Eu acho. Não. Eu tenho certeza que te amo (isso é sobre uma cidade).

Maria Paula Maciel
CARPAS
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11 min readAug 24, 2023
Pôster de divulgação do filme “Retratos Fantasmas” (Direção: Kleber Mendonça Filho)

Eu sempre fui menina do centro. Cresci em uma rua de encontro: o CEP afirma Santo Amaro, mas as bocas falam em bairro da Boa Vista. O que interessa nisso daqui é que cresci no centro. A pé, pude conhecer com meu pai lugares da memória afetiva recifense. Até que decidi me mudar, troquei o centro do Recife pela Bela Vista, continuei menina do centro, só que de São Paulo.

Na última noite antes de retornar para São Paulo para continuar com minha pesquisa sobre cultura pernambucana (que surpresa!), fui com minha tia ao Cine Teatro do Parque, prestigiar a pré-estreia — mais disputada que show internacional — do maravilhoso Retratos Fantasmas, novo filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. De quebra, ganhei de presente finalmente assistir o curta Recife de Dentro pra Fora, da incrível Kátia Mesel.

No entanto, já adianto que isso não é uma crítica. Deixo a crítica para os que nela são especializados, que vão observar além do sentimento: a qualidade do som, da imagem, storytelling, pesquisa, acervo e outras coisas. Isso daqui é uma crônica sobre ser e o resistir. Ah, e sobre o amor. Claro. Quando falamos do Recife, temos que falar do amar.

Mas, pra falar do Recife também temos que falar de sua arte. Naquela noite de segunda-feira, muitas coisas me marcaram na pré-estreia; uma das que mais me impactou foi um comentário feito por Kátia no agradecimento pela remasterização do seu curta: “eu trabalho com memória e, de repente, essa memória vai sumindo”.

Somos saudosistas do Recife do antes. Mas, será que fazemos alguma coisa para resgatar essa memória? A maioria apenas reclama, eu não quero reclamar. Retratos Fantasmas é, antes de mais nada, um resgate da memória através da diacronia cidade-arte.

A ideia de cidade do recifense é muito grande. Todo mundo sente que é dono de certas partes. Por exemplo, vocês sabiam que meu lugar favorito para chorar é sentar na frente do caranguejo da Rua da Aurora e depois ver um filme no São Luiz (que encontra-se fechado para reforma)? Ninguém pode chorar lá, eu patenteei como meu, arranjem outro!

Todo mundo tem suas histórias, e todo mundo usa pronomes possesivos.

No Recife de Joaquim Nabuco, o abolicionista, é a amada amante. Pelo menos é isso que diz o livro Arte, Sociedade e Região sobre a relação de Nabuco com a cidade do Recife. Um momento que gosto muito é quando é observado que a melhor rima para Pernambuco é Nabuco. Já que falamos muito dos bairristas, diria que ele foi o primeiro.

No Recife de Clarice Lispector, existe uma melancolia foliã. Ela foi a primeira a usar o pronome possesivo, e no conto Restos de Carnaval escreveu: “é como se as ruas e as praças do Recife explicassem para que tinham sido feitas. O carnaval era meu, meu”. Uma tristeza que a praça e a casa que a escritora cresceu esteja em ruínas, mais um fantasma pra conta da cidade que se diz a mais assombrada do mundo.

No Recife de Manuel Bandeira, o verbo que relaciono é evocar. Aliás, o povo recifense tem um apego com a palavra evocação: tem frevo e tem poesia (acho o frevo uma forma de poesia, mas isso é conversa para outro texto). Por falar de Evocação do Recife, voltamos ao saudosismo que todos possuem em relação a cidade: parece que o ontem sempre era melhor.

No Recife de Renato Carneiro Campos, o resumo pode ser feito através da boêmia e da cor amarelo. Falo isso com um tom sentimental meio besta, Renato era amigo do meu pai, que sempre falou — carinhosamente — das conversas de mesa de bar. Porém, não devemos esquecer: ele também era sociólogo, ensaísta e cronista, e foi no seu ensaio Tempo Amarelo que escreveu: “tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente”. Ao relacionar a cidade do Recife com o amarelo ainda na década de 1970 (aproximadamente), notamos que a decadência do centro da cidade já se provava uma realidade.

Esse ensaio tem ligação direta com Retratos Fantasmas. No filme, aparece uma imagem do belíssimo Amarelo Manga, do Cláudio Assis, que foi narrado por trechos do ensaio, se passando no centro do Recife, observando a cidade como uma metrópole com suas histórias — e sua cor.

Cada artista conta o Recife através de uma história diferente. São mil universos particulares construídos em um eterno agora: todos os criadores citados acima (com exceção de Assis) já se encantaram. Já não estão mais na medida que ainda são, a arte prova. Um danado de memento mori.

No Recife de Kleber Mendonça Filho, a história é contada através de cinemas. Um ode ao cinema, uma declaração ao Recife e uma carta de amor à sua família. Tudo amarradinho no que se tornou meu filme favorito do diretor (é, Aquarius, você foi pro segundo lugar).

Não estou aqui para criticar muito menos para dar spoiler, mas para falar do impacto que senti ao ver Retratos Fantasmas, preciso falar do filme, nem que seja brevemente.

Uma das imagens promocionais de Retratos Fantasmas (2023)

Na primeira parte, “O apartamento de Setúbal”, em suma, fala do prédio que o diretor morou por grande parte de sua vida. Comprado por sua mãe (Joceline Jucá) na década de 1970, foi seu primeiro set de filmagem. Ao relacionar o trabalho de Joceline, na Fundação Joaquim Nabuco, sobre a história oral, disse uma frase que me marcou quanto pesquisadora: “parece que estou falando de metodologia, mas estou falando de amor”.

Foi interessante ver como a realidade de um apartamento no bairro de Setúbal, na Zona Sul do Recife, afetou a criação da arte cinematográfica. Uma rua que já passei incontáveis vezes com os amigos para pegar atalho para praia em um domingo de sol é a mesma rua de O Som ao Redor, um filme que assisti incontáveis vezes desde seu lançamento em 2013, e nunca notei que era a rua do filme (uma mulher desatenciosa).

O lar é a primeira criação de arte de qualquer artista e amei ver, observar e finalmente entender todo processo que levou a tantos detalhes dos filmes do Kleber e que, finalmente, fizeram sentido. Tudo que perguntavam se era direção de arte sobre aquele apartamento, aquele bairro, aquela cidade, na verdade, era a vida.

A segunda parte e, pessoalmente, a minha favorita chama-se “Os Cinemas do Centro do Recife”. Eu amei tanto que parece que não consigo, mesmo que esteja tentando, resumir o que senti nas duas vezes que vi o filme (achei que conseguiria escrever vendo mais uma vez, o que fiz na sexta-feira, 18 de agosto, no Cine Petra Belas Artes).

Aqui eu culpo, em partes, a trilha sonora. Ver pedaços do Recife, mesmo que com seu centro esquecido e apagado, com os gritos intensos de “oh eu te amo, sou apaixonado por você”, tiraram totalmente minha concentração. Perdi a capacidade de pensamento e estava sentimento puro. Viva Sidney Magal!

Existem momentos em que tudo que nos cabe é sentir. E como eu senti vendo esse segundo capítulo do filme. Mas vou tentar escrever!

Uma amiga falou que não saiu do filme sentindo-se bairrista, ela achou que era muito triste olhar para tudo que a cidade foi e já não é mais, que isso ficou evidente no segundo capítulo. Eu discordo. A cidade é porque um dia foi, aprendi isso numa aula sobre História da Cidade.

Lugares e filmes ganharam vida naquela segunda parte. Nomes da época do ciclo da Super 8, que já não são mais comentados na mídia foram relembrados, a exemplo de Jomard Muniz de Britto. Espero que pesquisem o nome dele após saírem da sessão, uma figura incrível.

Mas, talvez, o que mais me tocou ali foi Alexandre Moura, que trabalhou na sala de projeção de um dos cinemas do centro do Recife e, na noite de encerramento do cinema, falar que iria fechá-lo com “a chave de lágrimas”. Eu sou emotiva, choro com tudo. Parece fraqueza, mas é bom. Liberta a alma. Todas as vezes que lembro da chave de lágrimas, quem fica em lágrimas sou eu.

Os cinemas do centro eram lugares de encontro. Com o São Luiz fechado para reforma (e espero que seja apenas para reforma) existe um buraco sentimental que não sei explicar. Torço para que a gente volte a se encontrar.

A parte final, Igrejas e Espíritos Santos, foca nas transformações que as cidade passou. Alguns cinemas viraram igrejas, templos. Mas não foram sempre? Na Grécia Antiga, a cidade era constituída como ato religioso com seu templo centralizado. Não é muito diferente dos dias atuais. Ao ouvir nessa parte sobre os cinemas como templos, me questionei qual seria o Deus.

Pensei em dividir com o carnaval — peça importante do centro do Recife — e dizer que o deus seria Baco ou Dionísio. Para chamar esses deuses, seja na sua versão romana ou grega, deve se gritar aos ares “evoé”, já conhecido no carnaval. É um grito de alegria. Se juntar o centro do Recife, os cinema do centro e o carnaval pertencente das ruas, o resultado é uma celebração dionisíaca.

Ou talvez, o deus dos cinemas (templos) de rua do Recife sejam as pessoas que passaram por aqui. Falo isso porque no inicio do terceiro e último capítulo do filme, aparece um personagem quase que mitológico da cultura pernambucana: Joel Datz, um dos irmãos evento. Ele faleceu em 2021. Engraçado que o conheci no cinema São Luiz, falei toda tímida. Quando ele apareceu na tela troquei discretos sorrisos com minha tia, a gente foi já esperando uma cena com ele.

Os últimos anos foram cruéis com a nossa cultura; para além de Joel, também se foram Tarcísio Pereira, Tereza Costa Rêgo, Lailson de Holanda e tantos outros. Uma vez conversei com Lailson sobre um festival psicodélico que aconteceu em Nova Jerusalém em 1972, quando os anos de chumbo estavam em seu período mais duro. Ele me contou várias histórias que, ao pesquisar sobre, não existem registros. Como lamento não ter gravado essa conversa.

A memória é importante demais. A imagem é memória. Pelo menos é isso o que fez Aby Warburg ao estudar o conceito de mnemosyne e criar o que ficou conhecido como a Biblioteca das Memórias, um atlas da imagem que buscava contar histórias e fazer entender situações só com o uso da imagem, era a ideia da história da arte sem palavras.

Biblioteca das Memórias

A relação é estabelecida entre a memória, o cinema e a cidade. A presença ou ausência da sua história, mostra a arte como determinante de um espaço publico e os problemas de preservação. O dinheiro — como fala no filme — foi para outro lugar. Logo, o valor do que ficou, também.

A arte e a cidade são uma coisa só. Os cinemas do Recife, seus escombros, memórias, fazem parte do pedaço de cidade que se forma. Os fantasmas do que um dia foi a cidade assombram seu cotidiano. Parece que com um pingo de vida, tudo voltaria ao normal (nesse caso, um pingo de investimento).

O espaço é percebido e concebido a partir do próprio corpo humano e a sua relação com o mundo. A maioria desses cinemas que já não são mais, continuam fechados. São ruínas. Fantasmas? Talvez. A não ocupação deles e a estranheza quando ganham outras ocupações que não um cinema provam que eles foram feito para isso.

A cidade já não é mais o que um dia foi. Todo centro, principalmente no contexto latino-americano, sofreu essa mudança. Esse abandono. Não preservar a memória da cidade é uma forma de deixar as pessoas sem personalidade, sem noção de eu, sem um passado. Ainda bem que agora temos Retratos Fantasmas para falar do que um dia foi.

Esse conceito de “um dia foi” é interessante. Atribuo muito ele ao grupo Caminhadas Domingueira, criado por Francisco Cunha, que um domingo por mês, realiza caminhadas pelo Recife, contando histórias fantasmas de uma cidade que um dia foi diferente. Uma vez, ao falar sobre os arcos do triunfo que a cidade possuía e lamentar sua mudança, eu ouvi que “pense o Recife pelo o que ele deveria ser, e não pelo o que é”.

Eu amei um pouco mais a cidade depois desse dia.

Essas caminhadas, filmes como o do Kleber, da Kátia fazem um resgate da memória necessário e, como falei um pouco acima, precisamos da criação de uma identidade coletiva.

É conhecendo esse passado que ganhamos força para resistir.

Fiquei pensando muito na questão da resistência quando vi o filme. Mesmo agora com um governo que apoia a cultura, o desmonte cultural do Brasil é triste. E assim, volto a pensar no cinema São Luiz: quantos anos vão durar essa reforma? Será que é uma reforma mesmo? Existem movimentos que se ocupam disso, mas a demissão em massa que ocorreu no cinema é um tanto quanto curiosa.

A gente não larga o osso. Me mudei para São Paulo e continuo a ser pesquisadora cultural do Recife. Precisava desse filme, precisava lembrar tudo que somos. Precisava ver os gritos, notar como quando se trata do nosso povo, aplaudimos a arte regional como no sudeste aplaudem os gringos. Dá uma vontade de bater no peito e dizer: é nosso!

De longe, posso ver como somos necessários. Isso ficou claro pra mim quando vi o curta de Kátia, fiquei lembrando de uma frase do cantor Martins: “quem vem de Pernambuco, traz um rio dentro do peito”. Minha maior saudade quando estou aqui, é a água. É a Aurora e o Sol.

Uso desse texto que minhas editoras pediram para escrever para um motivo totalmente egoísta: agradecer. Precisava reafirmar tudo de grande da nossa cultura pernambucana pra lutar pelo que acredito aqui em baixo.

Como disse, eu senti tanto que precisei ver uma segunda vez. Mas foi estranho. Quando saí do Petra Belas Artes (São Paulo) eu encontrei uma Rua da Consolação engarrafada, um vendedor de milho, muitas pessoas na parada de ônibus e nenhum frevo. Isso porque quando saí da sessão do Parque (Recife), estava acontecendo um grito de carnaval: Escuta Levino e os Guerreiros do Passo juntos, celebrando Retratos Fantasmas, celebrando o seu diretor e celebrando o Recife.

E em menos de 12 horas eu já estaria na pauliceia desvairada. Que despedida. Que saudade. Ser recifense é ficar mal acostumado, a gente gosta muito da gente.

Para finalizar, uma curiosidade: apareceu em Retratos Fantasmas sobre o apego que os recifenses tiveram por Hair, que passou no Cinema Veneza. Minha mãe foi uma delas, me contou que viu 11 vezes apenas no cinema. Quando eu tinha uns 12 anos, ela me deixou ver em DVD (um dos primeiros que ela comprou no inicio dos anos 2000, quando compramos o aparelho).

Existem filmes, músicas, poesias, crônicas que tornam-se nossas. A produção é do criador até o momento que vai pro mundo e aí torna-se o “favorito” de alguém que define, às vezes, sua personalidade através de personagens, músicas e frases.

Vi Retratos Fantasmas apenas duas vezes, uma no Recife e uma já em São Paulo. Vou ver mais algumas vezes, tentar competir com o número de vezes que mainha viu Hair, roubar um pouco desse filme pra mim sempre que quiser me sentir em casa.

Kleber, o filme é seu. Mas sinto muito, eu o roubei.

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Maria Paula Maciel
CARPAS
Writer for

Recifense convicta e Pernambucana bairrista. Mestranda em Estudos Culturais pela USP, redatora da Revista Carpas. Cinema, música, saudosismos culturais.