Dia Nacional do Cigano: A Luta por mais do que Sobreviver

“Se as pessoas não conhecem a história dos ciganos, o governo não faz nada”, defende Marlete Queiroz, liderança cigana Calón e ativista do Estatuto dos Povos Ciganos.

Isabela Coêlho
CARPAS
6 min readMay 24, 2023

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Mulheres ciganas em acampamento de Planaltina/DF (Fonte: Marcello Casal Jr, Agência Brasil)

Em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou o Dia Nacional do Cigano no dia 24 de maio, reconhecendo os povos ciganos como povos tradicionais no Estado brasileiro. Os povos ciganos* (termo usado para incluir as etnias Rom, Siti e Calón), frequentemente vilanizados em histórias populares ou em comentários preconceituosos no dia a dia, tiveram neste decreto um dos poucos momentos de visibilidade da sua história e da sua participação na formação do Brasil. A sua luta, no entanto, continua — para ter suas vidas, culturas, histórias e existências aceitas na sociedade.

É possível fazer um paralelo da história cigana no Brasil com a própria dança cigana — possivelmente um dos símbolos culturais mais aceitos da sua cultura na nossa sociedade. “No Brasil tem esse modismo né, a dança cigana se difundiu muito, e tem muita gente que se diz cigana. (…) Mas a realidade é outra coisa, se usam do título mas não entendem nada de políticas públicas (para as comunidades ciganas),” contou-me Marlete Queiroz, cigana da etnia Calón e uma incrível liderança e professora da história cigana contemporânea do Brasil. O brilhantismo das danças, das roupas, dos movimentos, e da relação com a natureza evocada pela dança atrai olhares e chama a atenção, mas a dança da realidade da vida cigana ainda não recebe a mesma atenção.

Para poder aprender mais sobre a história cigana no Brasil e escrever este artigo, conversei com Marlete sobre o que o dia representa para os povos ciganos do passado e do presente. Desde o início, Marlete me explicou bem que a história cigana no Brasil existe há quase tanto tempo quanto a própria invasão portuguesa no território, com as primeiras famílias sendo forçadamente trazidas no ano de 1574. Os ciganos Calón, que já possuíam um histórico de violência e preconceito na Península Ibérica, foram trazidos para trabalhar nas colônias, dando origem, assim, à história cigana em território brasileiro. As identidades ciganas, no entanto, são muitas vezes propositalmente invisibilizadas e apagadas do que entendemos como história do Brasil. “O próprio Juscelino Kubitschek era cigano”, contou-me (e surpreendendo-me!).

Membros do acampamento Calón de Planaltina/DF (Fonte: Marcello Casal Jr, Agência Brasil)

Hoje em dia, existem três principais etnias ciganas no Brasil: os Sinti, os Rom, e os Calón. Estas possuem suas próprias culturas, dialetos e tradições, mas algo têm em comum: a ciganofobia que vivem. Apesar dos Rom e dos Sinti estarem melhor integrados na sociedade brasileira, contando direitos cidadãos básicamos como moradia, educação e saúde, muito ainda é invisibilizado de sua história. Muitas vezes, relatou-me Marlete, as pessoas escolhem omitir que são ciganas, com medo de sofrerem preconceito, discriminação e, muitas vezes, violências verbais e físicas.

As comunidades ciganas associadas a acampamentos informais, no entanto, são majoritariamente da etnia Calón que, segundo Marlete, possuem os mais intensos desafios entre as três. O preconceito estrutural ao qual os Calón são expostos pela sua etnia, história e cultura os impede de serem formalmente incluídos na sociedade brasileira. Acima de tudo, isto se manifesta de uma maneira muito específica: a ausência de certidão de nascimento. Marlete entende que este é um dos principais problemas da comunidade cigana brasileira atual que, sem certidão de nascimento, não pode usufruir de nenhuma outra política pública, tais como saúde, educação, ou moradia, para exercer sua figura cidadã. “Você imagina uma pessoa não ter certidão de nascimento, ser analfabeto, não ter onde morar. Não vive, né; sobrevive”.

Vemos, assim, o fundo do iceberg da violência estrutural e sistêmica contra populações ciganas: sem serem reconhecidas como cidadãs, não têm acesso a serviços cidadãos básicos e, consequentemente, possuem dificuldade para se mobilizar politicamente a fim de formar um movimento único para fazer frente ao Estado.

Claro que existem lideranças como Marlete que trabalham para melhorar as condições de vida da comunidade; mas em nível individual, trabalhando com cartórios para registrar bebês recém-nascidos (muitas vezes junto com as próprias mães), fazendo o contato necessário para assegurar funerais dignos para os falecidos, sendo porta-voz da comunidade contra operações policiais ou clandestinas clamando contra as ocupações (legais) de comunidades ciganas em terras.

Marlete também relata que cada vez mais membros das comunidades, principalmente mulheres, procuram educação e especialização para ajudar a comunidade. Marlete e outras lideranças fazem um papel essencial para a comunidade cigana brasileira, mas os desafios continuam sendo grandes — em um sistema político e social que estruturalmente os exclui e marginaliza.

Marlete Queiroz com crianças do acampamento cigano em Planaltina/DF (Fonte: Marcello Casal Jr, Agência Brasil)

Assim como a própria dança cigana, Marlete representa uma chama viva, que se movimenta ao som da vida e cria energia quando se move. Sua liderança e ação política conseguiu levar à elaboração da Lei 248/2015, aprovada em 2 de junho de 2022 no Senado: O Estatuto dos Povos Ciganos. Atualmente em trâmite pela Câmara dos Deputados, o Estatuto, projeto de lei do senador Paulo Paim (PT-RS), reconhece o direito das comunidades ciganas como cidadãs, preserva sua dignidade religiosa e cultural, e estimula e protege as comunidades ao acesso à terra, à moradia e ao trabalho. Sua aprovação será um próximo passo importante para o reconhecimento e a visibilidade das comunidades ciganas como minoria étnica no Brasil, desmistificando sua história e legitimando suas vivências.

O Estatuto, no entanto, está longe de ser a solução para o preconceito e a violência contra os ciganos brasileiros. Violências casuais, como histórias de “ciganos roubarem crianças”, “ciganos comerem cachorros”, reforçam uma imagem de falta de civilidade que causa grande ódio na população. Além disso, a própria estrutura do Estado brasileiro muitas vezes é responsável por esta violência.

“A gente tem medo de divulgar muitas vezes porque temos medo de retaliação”.

Crimes de ódio contra as comunidades ciganas continuam, e Marlete exemplificou ao me contar o caso de vingança coletiva e retaliação em Vitória da Conquista, na Bahia, em que sete integrantes da mesma família foram vitimados após discursos de ódio que os associavam à morte de dois policiais na região.

“O poder público, a polícia, (é visto como se só servisse) para bater, não serve para outra coisa. (…) Se tem muito medo”.

Marlete explicou até mesmo que esta estrutura de violência e falta de confiança impede a própria realização de um censo oficial com comunidades ciganas que, com bons motivos, não confiam na divulgação de informações de identificação ao poder público.

Marlete Queiroz em apresentação de dança cigana durante votação do Estatuto do Cigano

Apesar de todas as dificuldades, dores e violências que Marlete narrou sobre a história dos ciganos em nossa conversa, um sentimento de querer fazer a diferença se sobrepõe. No dia da votação do Estatuto do Cigano no Senado, Marlete participou e apresentou uma coreografia da dança cigana para todos. Durante a discussão de um texto que trata das dores históricas da comunidade cigana, Marlete escolheu também trazer a beleza da cultura cigana para o centro do palco.

“Eu entro dançando, eu entro bailando, eu entro sorrindo. Todas as vezes que eu entro em um local, eu quero mostrar esse lado positivo, essa energia cigana. Porque a dança cigana é uma forma de resistência, ela abre as portas pra gente.

Assim, no Dia Nacional do Cigano, mais do que tudo, é necessário seguir o exemplo de Marlete — falar da história, do preconceito e da violência, sim, mas, principalmente, honrar a cultura, a sociedade e, mais do que tudo, a vida, a energia, e a dança da realidade cigana.

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Isabela Coêlho
CARPAS
Writer for

Internacionalista (UnB) e mestranda em Desenvolvimento Internacional (HUFS), feminista interseccional com a missão de decolonizar agendas de justiça climática