Deu a louca em Hollywood?

Os avanços nem sempre acompanham o progresso: sem regulamentos, a tecnologia segue rompendo a ética e servindo como recurso para intensificação da exploração do trabalho.

Pâmela Lins
CARPAS
5 min readSep 10, 2023

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Créditos de Imagem: Mario Tama/Getty Images. Créditos de edição: Revista Carpas.

Diante das novas plataformas de streamings e uso da Inteligência Artificial no meio cinematográfico, atores e roteiristas de Hollywood, representados pelo Sindicato de Atores (SAG - AFTRA) e Sindicato de Roteiristas (WGA), deram início a uma greve. Os roteiristas foram os primeiros a promover essa mobilização (desde 2 de maio de 2023), posteriormente, com a aderência dos atores (a partir de 13 de julho de 2023). Já se somam o total de 160 mil artistas paralisados.

"Essa é a primeira greve completa que a indústria audiovisual realiza em 63 anos, sendo a última realizada pela classe dos atores em 1983" (VILELA, 2023).

Entre as exigências da SAG-AFTRA estão: I) o aumento das taxas de salário mínimo; II) o aumento dos resíduos de fluxo (nenhum dos quais acompanhou a inflação); III) melhores condições de trabalho; IV) a atualização de seus contratos (considerando a nova era dos streamings); e V) a limitação/regulamentação do uso da Inteligência Artificial.

Os atores consideram injusta a forma como são pagos pelo seu trabalho nas plataformas de streamings, pois, atualmente, existe um pagamento fixo pelas séries finalizadas e reproduzidas em streaming, no entanto, é um valor insuficiente, já que, para eles, esse pagamento deveria ser calculado baseado na popularidade de cada produção e em seu custo. Diante disso, eles reivindicam 2% do lucro gerado para a plataforma, de acordo com a sua popularidade. Assim, os pagamentos de royalties, que dependem do número de reprises de um programa, não são mais confiáveis.

Leonardo Bittencourt, que estreou na TV Globo na telenovela Malhação: Vidas Brasileiras, e ficou conhecido por seu papel como “Daniel Cravinho” nas produçõesO Menino que Matou Meus Pais” (2021) e “A Menina que Matou os Pais” (2021), respondeu à seguinte postagem nas redes sociais:

Além disso, há pouca regulamentação quanto ao uso da Inteligência Artificial, aspecto que atinge negativamente o mercado de trabalho, principalmente para os intérpretes e figurantes, pois podem “ceder sua imagem por um dia de trabalho e ser replicado para diversas cenas em um filme” (SABBAGA, 2023). Nisso, as empresas de telecomunicação podem reutilizar a imagem de atores já escaneados para treinar a Inteligência Artificial a criar versões alteradas ou semelhantes para serem utilizadas futuramente, sem nenhum ganho para esses atores. Desse modo, uma das reivindicações do sindicato têm sido o consentimento para todo e qualquer uso individual de imagem, ponto que as empresas audiovisuais recusam-se a aceitar, conforme nos explica Sabbaga (2023).

Os roteiristas passam por situações semelhantes. Eles também lutam pela reatualização de seus contratos, devido ao grande número de reprises, sucesso internacional das produções e alcance por meio de plataformas de streamings.

“Por exemplo, um roteirista de Bridgerton, Round 6 ou Stranger Things, produções que ajudam a trazer assinantes para a Netflix, não recebe nada dos lucros que a plataforma obtém com assinaturas, publicidade ou produtos derivados. Segundo as novas reivindicações da WGA [Sindicado dos roteiristas], esse é um dos principais pontos que pede mudanças” (SABBAGA, 2023).

O uso da Inteligência Artificial também tem impactado negativamente seus empregos, pois substituem trabalhos de revisão, tradução, dentre outros. Portanto, os roteiristas se somam à luta pela regulamentação dessas Inteligências Artificiais.

Hoje, boa parte dos artistas sequer sabem quando são replicados nos filmes e séries das quais participam, uma prática que fere os direitos de imagem (sem consentimento) deles, além de não ser devidamente remunerada (VILELA, 2023).

Mark Ruffalo vai às ruas em apoio aos protestos.

Dessa forma, no intuito de analisar esses fatores numa perspectiva crítica, este artigo resgata as elaborações teóricas de Antunes (2018). O autor, partindo de uma leitura de Marx, compreende o trabalhador como a classe que vive do trabalho, que tem sua força de trabalho como único recurso para garantir sua sobrevivência. Diante disso, podemos inserir os atores e os roteiristas como trabalhadores assalariados.

Em nossa concepção ampliada estão excluídos da classe trabalhadora os gestores do capital, que são parte constitutiva da classe dominante, pelo papel central que têm no controle, na hierarquia, no mando e na gestão do capital e de seu processo de valorização, bem como os pequenos empresários, a pequena burguesia urbana e rural, que é detentora – ainda que em menor escala – dos meios de sua produção. Estão excluídos também aqueles que vivem de juros e da especulação (Antunes, 2018, p. 124)

Na contemporaneidade, Antunes (2018) identifica que a forma em que o capitalismo se apropria das inovações tecnológicas viabiliza a intensificação e ampliação dos modos de extração do sobretrabalho, aumentando a extração de riquezas em uma quantidade de trabalho menor e cada vez mais explorada.

Portanto, não estamos condenando o avanço tecnológico que permite a realização de menos trabalho humano e, assim, mais tempo livre. Mas gostaríamos de evidenciar que, na sociedade capitalista (que concentra riquezas e transforma todas as relações sociais em potenciais mercadorias), esse tempo livre criado pela tecnologia é transformado em intensificação do trabalho e aumento do enriquecimento do capital.

Sendo assim, a tecnologia viabiliza um mecanismo em que quanto menos trabalho é necessário para produzir mercadorias, mais uma quantia menor de trabalhadores são, de forma intensificada, explorados. Processo que gera uma desvalorização do trabalho e contribui com o aumento do desemprego.

Esse mecanismo pode ser identificado nas atuais relações de trabalho no meio cinematográfico, em que a Inteligência Artificial consegue multiplicar o trabalho de atores e roteiristas, sem necessariamente precisar realizar um novo contrato; aspecto que poderia ser útil para gerar mais tempo livre para o trabalhador desenvolver-se em sua potencialidade e alcançar novas habilidades, mas que é apropriado pelo capital para enriquecer às custas de trabalho não pago.

Sendo assim, as lutas da classe trabalhadora e o apoio às greves são essenciais para reverter essa tendência alarmante de exploração do trabalho e até ousar sonhar com a superação dessas relações de exploração, usando, de fato, o avanço tecnológico à favor do desenvolvimento humano e não para a acumulação desenfreada do capital.

REFERÊNCIAS

SABBAGA, Julia. Entenda a greve de atores e roteiristas em Hollywood. 2023. Disponível em: Https://www.omelete.com.br/filmes/greve-atores-roteiristas-entenda#4

VILELA, Luiza. Greve dos atores e roteiristas: sindicato se reúne com estúdios nesta sexta. 2023. Disponível em: https://exame.com/pop/greve-dos-atores-e-roteiristas-sindicato-se-reune-com-estudios-nesta-sexta/

Antunes, Ricardo. O privilégio da servidão [recurso eletrônico]: o novo proletariado de serviços na era digital. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2018

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Pâmela Lins
CARPAS

Assistente social e Pesquisadora no PPGSS-UFAL. Escritora na revista Carpas. Literatura e política em uma perspectiva marxista.