Como o sistema prisional afeta as mulheres encarceradas?

Julianny Araújo
CARPAS
Published in
9 min readOct 9, 2020
Por: Isabela Alves

O sistema prisional brasileiro está afundado em uma aguda crise, onde a ausência de direitos e garantias fundamentais dos presos se encontra extensivamente consagrada na prática social cotidiana. E não é surpresa que essa crise se dá, principalmente, em razão do encarceramento em massa. O Brasil está em quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária (422.590, sendo 403.556 homens e 19.034 mulheres). Os primeiros países são: Estados Unidos (2.299.116 presos), China (1.565.771) e Rússia (894.855).

No que se refere ao encarceramento feminino, o número de aprisionadas aumenta consideravelmente todos os anos e, consequentemente, a supressão de direitos é proporcionalmente ainda maior. Nos últimos anos, a população carcerária feminina aumentou consideravelmente. De acordo com o Ministério da Justiça, em 2014 existiam 37.380 mulheres presas, representando quase 7% da população carcerária. No período de 2000 a 2014, esta população cresceu 567,4%, enquanto a população masculina, 220,2%. Assim, ocorreu um aumento da população feminina carcerária nas últimas décadas, sendo que a proporção de mulheres encarceradas varia entre 2% e 9%. Devido a esse aumento, o atendimento concedido à mulher confinada carece de estratégias para contemplar as particularidades e as especificidades da população feminina.

As pesquisas exprimem que as presas têm um elevado grau de comorbidade psicopatológica, depressão, TEPT e dependência de substâncias maior. As encarceradas são também mais inclinadas a desenvolver doenças mentais, quando comparadas com a população carcerária masculina. Observa-se que de um a dois terços de todas essas mulheres necessitam de tratamento mental e, aproximadamente, um quinto tem uma história de uso de medicação psicotrópica. Além disso, apresentam maiores experiências traumáticas, incluindo abuso físico e sexual precoce. Nesse sentido, o estudo de Johnson 4 apontou altas taxas de abuso entre as mulheres, totalizando 87% da amostra. A prevalência de abuso e dependência de substância variou de 10% a 48% nos presos homens e de 30% a 60% nas mulheres presas 12; a prevalência de depressão maior foi verificada em 10% dos homens e 12% nas mulheres encarceradas.

‘’ Em fila indiana, algemam-se umas às outras. Em marcha de procissão, os olhos farejam os pés. Para se mover no presídio, nem mesmo algema é propriedade de presa.’’

(Debora Diniz em ‘’Cadeia: Relatos sobre mulheres.’’

Portanto, pode-se deduzir que o confinamento apresenta um ambiente hostil, insalubre, e que o aumento da população carcerária significa alto risco também para a instauração tanto de doenças transmissíveis como tuberculose, hanseníase, sífilis e HIV, como de outras não transmissíveis, doenças do trato respiratório ocasionadas pelo aumento do uso de tabaco; e ainda, problemas como diabetes e hipertensão. Como se não bastasse os inúmeros fatores que apresentam risco a saúde destas mulheres, a dificuldade de adaptação à alimentação oferecida no sistema penitenciário possibilita identificar falas que apontam intolerância e resistência por parte das encarceradas. Durante a pesquisa ‘’A saúde física de mulheres privadas de liberdade em uma penitenciária do estado do Rio de Janeiro’’ foram recolhidas diversas reclamações relatadas pelas mulheres presas:

‘’Precária, não vem o pão, a alimentação é precária, sinto dor no estômago. Muito ruim, essa comida oferecida aqui é precária, mas como muita besteira.’’

‘’Eu comia somente quando a minha mãe vinha e trazia para mim.’’

‘’É horrível, não como tudo, como besteira na cantina.’’

‘’Eu emagreci muito […] Falta de apetite. ‘’

‘’Engordei. Alimento-me com besteira. ‘’

‘’Tive hipertensão após ser presa, e retirei a vesícula. ‘’

‘’Aqui apareceram algumas coisas, como a hipertensão, coisa que não existia. Só tenho problema de diabetes, hipertensão e visão.’’

‘’A saúde é péssima. Sou hipertensa e tenho problema de coração.’’

Como se não bastasse, a violência está inserida no cotidiano das mulheres privadas de liberdade, comprometendo quase que irreversivelmente a saúde física desse grupo específico. As dificuldades para cuidar de si mesma é preocupante dentro do sistema penal para se relacionar com a própria saúde, numa perspectiva menos curativa e mais preventiva. É rara a realização de exames preventivos ginecológicos ou mamografias. Ao se tratar da questão da menstruação, a situação é ainda mais alarmante. Não há dignidade e sensibilidade alguma. Pela falta de absorventes, não é raro encontrar relatos de utilização de miolo de pão como tampão, por exemplo. Em algumas prisões, os itens de higiene pessoal são de responsabilidade da própria detenta, ou seja, ela depende daquilo que seus familiares fornecem durante as visitas.

“As especificidades de gênero são ignoradas”, assegura Nana Queiroz, autora de ‘’Presos que menstruam’’, em conversa com Terra. “O Estado esquece que as mulheres precisam de absorventes, por exemplo, e que precisam de papel higiênico para duas necessidades em vez de uma. Ou ainda que as mulheres engravidam, têm filhos e precisam amamentar”.

O que acontece é que o poder público parece ignorar que está lidando com mulheres e oferece um ‘pacote padrão’ (recebido ao se inserirem na penitenciária) bastante similar ao masculino, nos quais são ignoradas a menstruação, a maternidade, os cuidados específicos de saúde, entre outras especificidade. O sistema prisional foi pensado para uma população masculina. Assim, a sobrevivência das pessoas encarceradas é precária, ainda mais em se tratando do público feminino, em que as condições de maus-tratos e superlotação são os problemas mais usuais.

É preciso estender mais um pouco a fim de compreender a criação do sistema penitenciário como masculino e como ocorreu essa adaptação para o feminino. A clientela do sistema punitivo é historicamente constituída por homens e os primeiros registros de mulheres presas remontam ao final do século XIX. O material encontrado no início do século XX traz uma interessante distinção feita à época, entre as presas comuns, que cometeram crimes como infanticídio, furto, aborto, e as outras, transgressoras por vadiagem ou embriaguez, o que incluía prostituição. O interessante é que os argumentos que justificam a necessidade da criação de um presídio feminino se baseiam tanto na necessidade de separar as mulheres de acordo com o tipo de infração cometido — e não é a gravidade que está em questão — quanto na urgência em separá-las dos homens.

Angela Davis em “Estarão as prisões obsoletas?” aponta que os princípios do sistema prisional são moldados sem levar em conta as particularidades do sexo feminino, pois é pensada a partir da óptica masculina, o objetivo de recuperação social de condenadas se dá em concordância com os padrões de feminilidade. Neste sistema de ressocialização dentro da prisão, as atividades destinadas aos sujeitos de sexo feminino são voltadas ao trabalho doméstico, à culinária, sem muito considerar outras possibilidades de reintegração profissional. Compreende-se, ainda, que assimilação desses ‘’comportamentos femininos adequados’’ regeneram os princípios morais fundamentais da condição feminina.

“Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam.” Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas, em artigo de setembro de 2009, que serviu de inspiração para o título e tom deste livro.’’ — Trecho que inicia o livro ‘’Presos que Menstruam’’.

Mãe e criminosa.

A mulher encarcerada, na maioria das vezes, trafega entre as personagens de mãe e criminosa, papéis estes que ocupam posições diametralmente opostas na representação do feminino: o primeiro pautado pela maternidade como aptidão natural, exclusiva e sagrada da mulher; e o segundo caracterizado pelo crime como um desvio do que se espera socialmente e moralmente para um individuo nascido no sexo feminino.

O entrelaçamento entre os contextos prisionais e gestacionais produz um exercício da maternidade alternativo. Os significados da maternidade vivenciada por estas mulheres são transformados. A casa e a cria são trazidas para dentro do cárcere, vigiadas e disciplinadas a partir de parâmetros restritos de normalidade de gênero e família. Já que a Constituição Federal menciona que será assegurada a mulher presa condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

A maternidade vivenciada dentro de uma instituição prisional pode ser pensado com certa peculiaridade. Conforme os dados no Ministério da Justiça, no início de 2008, a população prisional feminina brasileira era de 27.000 mulheres, sendo 1,24% das mulheres encontravam-se grávidas, 1,04% possuíam filhos em sua companhia e 0,91% estavam em período de amamentação. Outro dado importante, é que 51,61% das prisões possuem locais improvisados para atendimento às crianças, em sua maioria, os espaços estão restritos a própria cela.

A representação criminosa, que se sobrepõe às outras, funciona como ferramenta para reduzir a mãe e a mulher apenas ao seu crime, dificultando a discussão em busca outra alternativa que não seja o encarceramento para esta parcela vulnerável da sociedade.

Mulher, preta e presa.

Há mais de 41 milhões de mulheres negras no Brasil , o que exprime 23,4% do total da população brasileira, segundo o IBGE. São elas que sofrem com o fenômeno da dupla discriminação e estão sujeitas a tanto as conjugações perversas do racismo quanto às consequências do sexismo, as quais resultam em uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida. As desigualdades e discriminações de natureza racial são evidentes no cotidiano e comprovado por algumas estatísticas. Desta forma, a mulher negra está mais vulnerável às violências sociais, violências estas que vão se transformar em vulnerabilidade penal, reverberando no processo de execução penal.

De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), nossas presas são em sua maioria jovens, pretas ou pardas, de baixa renda, baixa escolaridade, acusadas ou condenadas por crimes relacionados às drogas. As mulheres negras e não-brancas são proporcionalmente muito mais punidas com prisão do que as demais mulheres brancas e, mesmo, do que homens não-brancos. Estes dados acarretam em questionamentos sobre a seletividade da justiça criminal pressupondo a análise de raça, gênero e classe social. Soares e Ilgenfritz (2002) apontam a seguinte distribuição racial das mulheres presas no Rio de Janeiro: 42,9% são brancas, 24,8% são pardas e 30,7% são pretas. As não-brancas representam, portanto, 56,4% da população prisional feminina.

Ainda em “Estarão as prisões obsoletas”, Angela Davis revela que o sistema penal e a seletividade jurídica dos que são penalizados seria uma forma de escravismo, remetendo ao período de escravidão e o que denomina de atual complexo industrial — prisional. Salienta que isso ocorre porque, o racismo define estruturalmente o trabalho das polícias, dos operadores, das políticas repressivas de segurança, que levam ao encarceramento de pessoas negras. Ademais, Angela acrescenta que, bater de frente ao processo de encarceramento da população negra, é necessário analisar a prisão a partir da inspiração abolicionista, negando as ferramentas de perpetuação da violência como ocorreu na escravidão com a segregação do povo negro e segregação da população. Além de entender a relação da política do encarceramento em massa da população negra com a escravidão na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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DINIZ, D. Cadeia Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 2015.

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