“I Am Not A Witch’’ e a real caça às bruxas no continente africano.

Julianny Araújo
CARPAS
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7 min readMay 15, 2020

É baseada nas experiências de muitas mulheres e meninas dentro do continente africano que a cineasta zambiense Rungano Nyoni decidiu explorar, no filme I Am Not A Witch, o tratamento misógino dado as mulheres que são consideradas ‘’bruxas’’ no continente. Segundo a BBC Africa, a diretora, inspirada por histórias de casos reais de bruxaria em Zâmbia, passou um mês fazendo pesquisas dentro de um ‘’acampamento de bruxas’’ sobre as mulheres que foram exiladas para o local sob acusações de feitiçaria.

O filme começa com um ônibus repleto de turistas chegando a uma área seca e pontilhada por árvores estéreis para ver um grupo de mulheres idosas sentadas no chão atrás de uma cerca, vestindo roupas azuis idênticas e tinta branca pintando as bochechas e ao redor dos olhos. Este local mostrado é, na verdade, um dos muitos campos de bruxas de Zâmbia (cujo nome não é mencionado em nenhuma ocasião durante o filme) e essas mulheres são as “bruxas’’. O guia dos turistas explica que as bruxas são presas a longas fitas brancas que terminam em carretéis gigantes para impedi-las de “voar e matar’’. Mais adiante, elas serão vistas trabalhando como escravas na lavoura e na extração de pedras. Caso elas unam-se em matrimônio com um homem, ficam livres do acampamento, mas quem iria aceitar se casar com uma bruxa? É uma visão angustiante da insanidade do velho mundo posta em prática atualmente; as mulheres são apresentadas como animais de zoológico ao “posar’’ para seus clientes e são tratadas como criaturas sobrenaturais.

“As fitas brancas são uma representação da limitação das bruxas na vida real,” diz Nyoni sobre as fitas brancas, que não existem fora do filme. “Eu queria algo que caracterizasse essa ideia.”

I Am Not A Witch exibe a história de “Shula’’ (“desenraizado’’, em zambiano) uma criança de apenas 9 anos que, após ser acusada de bruxaria pela aldeia onde vive, é prontamente enviada para morar em um acampamento junto de outras bruxas e, como se não bastasse, vê-se obrigada a realizar serviços para o governo local. O filme trás a comovente história de uma prisioneira desse sistema que demoniza as mulheres, as separa do resto da população e as faz trabalhar a favor deles. O longa faz uso de um humor cortante, expondo a feiura da misoginia de Zamba e transformando a obra em uma sátira, lançando foco a uma prática intolerante e ainda atual.

Quer na Europa da Idade Média ou na África em épocas mais recentes, o foco principal da caça às bruxas é sempre a perseguição às mulheres. Fora da ficção, há diversos relatos reais de africanas sendo acusadas de bruxaria por nenhum motivo razoável e tem as vidas devastadas ao serem forçadas a ir ao acampamento. O imaginário popular é tão poderoso que elas de fato creem que podem ser amaldiçoadas caso fujam:

‘Eu fiquei confusa e cheia de medo porque sei que eu era inocente’, diz Samata, de 82 anos, bruxa em um dos acampamentos de Gana. ‘Mas eu sei que uma vez chamada de bruxa pelas pessoas, sua vida está em perigo. Então sem esperar nem para pegar minhas coisas eu fugi da minha vila. (…) Quando você é acusada de bruxaria você perde sua dignidade. E, para ser honesta, eu senti como se fosse o fim da minha vida’.

Segundo a lei da Zâmbia sobre a bruxaria, qualquer pessoa que acuse outra de ser um bruxo ou bruxa, ou de causar a morte, ferir ou causar outro danos a terceiros de forma sobrenatural, pode ser multado ou encarcerado por até um ano. Porém, ainda assim, de acordo com o PANAPRESS, canal de notícias africano, mais de 30 idosos na província de Muchinga, parte norte da Zâmbia, foram assassinados no ano de 2010 por suspeitas de praticar bruxaria, sendo grande parte deles, incontestavelmente, mulheres.

Encontra-se, na Tanzânia, uma das maiores quantidades de assassinatos relacionados à bruxaria. A perseguição de bruxas causa anualmente uma média de 500 mortes violentas, segundo dados do Legal and Humans Rights Center (LHRC) e a região mais afetada são as áreas rurais ao sul do Lago Vitória. O curioso é que a população da Tanzânia é majoritariamente cristã, provando que a crença e a prática da bruxaria continuam enraizadas e ultrapassam as fronteiras da religião.

De acordo com relatório da Unicef de 2010, Angola, Nigéria, Camarões, República Centro-Africana, Libéria, Serra Leoa, Tanzânia, Burundi e Gabão são alguns dos países os quais existem registros sobre crianças consideradas “bruxas”. Uma delas, uma menina de 15 anos que não pôde ser identificada, foi rotulada pelo fato do pai da garota ter morrido após um ataque epilético de um primo o qual não obteve explicações médicas.

“A mulher de meu tio disse que eu era responsável pela doença do garoto, pois ela nunca tinha visto algo parecido”, afirmou. Com isso, ganhou o título de “feiticeira’’ e sua vida tornou-se um inferno até ser expulsa de casa. A história, no entanto, se repete em outras famílias.

No livro Mulheres e a Caça às Bruxas, a autora Silvia Federici relaciona a pobreza com as acusações de bruxaria; “Eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social”:

“O ponto de vista mais convincente é de que essas caças às bruxas não são um legado do passado, e sim uma reação à crise social produzida pela reestruturação neoliberal das políticas econômicas da África.” (p. 115)

Em um outro livro intitulado Calibã e a bruxa, Silvia procura também mostrar a influência das crises econômicas e demográficas, como a ocorrida durante a Peste Negra, nas leis e na política de terras e como essas mudanças institucionais e seus efeitos culminaram no controle estatal do corpo das mulheres ainda vigente hoje. As perseguições a essas mulheres tidas como feiticeiras, sobretudo na América e na África, envolvem muito mais do que crenças de uma certa época e podem ser relacionadas com a manutenção da lógica capitalista. Esses pontos passam batido até mesmo por grandes estudiosos como Karl Marx e Foucault.

Ainda em Mulheres e a Caça às Bruxas, Federici escreve a respeito da função que os meios de comunicação exercem nesse processo da perseguição às bruxas em alguns países da África: “A mídia ajudou nesse processo, sinal de que a nova “loucura das bruxas” não é um fenômeno puramente espontâneo. Em Gana, são transmitidos diariamente programas de rádio e televisão que relatam como as bruxas atuam e como podem ser identificadas.”(p.123). Entretanto, ativistas dos direitos humanos reforçam que os filmes sobre o abuso frequentemente negligenciado de mulheres — como mutilação genital feminina e casamento infantil — ajudam a aumentar a conscientização sobre a realidade dessas práticas e poderiam também rebentar mitos e falácias construídos ao longo de décadas.

“Os filmes sobre abusos de gênero relatados ou pouco conhecidos são muito importantes, pois podem chamar a atenção do público para essas questões ocultas e forçá-las à luz”, disse Shelby Quast, diretora da instituição de caridade Equality Now. ‘’Trazer essas histórias à tona pode ajudar os sobreviventes, a sociedade civil e as comunidades a responsabilizarem seu governo e responsáveis.”

Diariamente, milhares de mulheres e meninas em países que vão da Índia e Paquistão à Tanzânia, Quênia e Nigéria ainda são marcadas como bruxas — geralmente por seus parentes ou vizinhos — em uma tentativa de usurpar sua terra ou herança, dizem os ativistas. Em muitos casos, as vítimas são viúvas idosas que são humilhadas, espancadas, expulsas e excluídas de suas comunidades.

“No contexto africano, a “caça às bruxas’’ leva a alienação de pessoas da comunidade e, consequentemente, nega as mulheres acusadas seus direitos de possuir terras ou mesmo herdá-las além de reduzir sua capacidade de cuidar de si mesma”, disse Philip Kilonzo, da ActionAid Kenya. “Em algumas comunidades, é cada vez mais uma prática linchar as bruxas, o que leva a uma violação adicional de seus direitos, negando-lhes o direito à vida.”

“Por esse motivo, é importante haver um esforço para compreendermos a história e a lógica da caça às bruxas e as muitas maneiras pelas quais ela se perpetua em nossa época. Pois é apenas mantendo essa lembrança viva que poderemos evitar que ela se volte contra nós.” — Mulheres e a Caça às Bruxas, Silvia Federici.

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