Clarice se perdeu, a gente se achou

O Clube do Livro da Revista Carpas foi criado pela editora-chefe, Fernanda de Melo, e pela cronista Maria Paula Maciel, que assinou esse texto junto com Priscilla Vituriano e tem como missão além da união, abrir um espaço para o debate de literatura dentro do nosso veículo.

Maria Paula Maciel
CARPAS
3 min readSep 24, 2023

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Quando Clarice diz: “escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler, será por conta própria e autorrisco”, não imaginamos que o risco seria tanto. Ainda assim, cinco jovens mulheres se aventuraram no primeiro encontro do Clube do Livro Carpas. Escrever é ilógico! foi o primeiro pensamento que nos ocorreu quando lemos Um Sopro de Vida da Clarice Lispector.

Publicada em 1974, foi a última obra produzida por Lispector e talvez a mais curiosa. Nela, não existe começo, meio e fim existe o começo e o questionamento. Com um enredo aparentemente simples, mas de contexto filosófico — apesar de meio irônico — um escritor tenta conversar com a personagem por ele criada: Ângela. Discorrendo acerca das reflexões sobre a existência, entra em uma luta entre o ser e o existir.

Sem seguir a linearidade, com frases desconexas, mas de modo algum, incoerentes entre si, Clarice nos clareou (mais uma vez) que para ser criativo não se pode obedecer regras. É preciso se permitir sair da ordem e não pertencer a uma lógica — nem que seja a sua própria. Entretanto, não significa que o eu lírico irá despejar conhecimentos sem nexo. Pelo contrário, para escrever é preciso muito conhecimento para deixar que seu melhor saia: é saber nada sobre a vida mas, ainda assim, agir como se soubesse todos os seus segredos, seja para salvar a humanidade ou, apenas, se salvar.

Ao menos, isso foi escrito logo na primeira parte do livro: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque nele vivemos.”. Clarice, você está certa, o resultado fatal de viver é mesmo o ato de escrever!

Ao ler o livro, o grupo discutiu sobre seus diversos lados num sábado frio de agosto, em uma cafeteria onde logo conhecemos uma simpática garçonete baiana que perguntou de onde éramos. Não só Clarice nos encontrou, como o lugar também: os nomes das bebidas eram ironicamente familiares, como xêro e chamego. Uma paulista e quatro pernambucanas encontraram na autora recifense um elo além do que esperavam.

Em Um Sopro de Vida notamos que na eternidade não existe tempo e que o mundo é um sonho dentro do sonho. Nele, notamos que na experiência compartilhada de existir enquanto mulher, cria-se um medo danado de ser um “eu” e um estranhamento consigo, como quando Ângela fala: “me deram um nome e me alienaram de mim”.

Para escrever esse livro, Clarice precisou se perder até ter saudade de si, e declarou com todas as palavras: “estou com saudade de mim”. E foi na perda que esse grupo de mulheres se encontrou.

Estar no cinza de São Paulo afetou, cinco mulheres, dessas quatro pernambucanas. Uma poesia escrita em agosto de 2023 por Maria Paula, integrante do Clube do Livro Carpas, escreveu: “do retrovisor um estranho viu / uma pessoa sozinha em uma cidade cinza / prédios altos, silêncios altos / independência disfarçada de exílio”. Graças à Clarice, o motorista não observa mais do retrovisor a solidão, observa risos, vozes alegres. Um Sopro de Vida uniu um grupo de meninas-mulheres que estão desbravando o mundo — mesmo que com medo. Encontramos pedaços nossos umas nas outras, tanto alguns que já estávamos cientes, quanto alguns que só percebemos ter — ou faltar — quando nos encaramos olho no olho, perdidas em meio às palavras sobre o livro que, em certo momento, já se misturavam em confissões sobre nós mesmas.

Talvez aí esteja a importância da Clarice e até mesmo do Clube de Livro: a experiência compartilhada. O mundo está cada vez mais automático, as pessoas esquecem o valor do bom dia, mas se encontrar uma vez por mês para discutir arte é privilégio para poucos.

Clarice precisou se perder, mas a gente se achou — e nos achamos. E esperamos nos achar de novo, com outras autoras e em outras conversas, no encontro do próximo mês.

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Maria Paula Maciel
CARPAS

Recifense convicta e Pernambucana bairrista. Mestranda em Estudos Culturais pela USP, redatora da Revista Carpas. Cinema, música, saudosismos culturais.