Giulia Cristiano
CARPAS
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9 min readSep 26, 2023

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Entrevista com Luisa Guidoux: experiências de violências e descontinuidades manicomiais

Imagem: Matt Van der Velde

Luisa Guidoux é enfermeira formada pela Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro. Realizou residência no Instituto Nacional do Câncer e, em 2019, iniciou sua segunda residência na área de saúde mental, especificamente no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Adulto e em um CAPS II. Posteriormente, foi contratada por um CAPS II, onde atuou durante um ano. Em 2023, se mudou para a Bavária, onde atualmente trabalha em um hospital psiquiátrico. Na entrevista a seguir, Luisa fala de suas experiências atuando em instituições psiquiátricas dentro e fora do Brasil, relatando cenários de violência e violação:

Luisa: Comecei a residência em saúde mental no ano de 2019. A residência, no primeiro ano, é em um manicômio, você fica o ano todo basicamente aprendendo a trabalhar e também é um período com muita preceptoria e supervisão. No segundo ano, eu fui para dois CAPS e já no final da residência, entre 2020 e 2021, fui contratada por um desses CAPS. Foi maravilhoso porque era tudo o que eu sempre quis. Fiquei lá por um ano, mais ou menos. Por conta das condições de trabalho, como a falta de pagamento de salário e por um sonho antigo pessoal de morar fora, eu comecei a procurar oportunidades na área de enfermagem fora do país. Queria muito ir para um país de língua inglesa, porque é a língua que falo, mas só achei uma oportunidade nessa área na Alemanha. Ingressei em um programa de dedicação exclusiva e larguei o trabalho. Estou aqui há 6 meses e agora moro na Bavária. Trabalho com saúde mental aqui também, em um manicômio. Logo depois de me formar, fiz residência na área de oncologia. Nesse período de um ano, cursei uma pós em saúde mental, e foi o que me manteve sã durante esse tempo em outro campo.

Giulia: Você falou que primeiramente atuou num manicômio no Rio de Janeiro. Qual foi?

Luisa: Instituto de Psiquiatria — IPUB, da UFRJ. Tinha eletrochoque, foi horrível. Mas para mim foi muito bom, porque a gente teve muita discussão sobre isso durante a residência. Todo mundo que estava lá sabia que a gente ia passar o primeiro ano no manicômio, mas obviamente ninguém gostava disso. E a gente tinha muita discussão sobre se isso realmente era necessário. Se ficar um ano no manicômio era necessário ou se a gente não podia ir direto para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Eu tive esse embate interno diversas vezes. Muitas vezes eu pensei: eu estou achando que é importante estar aqui, mas será que é porque eu sou manicomial? Me questionava muito, levava muito para terapia, só que no fim das contas, achei que foi uma experiência desagradável, porém necessária. Acho que só quando a gente vive ali a real feiura do negócio, conseguimos valorizar o outro lado e conseguimos entender por que a gente luta tanto para que aquilo ali não domine, aquela forma manicomial.

IPUB — Instituto de Psiquiatria da UFRJ

Giulia: Atualmente você vive na Bavária. Você pode me contar um pouco sobre sua experiência de trabalho aí?

Luisa: Atuo em um hospital e é muito diferente do Brasil. Esse hospital é referência de psiquiatria daqui da Bavária. Ele não é só de psiquiatria, mas tem muitas aulas psiquiátricas. Eu acho que tem oito alas e trabalho em uma ala fechada. Ou seja, é um manicômio. As pessoas (pacientes) ficam presas e reclusas às vezes por mais de um ano. Contenção a rodo e muita violência. Muita violência. Os próprios trabalhadores, não só da enfermagem, mas também os psicólogos e terapeutas ocupacionais parecem que não enxergam o quanto aquilo é violento.

Giulia: Você consegue identificar algumas diferenças entre o tratamento do doente mental no Brasil e na Bavária?

Luísa: Eu acho que a maior diferença é porque no Brasil você pode estar no manicômio, só que mesmo você estando ali dentro, você sabe que tem uma política que busca prezar por outra forma de tratamento. E que as pessoas também vão ter uma continuidade de atendimento fora da instituição. Pelo menos era isso que a gente tentava no IPUB. Nosso papel ali era pegar essas pessoas que estavam internadas e desinstitucionalizar. Fazer com que elas tivessem um tratamento em liberdade para que elas não tivessem que voltar mais. Era possível contar com o RAPS. Com um paciente em crise, procurávamos um CAPS. Tentávamos tirar o IPUB da linha, sabe? Aqui, o paciente fica internado por meses até ficar “bem”. E quando sai, precisa procurar ela mesma por um psiquiatra, por um psicólogo. Não tem articulação de tratamento. E assim, as pessoas voltam o tempo todo para o manicômio, é muito reincidente. As pessoas voltam o tempo todo, afinal, ali só o sintoma que é tratado. Ah, e a maioria dos internos é imigrante e pobre. Então eu também percebo uma política de recolhimento de corpos acontecendo ali. O paciente por vezes não tem dinheiro para comer e está longe da família. Vieram foragidos de conflitos de guerra. Isso não é tratado, isso não é nem visto. E no Rio de Janeiro, onde trabalhei, pelo menos, a gente tentava trabalhar isso, né?

E aqui, você também consegue ver uma diferenciação no tratamento entre um alemão branco e um imigrante, por exemplo. Alguns imigrantes ficam contidos por 2, 3 semanas na ala, as vezes. Quando é com algum alemão e é feita uma contenção, já se inicia uma preocupação. Se perguntam se aquilo, todo aquele tempo contido, é realmente necessário para o paciente. Acho que talvez seja medo de, nesse caso, alguém entrar na justiça. Medo de alguma denúncia.

Para mim fica óbvia uma política de recolhimento de corpos indesejáveis. Conheço um paciente que recebeu uma ordem judicial para ficar um ano internado, além dos seis meses que já cumpriu. Tudo isso por que ele usa drogas. Um moço inteligente e cheio de sonhos. Toda vez que ele vai fazer a avaliação da justiça, fazem as mesmas perguntas para ele. Principalmente se ele escuta vozes, se pensa em suicídio e se pensa em machucar alguém. Ele teve a última ordem prolongada porque no teste de urina, constataram a presença de THC. Sendo que o uso de maconha é legalizado aqui.

Giulia: Então você já tomou contato com a vida desses pacientes após seu período de internação aí. Você poderia contar um pouco mais sobre esse cenário de internação, mas também sobre o pós, sobre o que acontece com os pacientes quando saem da instituição?

Luisa: A maioria que eu conheço já foi e voltou de lá umas quatro vezes. E é sempre por uso abusivo de drogas. Existem dois modos de internação neste hospital: a internação voluntária e involuntária. No caso da involuntária, ela não é regida somente pelo médico. Ela também é determinada pela justiça. Basicamente, a justiça avalia e determina um período de internação que tem que ser cumprido até certa data. Eu não sei exatamente como eles julgam o tempo de internação, mas é sempre longo, e a pessoa é obrigada a cumprir esse período de reclusão. Mas é uma data sempre longa. E quando finalmente o paciente recebe alta, não há nada como uma residência terapêutica, mas eles são encaminhados para algo como um albergue, onde reside com várias outras pessoas em sofrimento psíquico e que também estão em situação de vulnerabilidade financeira.

Giulia: Certo. Além da intervenção medicamentosa, os pacientes fazem algum outro tipo de tratamento ou socialização nesse manicômio que você trabalha?

Luisa: Fazem, mas para mim é tão balela. Acontece todo dia, mas depende muito da permissão da justiça para eles acompanharem as terapias, porque dependendo da determinação da justiça, eles não podem sair da ala psiquiátrica. Muitos, por exemplo, não podem fazer parte da terapia de esporte e da terapia matinal, já que ambas acontecem fora da ala de internação. A terapia ocupacional acontece toda tarde, que é o momento em que eles jogam, desenham…Mas é isso, tem outros tipos de terapia, como yoga e basquete, mas a grande maioria dos pacientes não pode participar por conta dessa limitação territorial. De qualquer forma, acho essas terapias problemáticas também. O paciente fica recluso e dopado o dia inteiro e lhe é permitido sair em um determinado horário para praticar essas atividades. Só com o afrouxamento da determinação judicial, eles podem sair da ala em certas situações e sob determinadas condições.

Giulia: E aqui no Brasil você já viu esse tipo de internação mais violenta?

Luisa: Só no IPUB. Ainda que eu tenha trabalhado com pessoas extremamente manicomiais* nos CAPS que passei, não acontecia tanta barbárie assim, digamos.

Giulia: E como você acha que a dinâmica de trabalho aí influenciou na sua saúde mental? Como era essa questão aqui no Brasil frente às limitações da área?

Luisa: São durezas diferentes, né? Na Bavária, acho que o que mais me afeta é a falta de uma rede de cuidado para além dos manicômios e de bons parceiros no trabalho. E a língua também. No Brasil eu sofria muito com o meu trabalho, mas era uma fonte de sofrimento que era muito prazerosa também. Eu tinha inúmeros prazeres cotidianos, como ver os pacientes bem, ver os usuários bem, de conseguir fazer uma redução de danos bem feita e também tinha ótimos parceiros de trabalho que estavam ali lutando por um serviço mais libertador. Mas tinham questões externas de financiamento, questões socioeconômicas. Muitas vezes a gente não conseguia ajudar um usuário que estava em uma condição socioeconômica precária. Me sentia muito impotente. As garantias sociais também chegavam de forma muito lenta e era bem burocrático. No Brasil, usávamos muitos recursos próprios. No Rio, por exemplo, você precisa de um carro da prefeitura para fazer visita domiciliar, para entrar nos lugares que são comandados pelas milícias. Você não consegue entrar com o seu carro particular ali. Só que ficamos sem o carro da prefeitura várias vezes e tivemos que ir com o nosso mesmo, gastávamos nossa gasolina. Na época da pandemia, tínhamos um carro só para todo o território que abrange o CAPS, e por causa da pandemia, esse carro ficava reservado apenas para levar vacina ou para levar certas figuras pelo Rio para falar da pandemia. No final, é uma coisa muito recompensadora. Você compreender uma realidade que não é sua e chegar onde o Estado não chega.

Não sei como está agora, mas era muito maravilhoso. Você trabalha no CAPS e pode contar com outros dispositivos também. Eu trabalhava em um CAPS II e a gente contava com o CAPS III de outros territórios quando sabíamos que tínhamos algum paciente em crise e íamos precisar de um acolhimento noturno. Não precisava acionar o hospital ou a emergência psiquiátrica. A gente tinha um CAPS III. Nesse período no CAPS, conheci um usuário maravilhoso, que marcou minha vida. Nos conhecemos no antigo manicômio Jurandyr Manfredini, durante uma visita institucional que fazíamos com o CAPS uma vez por semana. Lá, observamos todos os casos que faziam parte do nosso território e a gente tentava levar esse caso para a rede. E foi assim que conheci esse usuário. Ele falava que era um enviado de Deus, com vários delírios religiosos. Discuti o caso dele com o psiquiatra do manicômio um dia e o que eu ouvi é que esse usuário nunca sairia de lá e foi aí que decidi que iria fazer de tudo para que acontecesse o contrário. Comecei um trabalho de detetive para achar algum parente deste usuário. Ele não falava nada da história dele. Aos poucos, fui construindo um vínculo com ele e ele me contou onde morava. Fizemos visita domiciliar onde ele morava e ele realmente era do nosso território. Um dia, ele saiu e foi para uma Unidade de Acolhimento (UA). Consegui pleitear essa vaga na UA. Falei que ele tinha muitos planos, que queria trabalhar, tomava seus remédios e era bem organizado. Ele ficou lá por cerca de quatro meses. Começou a trabalhar vendendo balas e dois meses antes de eu sair do CAPS, ele conseguiu alugar a kitnet dele e conseguiu um emprego como auxiliar de limpeza e está bem, por aí.

Dá um quentinho no coração toda vez que penso nele.

*A filósofa Sandra Caponi afirma que: “O manicômio permite que se articulem magistralmente dois problemas sociais: a garantia de harmonia da ordem social (que exige ser protegida contra a ameaça de desordem) com certas exigências de cura que falam da eficiência terapêutica do isolamento e do encerramento”. Consideramos uma pessoa manicomial, portanto, quando esta reafirma a lógica manicomial ao apoiar e promover o isolamento, violência e encarceramento como forma de tratamento dos pacientes em sofrimento psíquico.

REFERÊNCIAS:

CAPONI, S. Michel Foucault e a persistência do poder psiquiátrico. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 1, p. 95–103, jan. 2009.

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Giulia Cristiano
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Mestranda no PPGH da UNIFESP e licenciada em História pela mesma universidade. Pesquisa História da Saúde Pública, com ênfase na Psiquiatria.