Dia Mundial do Rock: as mulheres que eles querem intimidar

A evolução do rock conta com presenças marcantes femininas, mas nos bastidores, as mulheres convivem com o machismo estrutural da cena musical, que prejudica carreiras e destrói vidas.

Laís Helena Farias
CARPAS
9 min readJul 13, 2023

--

O dia 13 de julho celebra o Dia Mundial do Rock, que, curiosamente, é celebrado nesta data apenas no Brasil. Sua história remonta ao megafestival Live Aid, que reuniu diversos artistas, incluindo Madonna, Dire Straits, U2, Led Zeppelin, Queen, BB King, entre outros grandes nomes da indústria. Idealizado pelo músico Bob Geldof, o Live Aid aconteceu em 1985 e foi transmitido simultaneamente nas cidades de Tóquio, Filadélfia, Melbourne e Londres, com o propósito de ser um evento beneficente para ajudar a erradicar a fome na Etiópia. O megaconcerto foi bem sucedido no que diz respeito à audiência, sendo acompanhado por 1,5 bilhão de pessoas apenas no canal da BBC. Sua memória marcou a indústria musical, que, nos anos seguintes, promoveu mais eventos voltados a causas sociais e humanitárias.

O artista Phil Collins, que participou do concerto em Londres e na Filadélfia, expressou o desejo de tornar o dia 13 de julho o dia mundial do rock. Essa vontade foi cumprida, posteriormente, por duas emissoras de rádio brasileiras nos anos 1990, época de grande expansão entre o rock e seus subgêneros.

Megafestival Live Aid, na Inglaterra (1985).

O paradoxo sexista do rock

Todavia, é notório afirmar que existe um paradoxo no rock. Ao passo que o gênero se pauta pela fama de rebelde e “mente aberta” em combate aos conservadorismos da sociedade, o rock se molda em bases sexistas. Através da mentalidade patriarcal insistente no meio musical, a figura feminina enfrenta menosprezos, subestimas, e críticas relacionadas ao seu trabalho (PAULA, 2015).

É o que mais acontece nessa indústria: as mulheres são julgadas inferiores aos homens e, quando tocam bem, “tocam bem, para mulheres”. O que realmente é avaliado não é a qualidade da música ou a habilidade de uma mulher que é música, e sim o seu gênero.

Conversando com amigas que estão no mundo do rock, percebi que também acontece uma objetificação horrível. Elogiam o talento do guitarrista, do vocalista, enquanto as mulheres da banda são “gostosas” (CARVALHO, s.d.).

A partir disso, é possível observar que a mulher, na indústria do rock, é inferiorizada a estereótipos e a uma hiperssexualização sem limites. Seja uma simpatizante do gênero ou uma artista do rock, o ambiente se pauta por uma opressão à condição feminina, quando nomeiam mulheres que ouvem rock como “sedentas por atenção” ou “fãs medianas”, menosprezando seus traços de personalidade enquanto um indivíduo que gosta do gênero musical. Outro aspecto é a objetificação das mulheres no rock, onde são reduzidas a sex symbols ou groupies (fãs de artistas que os acompanham em turnês e shows) supérfluas e fáceis de serem influenciadas.

Na esquerda, Hayley Williams, líder da banda Paramore; e na direita, Björk.

Em entrevista, cantoras como Hayley Williams e Björk expressaram suas insatisfações com o machismo no meio musical, narrando episódios de assédio, desvalorização de sua arte, homens que levaram o crédito por suas ideias, diminuição de suas capacidades profissionais, entre outros (PAULA, 2015).

[…] fui assediada por rapazes que tinham provavelmente uns bons 10 anos a mais que eu. Lembro-me de tocar no North Star Bar [na Filadélfia] e de um cara gritar “tira a blusa!” provavelmente umas 10 vezes. Isso já aconteceu em outras ocasiões, mas esse cara foi muito agressivo. Lá pela quinta ou sexta vez, percebi que eu estou com o microfone nas mãos. Eu tenho o poder aqui. E não tenho que ficar quieta (WILLIAMS, em entrevista à Rolling Stone, 2013, apud PAULA, 2015).

Por conseguinte, o sexismo também enraizado nas estruturas da indústria musical diminui o prestígio por artistas femininas na cena do rock, tendo em vista que recebem menos visualizações, são mais restritas de liberdade artística, e menos tocadas em festivais. Ao aprofundar a discussão e atingir o tópico da masculinidade hegemônica, percebe-se que alguns homens classificam a música feita por mulheres como “feminina demais” para um homem ouvir, afastando-se de obras femininas por meio de uma justificativa misógina, e que reforça papéis de gênero impostos pelo patriarcado. A necessidade de reforçar uma virilidade também se encontra presente no desprezo pelas mulheres na cena do rock.

No âmbito dos megaeventos, os festivais de música se comprometeram a inverter o desequilíbrio de gênero no que diz respeito às presenças artísticas. Em 2018, a revista Pitchfork elencou a presença de artistas por gênero em vinte grandes festivais, obtendo o resultado de que sete a cada dez atrações são homens ou bandas formadas totalmente por homens. Dos vinte concertos, apenas três chegaram ao patamar 50/50 homens/mulheres se apresentando, enquanto outros três festivais atingiram apenas 20% de artistas femininas e bandas compostas por homens e mulheres. Conforme os gráficos a seguir:

Dessa forma, vale uma reflexão ao leitor sobre o consumo de artistas femininas em relação aos artistas masculinos. Após revisar suas listas de música, quantas mulheres você ouve e acompanha musicalmente, em comparação aos homens?

As pioneiras do rock

O rock tem uma mãe. Seu nome é Sister Rosetta Tharpe (1915–1973), cantora, compositora e guitarrista estadunidense negra que misturou ritmos como o gospel, R&B, jazz e country, em conjunto com suas habilidades extraordinárias na guitarra, ainda durante a década de 1940. Tharpe tocou em rádios gospel, além de bares e clubes noturnos, se tornando famosa pelo seu jeito único de fazer música. Posteriormente, a artista influenciou grandes nomes do rock, ao exemplo de Elvis Presley, Bob Dylan, BB King, Johnny Cash e Chuck Berry.

Sister Rosetta Tharpe.

Já nos anos 1950, as mulheres continuavam construindo o gênero do rock através dos girl groups, composições, projetos e reformulações das melodias, mas nem sempre alcançavam o sucesso devido. A pesquisadora e PhD em musicologia Leah Branstetter elencou diversas mulheres que fizeram parte do nascimento e ascensão do rock, de 1950 a 1960, no seu projeto Women in Rock and Roll’s First Wave (Mulheres na Primeira Onda do Rock and Roll), disponível em um site apenas em inglês.

Na cena brasileira, Nora Ney (1922–2003), em 1955, regrava a canção “Rock Around the Clock”, do cantor estadunidense Bill Haley, ganhando uma versão em português por Heleninha Silveira, nomeada de “Ronda das Horas”. Anos depois, a artista Celly Campello também apostou nas regravações de músicas internacionais, sendo bem sucedida nos seus feitos. Entretanto, a década de 1960 foi decisiva para os rumos do rock nacional, onde surge a Jovem Guarda, que deu voz a cantoras como Wanderléa, Rosemary, Martinha e Lilian.

Na mesma época, Rita Lee foi revelada para o cenário musical brasileiro, com a banda Os Mutantes, em 1966. A nomeada “rainha do rock” no Brasil marcou gerações, por meio de suas canções e sua personalidade artística única, se tornando uma das artistas mais populares do país. Nas décadas seguintes, o punk rock se destacou entre as mulheres, no qual trouxe grupos que cantam sobre temáticas feministas. Dois exemplos brasileiros são as bandas As Mercenárias e Dominatrix.

Rita Lee, com a banda Os Mutantes.

Desde o surgimento do rock, com Sister Rosetta Tharpe, as mulheres se reinventam a cada década e constroem novos caminhos, sendo parte essencial da evolução do gênero musical. Portanto, vale ressaltar outros nomes fundamentais da cena, que enfrentaram todo o machismo da indústria e revolucionaram a história do rock.

Elas conquistaram através das décadas

Quando o rock disparou como o gênero musical preferido entre os jovens, após The Beatles, Woodstock e o nascimento de outros subgêneros, a partir dos anos 1970, a banda The Runaways, liderada por Joan Jett, promoveu a inovação de fundar um grupo só de mulheres. Na mesma década, Debbie Harry se destaca na banda Blondie, onde se tornou alvo de comentários sobre sua vida e sua beleza, culminando no seu título de Sex Symbol, na época. Outra artista a brilhar na cena musical foi Patti Smith, pioneira do movimento punk e conhecida por ser a “poeta do rock”, devido à sua carreira de poetisa, na qual escreveu diversos livros.

Nas décadas seguintes, o grunge apareceu como uma variante do rock, através de uma mulher negra. Tina Bell, intitulada a “madrinha do grunge”, inspirou grandes bandas do gênero, ao exemplo de Nirvana, Alice in Chains, Pearl Jam e Stone Temple Pilots. Ainda em 1983, Bell, como vocalista do Bam Bam, uniu acordes do punk e do rock, modificando-os à sua maneira, até dar à luz ao grunge, que alcançou seu auge a partir de 1990. Através de sua espontaneidade e personalidade forte no cenário musical, seus colegas de banda contaram em entrevista que a artista era dotada de “um espírito Rock and Roll mais verdadeiro do que praticamente todos os caras da cidade” (TMDQA, 2021). Contudo, o racismo e o machismo perseguiram Tina Bell durante seus shows e sua carreira, fatores que a levaram a abandonar sua jornada artística. Em uma de suas apresentações, a cantora chegou a agredir skinheads que estavam a ofendendo com termos racistas.

Tina Bell.

Ainda na cena do grunge, Courtney Love, líder da banda Hole, enfrentou inúmeros ataques raivosos após a morte de Kurt Cobain, seu esposo e vocalista do Nirvana. O público a culpou pelo suicídio do artista, que enfrentava problemas com drogas e dificuldade de lidar com a mídia.

Nos anos 1990, por meio de uma proposta punk rock e feminista, surge o movimento Riot Grrrl, a partir de uma série de bandas femininas independentes que exploram a ideia do “do it yourself — faça você mesma”, reivindicando a uma maior liberdade artística, mais espaço no cenário musical e disseminando tópicos do feminismo em suas letras. Kathleen Hanna, como vocalista do Bikini Kill, e Allison Wolfe, na banda Bratmobile, se destacaram como condutoras do movimento.

Bikini Kill, uma das principais bandas do movimento Riot Grrrl.

Entretanto, apesar do Riot Grrrl ser uma proposta que pretende dar mais voz as mulheres no rock, os resultados não foram abrangentes, uma vez que o movimento ficou restrito ao feminismo branco. Mulheres trans e mulheres negras não possuíam representatividade, e o Riot Grrrl não se preocupou o bastante com esse debate. Tal aspecto é notório na história do rock, tendo em vista que, se as mulheres brancas eram alvo de críticas e ataques, as mulheres negras foram apagadas cruelmente do cenário, no qual poucos recordam delas. O recorte de raça e de gênero pesa de forma quadruplicada na mulher negra, e a discussão acerca disso também se faz fundamental.

REFERÊNCIAS

BRANSTETTER, Leah. Women in Rock and Roll’s First Wave. Disponível em: https://www.womeninrockproject.org/introduction/. Acesso em 06 jul. 2023.

CARVALHO, Ariel. O machismo paradoxal do rock. Revista Pólen, s.d. Disponível em: http://revistapolen.com/o-machismo-paradoxal-do-rock/. Acesso em 06 jul. 2023.

GARCIA, Angela. How the Riot Grrrl Movement Failed Women. Trinity University, 2018. Disponível em: http://www.krtuindie.org/blog/2018/2/23/how-the-riot-grrrl-movement-failed-women. Acesso em 06 jul. 2023.

GZH. Dia Mundial do Rock: as influências femininas que ajudaram a consolidar o gênero. GaúchaZH, 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2019/07/dia-mundial-do-rock-as-influencias-femininas-que-ajudaram-a-consolidar-o-genero-cjxxv3ug500k601msw31civpq.html. Acesso em 06 jul. 2023.

GZH. Por que 13 de julho é o Dia Mundial do Rock e só é celebrado no Brasil?. GaúchaZH, 2022. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2022/07/por-que-13-de-julho-e-o-dia-mundial-do-rock-e-so-e-celebrado-no-brasil-cl5ijqyn9009t0168par4rv4l.html. Acesso em 06 jul. 2023.

MITCHUM, Rob; GARCIA-OLANO, Diego. Tracking the Gender Balance of This Year’s Music Festival Lineups. Pitchfork, 2018. Disponível em: https://pitchfork.com/features/festival-report/tracking-the-gender-balance-of-this-years-music-festival-lineups/. Acesso em 06 jul. 2023.

PAULA, Fabiana de. Mulheres no Rock: por que ainda somos tão poucas?. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.

PIRES, Mariana Pereira. Mulheres no Rock — Apagamento, Desmerecimento e Objetificação. Nó de Oito, 2016. Disponível em: https://nodeoito.com/mulheres-no-rock/. Acesso em 06 jul. 2023.

TMDQA. Tina Bell: conheça a “madrinha do Grunge” que inspirou o Nirvana e muito mais. Tenho Mais Discos que Amigos, 2021. Disponível em: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2021/06/01/tina-bell-madrinha-grunge/. Acesso em 06 jul. 2023.

--

--

Laís Helena Farias
CARPAS

Estudante de Relações Internacionais (UEPB), coordenadora informal do GEPURI-UEPB, pesquisadora em temas de Política Externa Brasileira.