das mulheres na Casa das Minas

Revista Carpas
CARPAS
Published in
6 min readApr 11, 2023

Por Maria Eduarda Diniz

As religiões afro-brasileiras são conduzidas pela força de ressignificação dos sistemas religiosos africanos nas terras do Brasil e enquanto um lugar promissor de expressão e produção contra diferenças socioculturais; além disso, consolidam-se como espaço de afirmação de identidade cultural e também de luta contra as opressões.

São, antes de tudo, plurais, uma vez que o terreiro é construído sob a base da valorização da diversidade brasileira.

Sobre isso, Bastide (1971) relata que

A religião africana […] suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes e todavia diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não pode viver fora da matéria e, se essa lhe falta, ele faz uma nova.

O estudo dessas religiões ao longo do século XX se desdobrou em duas vertentes centrais: a busca pelos africanismos e a ênfase no estudo das transformações e rearticulações das religiões em suas novas condições sociais.

É inegável a importância dos templos afro-brasileiros como ferramenta de transformação social e cultural, seja pela sua capacidade de criar novas formas de expressão e produção cultural, seja pelo seu potencial de empoderamento das comunidades negras e outras minorias.

É nesta perspectiva que surge a Casa das Minas.

Fundada em São Luís do Maranhão no século XIX, a Casa das Minas é variante da religiosidade afro-brasileira que tem por divindades os voduns e se espalhou por outras regiões do país, assim como muitas outras casas de Axé. No Maranhão, as casas de culto de matriz africana, conhecidas como Tambor de Mina, são marcadas pela presença feminina em posições de destaque, o que contrasta com a sociedade brasileira marcada pelo machismo. Essa presença feminina privilegiada também é observada em outras denominações religiosas afro-brasileiras, como o Candomblé da Bahia (FERRETTI, S. 2001).

As mulheres têm desempenhado um papel fundamental como guardiãs religiosas e culturais, contribuindo para a preservação das tradições e valores da cultura afro-brasileira, e a necessidade de compreender a importância dessa instituição na história e na cultura brasileira só aumenta a importância dos estudos acerca do papel das mulheres na Casa das Minas.

Enquanto objeto de estudos, a Casa das Minas emergiu no cenário acadêmico nos anos 1940, mas foi apenas nos anos 1970 que houve uma renovação nos estudos sobre a instituição, através das pesquisas realizadas por Sergio Ferretti.

É importante destacar que a Casa das Minas é considerada patrimônio histórico estadual, tendo sido tombada em 1985, o que demonstra o seu reconhecimento pelo Estado, além do reconhecimento pela UNESCO, em 1997, que demonstra como a casa é emblemática internacionalmente.

Ferretti (2005) diz que:

Depois de tombada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, a cidade de São Luís tem sido procurada por interessados nas belezas de seu acervo arquitetônico, do folclore e do turismo cultural.

O Terreiro Casa das Minas Jeje, em São Luís-MA, é único terreiro Mina-jeje do Maranhão e exerceu grande influência sobre as casas de Mina de outras ‘nações’. (Fonte: UFMA; ipatrimônio)

A análise das mulheres de axé como vanguarda da identidade nagô da Casa das Minas contribui para uma compreensão mais aprofundada da referida instituição e, ainda que haja controvérsias sobre a existência de um matriarcado nos terreiros de candomblé, a ideia de que o poder feminino está ligado à origem e essência das religiões afro-brasileiras é bastante afirmada entre pesquisadores e lideranças religiosas.

Na Casa das Minas-Jeje e na Casa de Nagô, fundadas por africanas em meados do século XIX no Maranhão, apenas as mulheres entram em incorporação com entidades espirituais e só elas podem chefiar o terreiro. Apesar de atualmente haver muitos terreiros de chefia masculina no Maranhão, em vários terreiros de religião de matriz africana de São Luís apenas as mulheres assumem os postos hierárquicos mais altos, como mãe-de-terreiro ou mãe-de-santo. Isso indica uma tendência de maior poder feminino nas religiões afro-brasileiras em relação a outras religiões e contextos sociais brasileiros, especialmente em terreiros de nação jeje e nagô (FERRETTI, M. 2007).

Mulheres na Casa de Nagô fazendo firmeza para entidade no terreiro (Fonte: Museu Afrodigital/Foto: Sérgio Ferretti).

A representação das entidades femininas no Tambor de Mina, embora apresente semelhanças, varia e é esperado que haja diferenças significativas entre casas dirigidas por mulheres e casas dirigidas por homens, bem como entre terreiros de Mina de tradição Nagô ou Jeje e terreiros de Mina de Caboclo, e aqueles que foram influenciados pela Umbanda ou pelo Candomblé (FERRETTI, M. 1994).

A representação das entidades femininas fora dos dois terreiros de Mina abertos por africanas (as Casas das Minas-Jeje e a de Nagô) parece ter várias origens, incluindo a representação da mulher na sociedade brasileira, que é caracterizada pelo machismo. Além disso, existem influências externas, como o catolicismo e outras tradições que moldam a representação das entidades femininas nos terreiros de Mina. Essa diversidade na representação feminina sugere uma complexidade que pode ser difícil de superar em um contexto em que o machismo ainda é uma força social influente.

As mulheres de axé no contexto brasileiro marcam a existência de matriarcados também nas famílias negras e pobres da Bahia, por exemplo (LANDES, 2002). E, de volta para o religioso, esse poder das mulheres foi exercido com obstáculos impostos pela estrutura social machista. Ruth Landes (2002), ao destacar problemas enfrentados dentro do espaço do terreiro, afirma que a mãe-de-santo Menininha do Gantois não oficializou o próprio casamento, afinal era ialorixá e mandava como autoridade religiosa e, uma vez casada, teria que obedecer ao marido.

A presença marcante das mulheres nos terreiros é um testemunho da sua influência nas religiões, que desafiam tempo e espaço desde que atravessaram o Atlântico, evidenciando como mulheres de axé têm desempenhado papel fundamental no desenvolvimento das práticas religiosas, tanto histórica quanto contemporaneamente, nas comunidades afro-brasileiras. Esse fenômeno é um sinal positivo de que elas têm tido uma importante voz na criação e manutenção das tradições.

Diferentes gerações na despedida de Voduns na Casa das Minas (Fonte: Museu Afrodigital/Foto: s/d).

É preciso lembrar que cada terreiro tem sua própria dinâmica de gênero e que pode variar de comunidade para comunidade, afinal as relações de poder podem variar amplamente entre elas. A variação ocorre em virtude das distintas relações de poder que se manifestam nos diferentes contextos sociais em que essas comunidades estão inseridas. Na Casa das Minas, isso se deve ao fato de que, historicamente, as mulheres tiveram um papel preponderante na preservação e na transmissão dos conhecimentos e práticas associados ao candomblé (FERRETTI, M. 2005).

Enfim, a valorização da influência feminina nos terreiros de candomblé é um passo para a compreensão das contribuições das mulheres afro-brasileiras para a religião e a cultura brasileiras, sendo um imperativo ético e cultural, na medida em que permite a ampliação das perspectivas teóricas e metodológicas acerca da religião e da cultura afro-brasileira.

Ao destacar o protagonismo feminino nesses espaços, é possível construir uma análise mais abrangente e inclusiva acerca da complexa trama de relações de gênero, poder e religiosidade que caracteriza a experiência afro-brasileira.

Maria Eduarda Diniz é estudante de Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ultradireita e Relações Internacionais (GEPURI), cartomante e socialista.

#Cardume é uma seção na Revista Carpas no qual convidamos mulheres, pessoas trans e não-bimárias a compartilharem conosco seus textos autorais de forma voluntária. Serão aceitos artigos de opinião, produções literárias, resenhas críticas sobre livros, filmes, músicas e de temas variados. Envie seu texto aqui.

REFERÊNCIAS

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1971.

FERRETTI, Mundicarmo Maria R. Rei da Turquia o Ferrabrás de Alexandria. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Meu sinal está em teu corpo. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989.

FERRETTI, Mundicarmo Maria R. Matriarcado em terreiros de mina do Maranhão — realidade ou ilusão?. Revista de Ciências Humanas (Viçosa) , v. 5/1, p. 11–20, 2005.

FERRETTI, Sergio. Estórias da Casa Grande das Minas Jeje. São Luís: IPHAN, 2008.

FERRETTI, Sergio. Perspectivas das Religiões Afro-brasileiras no Maranhão. Trabalho apresentado na Mesa Redonda Perspectivas das Religiões Afro-indígenas e 20 Populares. XVIIª Semana Acadêmica e IIª de Ciências Religiosas. São Luís: IESMA, 2005.

FERRETTI, Sergio. Etnografia e etnopoesia: Estudos sobre a Casa das Minas. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, n. 5, p. 101–114, 2001. DOI: 10.11606/1982–8837.pg.2001.64328. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/pg/article/view/64328>. Acesso em: 19 mar. 2023.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. 2 ed. Ver. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

--

--