Imperialismo no cinema: como os filmes de zumbi estadunidenses ajudaram a demonizar a religiosidade afro-latina

Giovanna Teixeira
CARPAS
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23 min readMar 7, 2023
Andre Normil — Ceremonie du Bois-Caiman, 1990

Diversos viajantes europeus que aqui estiveram registraram seus relatos de viagens em crônicas e cartas, na chamada literatura de informação, escrevendo sobre a vida dos nativos, aspectos biológicos da terra e a implantação do sistema colonial pelos portugueses.

No princípio do imperialismo, os mestres coloniais justificavam suas investidas pela religião: eles foram dirigidos por Deus para levar a civilização — que, nesse sentido, era um sinônimo da cultura e do modo de vida europeu — ao resto do mundo. Assim, concluía-se que se ao colonizador era imposto o “fardo” de civilizar, os colonizados eram os incivilizados, incapazes de lidar com as riquezas de suas terras e necessitados de tutela. A catequização forçada dos povos autóctones foi um instrumento essencial nesse processo: ao passo que forjava também a dominação material e subjugação dos corpos, combatia a resistente diversidade das espiritualidades originárias, demonizando-as, perseguindo-as e desmoralizando-as perante outros europeus e perante o próprio povo colonizado. O discurso de superioridade civilizacional existente nas origens do imperialismo continua nos dias contemporâneos, e a retratação do mundo não ocidental como selvagem é um fator constituinte dessa retórica.

Nas crônicas do descobrimento, o ato de descrever o mundo não revelava o mundo propriamente dito, mas um projeto político, carregado pelo egocentrismo de superioridade cultural europeia característico e difundido na materialidade através da apropriação da terra, da dominação dos corpos e da espoliação das riquezas. O regime colonial, segundo o teórico martinicano Frantz Fanon, é a ocupação militar continuada por uma burocracia civil e policial visando a exploração econômica e fundamentada na desumanização do colonizado.

A colonização é uma operação de terror onipresente. Ela está inculcada em todos os aspectos de uma sociedade, pois constitui a estrutura sobre a qual as relações sociais existem. Uma vez que o processo colonial também se firma na cultura, paralelamente a dominação da terra circula a dominação da história e da memória, adaptando-as para a funcionalidade da reprodução do sistema. O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos (SAID, 2011).

Portanto, a violência colonial e a ofensiva imperialista não estão restritas ao campo material. O objeto principal de sua disputa é a terra e os seus recursos, mas é preciso justificar a ocupação dessa terra, expor quem tem ou não o direito de estar nela, quem tem o direito de explorar e quem deve ser explorado. Quando o Padre Anchieta anunciava em suas cartas a degradação moral dos indígenas e o “fardo” da salvação concedido a Igreja, ele estava estabelecendo uma narrativa, uma relação entre aquele que tem o direito e o dever de dominar e aquele que lhe deve subjugação.

Séculos mais tarde, quando o pastor evangélico Pat Robertson disse que as tragédias naturais que assolavam o Haiti eram resultados de um pacto que o povo fez com o Diabo para libertarem-se do domínio francês, ele estava se apoiando no imaginário popular dos haitianos como praticantes de “magia negra” e do Haiti como terra de ninguém, espaço a ser conquistado, como recurso para reafirmar a possibilidade moral da intervenção estadunidense no local.

No entanto, muito antes de Hollywood lucrar com a má reputação do vodu, ela foi formulada como um meio de manter a hegemonia branca no mundo ocidental no estabelecimento das religiões “não válidas”, isto é, toda forma de espiritualidade que desafiasse a filosofia cristã. Durante a colonização de São Domingos (atual Haiti), a campanha contra o vodu desempenhou um papel fundamental na produção e circulação mercantilizada da literatura imperial e das imagens do ritualismo haitiano.

Por isso, a fim de compreendermos a dimensão das causas e das consequências da má representação do vodu nas telas de cinema, é preciso antes conhecermos essa expressão religiosa e sua importância para o povo caribenho.

A FORMAÇÃO RELIGIOSA CARIBENHA E OS ESTERIÓTIPOS HOLLYWOODIANOS

O vodu é um sistema de pensamento mágico-religioso, uma concepção de mundo, de homem, de sociedade, de vida e de morte criada pelos nativos haitianos na ex-colônia francesa de São Domingos (MILLET, 2018). De origem africana, com influência do catolicismo e de elementos religiosos e culturais dos nativos americanos, o vodu é uma criação haitiana.

Focado na celebração de espíritos ancestrais chamados Iwa, todos os rituais vodu são, em seu âmago, rituais de cura, através de festas, cantos e danças extasiantes, esses rituais consertam corpos danificados e restauram laços sociais rompidos (MCGEE, 2014). Em Dahomey, o termo “vodoun” designa as divindades das nações Aradá. “Voodoo”, por sua vez, tratava-se da pronúncia incorreta da palavra francesa e hoje é muito usada para se referir aos rituais de origem vodu praticados em Nova Orleans.

É, portanto, difícil encaixar essa tão vasta expressão cultural em uma simples definição (inclusive, há um amplo debate entre os voduístas quanto a categorização do vodu como religião). Conquanto, como o presente artigo trata das representações do vodu e do Caribe, não creio que seja crucial estabelecer uma definição precisa do que é o vodu. Mais importante do que isso é explicar qual sua importância na formação da identidade caribenha e como, ao atacar e estereotipa-lo, faz-se o mesmo com todo um povo.

De acordo com Fanon, as contradições existentes na gestão imperialista e a crescente ascensão das resistências anticoloniais fizeram necessárias outras formas de dominação. Se a população do mundo organizava-se cada vez mais na luta pela libertação nacional, seria preciso, também, um desenvolvimento articulado pela hegemonia. Assim,

O racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar na biologia – uma vez que as Escrituras se provaram insuficientes – a base material da doutrina. Este racismo que se pretende ser determinado de modo racional, individual, genotípico e fenotípico, transforma-se em racismo cultural. O objeto do racismo já não é o homem individual, mas uma certa forma de existir.

Para um grupo social ser subjugado, ele é desumanizado. Conforme dito anteriormente, as nações coloniais não estão objetivamente preocupadas com o confronto de culturas, e sim com o empreendimento da terra e da exploração. Conforme explica Fanon, a primeira demanda é a escravização da população originária. Para tanto, é imperativo destruir seus sistemas de referência, desestruturar seu panorama social, ridicularizar os seus valores, detratar sua religião; “a expropriação, a espoliação, a razia, o assassinato objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos padrões culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem.”

Uma vez que os autóctones têm seus sistemas referenciais aniquilados, desamparados de sua cultura, eles são obrigados — não como escolha individual, mas como efeito da projeção colonial — a integrarem-se nas depreciações de suas formas originais de ser e seguir as novas normas impostas pelos colonizadores. Isto, Fanon categoriza como alienação.

O exotismo, por sua vez, é a visão da alteridade cultural a partir do Ocidente na qual é projetado sobre o Outro um conjunto de desejos, medos e fantasias próprias: indígenas canibais, mulheres sedutoras, homens selvagens. A palavra “selvageria”, muitas vezes mencionada nesse texto, é importante para a compreensão dessa ideia de Outro; para o Ocidente, o Outro é sempre selvagem, animalesco, levado pelas paixões desenfreadas, irracional, enquanto o Ocidente caracteriza-se pela racionalidade, civilidade e moralidade.

O exotismo é, também, uma forma de, a partir da objetificação deste Outro, simplificar a confrontação cultural a partir da dicotomia Ocidente civilizado e Oriente selvagem. Afinal, se o mal chamado “Oriente” e seus povos carecem das mais básicas faculdades relacionais humanas, nenhuma confrontação justa pode existir, e o primeiro tem o direito moral de subjugar o segundo.

A atual indústria do turismo, por exemplo, constitui um caso paradigmático de exotismo contemporâneo onde a cultura visual desempenha um papel importante; em seus anúncios, catálogos e páginas da web, o turismo usa todo o imaginário descrito acima para atrair e seduzir o cliente e vender o Caribe como um destino de férias paradisíaco, ideal para compensar a agitação da vida urbana cotidiana (CANALS, 2013).

Na tradição de Robson Crusoé de narrativas de conquistas gloriosas e relatos reais e ficcionais de “lugares estranhos do mundo”, foram lançados filmes que compuseram um novo e popular subgênero cinematográfico: os filmes de piratas. Com Piratas do mar do Caribe (1942), Caribe (1945) e Os corsários do Caribe (1961), essas aventuras puderam ser vistas em todo o mundo, atingindo proporções inéditas até o momento e lançando o Caribe como uma referência icônica global (CANALS, 2013). Nelas, o Caribe é uma terra sem lei ou ordem, repleto de joias, tecidos e comidas exóticas a serem disputadas por indivíduos gananciosos e poderosos.

A natureza do arquipélago compõe os cenários como um recurso narrativo; a sensação de selvageria e irracionalidade é ilustrada pelos furacões, terremotos e estranheza da fauna e da flora e funciona também como uma representação dos personagens nativos. Há os tropos racistas comuns (a empregada dócil, o predador sexual, a mulher negra hipersexualizada, o medroso, o místico, etc) e a retratação do vodu como cerimônias assustadoras, arrepiantes e demoníacas.

No entanto, antes dos filmes de piratas caracterizarem o Caribe como uma terra de aventuras, os filmes de terror o representaram como uma terra misteriosa e maligna. Enquanto partes de um subgênero, os zumbis entraram para a cultura pop através do prestígio de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), que não referencia nem o Haiti, nem o vodu. Ao longo do tempo e das produções, os zumbis foram se distanciando de suas retratações originais, que, por sua vez, destoavam do que eram, de fato, esses seres dentro da cultura voduísta.

Outrossim, o vodu é constantemente utilizado como propaganda turística. Saindo do Caribe e indo para Nova Orleans, uma cidade com forte influências caribenhas, bonecos vodus, feitiços e espetáculos, não necessariamente de praticantes dessa espiritualidade, são vendidos pelas avenidas. Enquanto isso, os voduístas sofrem intolerância religiosa, têm seus espaços invadidos, depredados, suas tradições culturais ridicularizadas e demonizadas.

Uma vez que as representações colonialistas do vodu foram continuamente perpetradas na cultura popular, os elementos do chamado “New Orleans Voodoo” mesclam uma resistente autenticidade com a estética dos anúncios na mídia criados como meio de lucro. Nesta dinâmica, a prática é muitas vezes tratada como nem integralmente parte da cultura dominante e nem totalmente aceitável nas culturas de onde se originaram.

Ao ver Nova Orleans somente como um cenário de filmes e uma passagem turística, com a mídia pouco tangendo os problemas materiais de seus habitantes, há a ilusão de que essa superficialidade é o todo. Em outros termos, podemos pensar no exotismo como o processo de validação de representações superficiais e fantásticas de um povo em detrimento da auto representação e das contradições culturais.

Em 1517, cerca de 4.000 escravos foram importados da costa da África Ocidental para São Domingos. Ao longo do restante deste século e do próximo, o comércio de escravos intensificaria entre a África e Caribe. Os escravos vinham, sobretudo, de três áreas culturais: a “zona sudanesa” (a costa norte do atual Senegal até a Libéria), compreendendo populações inteiras de mandinka, maninka e bambara e os wolof e fulas; a “área guineense” (costa da atual Costa do Marfim e Gana [Costa do Ouro], Togo, Benim e Nigéria [Costa dos Escravos]); e a “área Bantu” (costa da atual Camarões, em sua parte norte, e toda a costa de Angola, no sul, que incluía escravos da atual Moçambique).

No último terço do século XVIII, predominaram os escravos da zona Bantu, maiormente os de origem congolesa e angolana. No entanto, os principais elementos voduístas têm suas raízes primárias nos povos jeje-fom.

Por causa do tráfico transatlântico de escravos, muitas manifestações religiosas com as mesmas raízes ou com raízes semelhantes foram lançadas e cultivadas noutras partes do mundo: o candomblé no Brasil, a santeria em Cuba, a obeah na Jamaica, entre outras.

Em 1791, tem início a Revolução Haitiana, liderada por Toussant L’Ouverture, que levará, em 1804, a colônia de São Domingos à independência da França (ao custo de uma enorme dívida e de um bloqueio econômico), transformando o Haiti na primeira república negra e no primeiro país do mundo a abolir a escravidão. O vodu, definitivamente, serviu como unificador dos haitianos e ajudou a impulsionar esta luta. Durante a guerra contra os franceses, os colonos espalharam relatos de haitianos que voltavam a vida para o campo de batalha.

Além disso, um ritual vodu precedeu o dia da insurreição. Nele, o sacerdote Dutty Bouckman proferiu um discurso contra o “Deus dos brancos”, a favor de um Deus próprio, que auxiliaria seu povo na luta por independência e liberdade:

O Deus que criou a terra; que criou o sol que nos dá luz. O Deus que sustenta o oceano; que faz o trovão rugir. Nosso Deus que tem ouvidos para ouvir. Você, que está escondido nas nuvens, que nos observa de onde está. Você vê tudo o que o branco nos fez sofrer. O deus do homem branco pede que ele cometa crimes. Mas o Deus dentro de nós quer fazer o bem. Nosso Deus, que é tão bom, tão justo, nos manda vingar nossas injustiças. É Ele quem vai direcionar nossas armas e nos trazer a vitória. É Ele quem nos ajudará. Todos nós deveríamos jogar fora a imagem do deus dos homens brancos que é tão impiedoso. Ouça a voz pela liberdade que fala em todos os nossos corações.”

O Haiti, já envolto em significados demoníacos, tornou-se um alvo ainda mais importante na luta ocidental pela hegemonia, uma vez que a revolta dos chamados “jacobinos negros” viria a impulsionar sequentes sublevações, como, por exemplo, a Revolta dos Malês, em Salvador, 1835.

Em 1809, mais de 10.000 haitianos refugiados migraram em massa para Nova Orleans, cidade que também havia sido colonizada pelos franceses e que abrigava uma população de escravos majoritariamente da África Ocidental. Com a partilha da herança cultural yorubá, o recém-chegado vodu haitiano e as práticas já existentes no local agregaram-se rapidamente, dando origem a novas vertentes. Sob influência congolesa, a afinidade com os espíritos dos mortos deu lugar a prática e celebração.

Na Jamaica, a palavra ‘obeah’ apareceu pela primeira vez em documentos do início do século XVIII referindo-se à resistência dos Maroons. A prática da obeah foi ilegalizada em 1760, após a Rebelião de Tacky, uma grande revolta de escravizados supostamente inspirada por um “obeahman”. Como tal, a Jamaica tornou-se ‘a primeira das colônias britânicas a promulgar legislação contra o obeah’, que iniciou ‘uma longa história de policiamento do obeah’, incluindo ‘prisão, açoitamento e multas por conluio com pessoas associadas ao obeah’ (MARTIN, 2016).

O vodu e a obeah tornaram-se cada vez mais conhecidos pelas populações das metrópoles através dos relatos de viagens. Em 1884, o relato do diplomata britânico Spenser St. John no livro “Haiti ou a República Negra” reforçou e atualizou as imagens racistas da religiosidade afro-caribenha ao comunicá-las como cultos demoníacos dirigidos por zumbis e repletos de sexo, sacrifícios humanos e canibalismo. Amplamente lido tanto nas metrópoles como nas colônias, seu livro impactou a visão já depreciativa dessas religiões.

Em Cuba, chegaram escravos em tripulações pertencentes a fazendeiros fugidos da Revolução Haitiana, carregando consigo a tradição do vodu, bem como da Tumba Francesa, que persiste no Leste da Ilha, especialmente em Guantánamo, Santiago de Cuba e nas áreas rurais da atual província de Holguín. Da mesma forma, nas primeiras décadas do século XX, seu impacto foi notório nos territórios das ex-províncias de Oriente e Camagüey, devido às dezenas de milhares de trabalhadores migrantes que adentraram para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar e café que chegaram devido ao grande desenvolvimento na Ilha respectivo às exigências do comércio internacional em plena Primeira Guerra Mundial (MILLET, 2018).

Ou seja, o vodu como elemento unificador caribenho e afro-caribenho não é uma singularidade das revoltas antiescravagistas, mas sim uma manifestação contínua. A religião foi, para esses imigrantes haitianos, um recurso de preservação da identidade diante da perseguição constante.

A INTERVENÇÃO ESTADUNIDENSE NO CARIBE: O RACISMO AFRO-LATINO

As intervenções estadunidenses no Caribe intensificaram em 1898, com a cessão espanhola de Porto Rico e a primeira ocupação de Cuba pelos Estados Unidos, e agravaram ainda mais a partir de 1903, com a tomada do Panamá. No ano seguinte, Roosevelt anunciaria o corolário da Doutrina Monroe, clamando o “direito” e a “responsabilidade” dos Estados Unidos de intervir como um “poder de polícia internacional” nos assuntos de seus vizinhos do sul nos casos de “inadimplência da dívida externa” e/ou o “afrouxamento geral dos laços da sociedade civilizada”. A métrica para definir o que é ou não civilização, nós já sabemos, são os interesses ocidentais.

No ano da segunda ocupação estadunidense nas terras cubanas (1906, e a ocupação findaria em 1909), em seu livro “Los negros brujos” (Os negros bruxos), Fernando Ortiz declarou a imoralidade e a criminalidade dos “ativismos raciais” e pediu “terapia social” através de metáforas de “saneamento” e “higiene”. Nesta mesma época, espalhou-se um pânico social dos tambores, pois se acreditava que os negros utilizavam os sons das batidas para comunicação. Fenômenos semelhantes aconteceram no Haiti, também durante a ocupação militar estadunidense, esta iniciada em 1915 e cessada em 1934.

A cultura haitiana foi sensasionalizada, distorcida, demonizada e tratada como mercadoria, enquanto os haitianos eram sujeitos a trabalho forçado. O oficial Smedley Butler, um dos fuzileiros navais mais condecorados dos Estados Unidos, reinstalou o sistema de corvéia, objetivando o aumento de construções de estradas públicas que beneficiariam os movimentos militares estadunidenses.

Em novembro de 1921, o general Eli Cole foi solicitado a listar as justificativas para o desembarque dos fuzileiros navais no Haiti (em 28 de julho de 1915). Sua resposta foi uma lista de condições internas, entre as quais: “O voudauxismo (voduísmo) era desenfreado.” Esta não é de forma alguma o único momento ao longo dos quase dois mil páginas de depoimentos e relatos sobre a ocupação quando a prática do “voudauxismo” (ou, cada vez mais, “voduism” ou “voodoo”) é oficialmente invocado para servir como uma evidência da “desordem” haitiana, necessitada de “limpeza” militar americana — uma metáfora literalizada em regulamentos do código sanitário e aplicado muito mais amplamente (RAMSEY, 2015).

No inquérito do Senado de 1921–1922, sobre testemunhos das atrocidades cometidas pelos ocupantes aos haitianos e na República Dominicana, o depoimento de oficiais militares revela a intensa, quase histérica associação que eles faziam entre haitianos e a feitiçaria. Mas essa ligação não era espontânea. No Código Penal aplicado na ilha, constava-se no artigo 405:

“Todas as pessoas que praticam ‘ouangas’, ‘caprelatas’, ‘vaudoux’, ‘donpedre’, ‘macandals’ e outras feitiçarias, será punido com prisão de três a seis meses, e multa de sessenta a um cento e cinquenta gourdes, julgados por Tribunal Ordinário; em caso de segunda ofensa, prisão de seis meses a dois anos e multa de três cem a mil gourdes, julgados pelo Tribunal de Correcção, sem prejuízo do mais se penas verídicas em que possam ter incorrido, por ofensas ou crimes cometidos por eles na preparação, ou execução praticando suas feitiçarias. (…) Toda dança e outras práticas de qualquer tipo que possam fomentar nas pessoas um espírito de fetichismo e superstição, serão considerados feitiços e receberão as mesmas punições.”

E, mais adiante, no artigo 407: “Instrumentos, utensílios e trajes, de serviço ou destinado a servir nos ritos abrangidos nos dois artigos anteriores, serão apreendidos e confiscados para queima ou destruição.”

Mas o que tudo isso tem a ver com os filmes de terror dos zumbis? Qual a relação deles com a produção e reprodução do racismo cultural?

Bem, o cinema é uma arte bastante diversa em sua própria forma — contar uma história aqui se dá através da palavra roteirizada e também da oralidade e há a construção imagética dessa história. As possibilidades estruturais do filme, uma concentração de espaço e tempo tal como pode ser alcançada pelo filme (por exemplo, a representação, em poucos segundos e por meio de algumas fotos, da situação de um grupo amplamente disperso de povo, de uma grande cidade, de um exército, de uma guerra, de um país inteiro) nunca pode estar ao alcance da palavra falada ou escrita (AUERBACH, 2021).

Além disso, penso que o cinema tem um papel importante na luta de narrativas. Produzir um filme, materialmente falando, custa caro: câmeras, luzes, atores, cenários, até a distribuição e exibição da obra. Nesse sentido, torna-se ainda mais difícil a popularização de filmes contra-hegemônicos. Hollywood, por exemplo, faz parte da máquina de propaganda estadunidense (a exemplo: O resgate do Soldado Ryan [1998] elevou o número de alistamentos militares). A arte e, aqui, o cinema, tem o poder de produzir e reproduzir preconceitos. Ao retratar o vodu como maligno, ao reduzi-lo a falsas ilustrações de bonecos vodu e zumbis, esses filmes de terror ajudaram a moldar preconceitos na consciência cultural estadunidense e mundial.

Em 1915 foi lançado o filme apologético à KKK (Klu Klux Klan, grupo supremacista branco), “O nascimento de uma nação”, que inspirou um levante da organização, o aumento do número de membros e a queima de cruzes, coisa que não era feita antes da produção cinematográfica.

No filme, a KKK é fundada por homens brancos (maridos, pais e irmãos) para proteger as mulheres brancas de serem estupradas e assassinadas pelos homens negros nesse sul estadunidense pós abolição da escravidão. Em uma das cenas mais emblemáticas, Gus, o “negro renegado”, persegue a personagem Flora com a intenção de estuprá-la, levando-a a se jogar de um penhasco. Como pioneiro, “O nascimento de uma nação” também é indiscutivelmente o primeiro longa-metragem de terror, em que os “monstros” são os negros (MCGEE, 2014). Sem dúvidas, o filme veio a inspirar muitas das representações racistas em obras posteriores.

No que talvez seja o primeiro filme com a temática vodu, “Hoodoo Ann”, lançado um ano depois, já podemos notar certas influências: a personagem principal, Ann, é enganada por uma feiticeira negra e levada a crer que é amaldiçoada. Aqui, a narrativa é conduzida por um perigo sexual iminente — representado como o negro — que os negros — como a feiticeira — são capazes de sequestrar, controlar. A maldição de Ann é quebrada quando ela se casa, ou seja, quando ela se torna sexualmente normativa. Essa não foi a única vez que o vodu foi tratado como hipersexual ou sexualmente grotesco.

Em “Blonde Venus” (Vênus loira) (1932), Helen é uma jovem ingênua que se apresenta em boates. Seu primeiro número musical, “Hot Voodoo”, é sobre como o vodu, os tambores e as danças fazem dela uma “mulher enegrecida”. As palavras da música tecem uma analogia com o blackface, porém especificamente apontando um poder africano de imoralizar as mulheres. Esse é um dos primeiros, e talvez o primeiro exemplo mais claro, de um personagem branco “voduízado”, ou seja, transformado em imoral através da relação com vodu.

Todavia, o folclore dos “zumbis” haitianos entraram na consciência cultural estadunidense a partir da década de 1930, com o lançamento de “White zombie” (Zumbi branco) (1932). Este filme e sua sequência, “I walked with a zombie” (Eu andei com um zumbi) (1943), lançada após a última campanha católica antisuperstição, contribuíram na construção e no molde de preconceitos sobre o vodu, podendo ser interpretados como produtos da continuação doméstica das campanhas travadas contra o vodu durante e após a ocupação dos Estados Unidos (RAMSEY, 2015).

Um dos principais responsáveis pela popularização do zumbi na cultura estadunidense foi o escritor William Seabrook, especialmente em seu livro “The Magic Island” (A ilha misteriosa), publicado em 1929, no auge da ocupação da marinha estadunidense no Haiti, ilha que serviu de cenário para as histórias de Seabrook. O público estadunidense as leu avidamente, associando as descrições do Caribe exótico, com sua natureza ameaçadora e religiões escandalosas, os recursos que os estadunidenses poderiam roubar e o povo que eles supostamente deveriam “concertar”.

Embora Seabrook fosse, em tese, contra o imperialismo na ilha, seu relato não ficou imune ao racismo e ao sensacionalismo. Seabrook citava extensivamente os rituais do vodu, descrevendo cerimônias que não eram apenas sangrentas, mas também envolviam uma sexualidade poderosa, com elementos de perversão e bestialidade: os haitianos foram apresentados como um povo “enlouquecido por sangue, enlouquecido por sexo, enlouquecido por Deus” (JENKINS, 2000).

No capítulo “…homens mortos trabalhando nos canaviais”, após ouvir uma história sobre zumbis, Seabrook é conduzido para os ver com seus próprios olhos. Esse foi o primeiro contato que milhares de estadunidenses tiveram com o folclore do zumbi.

De modo geral, um “bokor” (feiticeiro) pode, através de um ritual, ressuscitar um morto, e este ficará sujeito à sua vontade. Isso é possível porque existem dois tipos de alma: o Gros Bon Ange (grande anjo bom) e o Ti Bon Ange (pequeno anjo bom). Ao primeiro são atribuídos a memória, os sentimentos e a personalidade e, ao segundo, o cérebro, o sangue, a cabeça e a consciência. É esta alma que está associada ao processo de zumbificação, podendo ser caracterizado pelo seu roubo ou por sua ausência. É importante salientar que essa explicação é uma simplificação, pois existem várias tradições.

Em 1932, “White Zombie” apareceu nas telas de cinema. O longa conta a história de uma mulher branca que é transformada em zumbi por um feiticeiro vodu. Nos primórdios desse subgênero, o vilão costumava ser o mestre dos zumbis, e não os monstros propriamente ditos.

Além disso, personagens femininas vitimizadas em uma caçada numa narrativa paternalística que a colocava como ingênua e virginal foi observada por Gary Rhodes como tendência no cinema de horror da década de 30, ao passo que o “gênero de cativeiro” (captivity genre), o mito da fronteira (com a série literária de Tarzan) e as representações apologéticas do sul escravista cresciam. Nesse sentido, “White Zombie” é emblemático porque introduz um novo monstro a Hollywood através de um amálgama de típicas narrativas estadunidenses.

Embora os filmes de pirata de grande orçamento dominassem as telas de cinema, a chegada do zumbi estimulou uma série de filmes de baixo orçamento ambientados também no Caribe, repletos de imagens das religiões nativas como cultos violentos e dos caribenhos como selvagens. Eles tiveram como base a tradição literária euro-americana do gótico aventuresco e inspiraram-se nos recém lançados “Drácula” e “Frankenstein”, ambos de 1931.

Segundo Grella (1980, p. 258), quase todos os filmes de aventura imperial da época lidavam com a religiosidade afro-latina, apresentando-a e confrontando-a com cenas em que o herói branco se vê em terras exóticas cujos perigos eram intensificados pelas práticas bizarras do seu povo. Mesmo que sutilmente, as obras do gênero usavam o mistério das religiões nativas como ambientação, estética e/ou recurso narrativo.

Aqui, o homem caribenho não é um sujeito, repleto de complexidade e contradições; ele é apenas um objeto a ser usado pelos personagens brancos, um meio através do qual eles atingem seu desenvolvimento pessoal e avançam no enredo. O próprio cenário — o Haiti misterioso, a Jamaica selvagem, a Cuba promíscua, etc — também se transforma nesse objeto de uso. E a condição dessa dinâmica é também uma condição racial. Nessa visão, essa região do mundo não possui história ou cultura dignas de menção, nenhuma independência ou identidade dignas de auto representação.

Assim, são produzidas e reproduzidas as ideias da “instabilidade natural do negro”, “a barbárie intrínseca do árabe”, “a corruptibilidade genética do judeu”, respaldadas pela alegação da superioridade cultural do mundo branco Ocidental mas firmemente estáveis na justificativa biológica de supremacia racial.

Retornando a “White Zombie”, o filme trouxe também outro elemento que mais tarde seria sensacionalístico ao extremo: o boneco vodu.

Tradicionalmente, os bonecos de vodu são criados para representar uma divindade ou espírito doméstico semelhante a nkisi (literalmente traduzido como medicina sagrada), estátuas de poder usadas na bacia do Congo, na África Central, que se acredita conter poderes espirituais ou espíritos. Os bonecos são veículos para lançar feitiços, e na maioria das vezes são usados para fins positivos. Aproximadamente 90% do uso de bonecos de vodu é focado na cura, no amor e na direção espiritual.

No Congo, é comum usarem-nos para proteção (os chamados “garde corpos” [guarda-costas]). No Haiti, eles normalmente são confeccionados com pano, e, além das funções citadas, eles podem também levar mensagens ao mundo dos espíritos.

The Devil’s Daughter (A filha do Diabo) (1939), ambientado e filmado na Jamaica, conta a história de Sylvia, uma mulher branca que vai de Nova Iorque à Jamaica para administrar uma plantação que herdou junto a sua meia-irmã, Isabelle. Isabelle quer a herança toda para si e tenta assustar a irmã com práticas vodu e obeah. No entanto, o que ela faz são farsas. Na verdade, ela droga sua inimiga e conduz cerimônias falsas, nas quais apenas os nativos acreditam. As autoridades locais viram no longa uma oportunidade de demonstrar que as religiões afro-caribenhas eram superstições primitivas. O British Board of Censors (órgão criado para impedir a exibição de filmes que pudssem “despertar sentimentos raciais indesejáveis” [British Colonial Office 1927, p.2]), então, não apenas liberou a exibição do filme como a financiou, exibindo-a para os nativos a fim de descredibilizar suas crenças.

Após a Segunda Guerra Mundial, os zumbis, o vodu e a obeah sairam do Caribe, embora continuassem a aparecer bastante em ilhas tropicais e selvas. Além disso, a figura do zumbi tornou-se cada vez mais distante do cenário haitiano original e da lógica do voodoo, tornando-se um monstro de horror criado por um malfeitor para estimular a raiva em qualquer local, particularmente nos Estados Unidos (MARTENS, 2021).

Em 1968, com seu “Night of the living dead” (Noite dos mortos-vivos), o diretor independente George Romero mudou em definitivo a história do subgênero zumbi. O longa também é emblemático por ter como herói e protagonista um homem negro.

Até então, os zumbis eram criados por feitiçaria ou bioquímica e controlados por um mestre. Na reestruturação de Romero, elementos bastante conhecidos nos dias de hoje foram introduzidos: os zumbis voltam a “vida” com uma fome incontrolável por carne humana, andam devagar e sua mordida é contagiosa.

Nos filmes contemporâneos, os zumbis podem ser usados como metáfora para praticamente qualquer coisa. É difícil apontar quando eles se tornaram clichê; no início da década de 80, eles já eram amplamente conhecidos e cada vez mais afastados da sua cultura de origem.

Outrossim, apesar do esforço dos caribenhos em seu auto representarem, ainda há muito o que fazer no que concerne às representações do vodu na grande mídia.

Pensemos, por exemplo, na problemática hipersexualização da personagem interpretada por Lisa Bonet em “Angel’s Heart” (1987), uma mulher negra constantemente tratada como objeto sexual não apenas pelo protagonista, como pelos rituais vodus dos quais participa.

No filme da Disney de 2009, “A Princesa e o Sapo”, o vilão Dr. Facilier é um tipo de cafetão vodu, semelhante ao personagem Dargent Peytraud, de “The serpente and the rainbow” (A serpente e o arco-íris) (1988). Seu primeiro nome significa literalmente “dinheiro” em francês (como em “beaucoup d’argent”, muito dinheiro), e seu sobrenome, por outro lado, é derivado do nome Petwo, o rito “mais quente” do Vodou que é frequentemente (mesmo que erroneamente) associado a um tipo de comercialização de poder espiritual e espíritos que podem ser comprados e vendidos para adquirir poderes místicos (MCGEE, 2014). Tanto ele como Dr. Facilier negociam as almas de suas vítimas. Na animação da Disney, os espíritos vodus são ilustrados como máscaras tribais africanas sinistras.

Concluindo que o colonialismo existe também na cultura, a disputa pela narrativa do mundo é a disputa do povo colonizado pela própria história. O subgênero dos filmes de zumbis isolou esse elemento de sua espiritualidade, deturpou-o, transformou-o noutra coisa e o popularizou em detrimento da cultura ao qual ele pertencia, esvaziando seu significado, seu sentido, seu símbolo.

Podemos comparar com a folclorização da espiritualidade dos povos originários na literatura brasileira, processo no qual, através de livros, filmes e outras artes os encantados e os elementos tradicionais das culturas indígenas foram reduzidos a espetáculos, a histórias distantes das lendas às quais eles pertencem e dos povos que as contam, ridicularizados, convertidos em personagens fictícios, e não partes constituintes da cultura originária.

Obras de arte são indissociáveis de seus contextos históricos e dos elementos ideológicos que as cercam. Uma obra se vincula às relações sociais de produção de sua época e se situa dentro dessas relações. Aqui, intencionalidade importa muito pouco; esses autores não necessariamente desejaram produzir obras que reproduzissem e salientassem o sistema vigente, mas eles foram determinados pela ideologia dominante da sociedade na qual estavam inseridos. A sobreposição sequente desses discursos infiltram-se na cultura popular.

A disputa pela narrativa, desde o princípio da conquista colonial até os dias atuais, é a luta constante dos povos colonizados pelo direito de redigir e fazer a própria história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Vodú em Cuba: Haití, República Dominicana, el Caribe y los USA, livro por José Millet

Pele negra, máscaras brancas, livro por Frantz Fanon

Os condenados da terra, livro por Frantz Fanon

Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos, livro por Vijay Prashad

Cultura e Imperialismo, livro por Edward Said

The Spirits and the Law: Vodou and power in the Haiti, livro por Kate Ramsey

The world that made New Orleans: from Spanish Silver to Congo Square, livro por Ned Sublette

Feuerbach e História, texto do livro A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels

Racismo e cultura, intervenção de Frantz Fanon no Primeiro Congresso dos Escritores Negros em Paris, disponível na coletânea Revolução Africana — antologia do pensamento marxista

Anti-Haitian propaganda in the interests of western imperialism? — apresentação de John Cussans na exibição Feels Like Vodou Spirit — Haitian Art, Culture, Religion, disponível em https://haitisupportgroup.org/12153/

O autor como produtor, ensaio de Walter Benjamin, disponível em https://www.insurgencia.org/blog/walter-benjamin-o-autor-como-produtor-1934

Benjamin e Brecht: cultura e lutas de classe, artigo de Lindberg Campos

The 1930s Horror Adventure Film on Location in Jamaica: ‘Jungle Gods’, ‘Voodoo Drums’ and ‘Mumbo Jumbo’ in the ‘Secret Places of Paradise Island’, artigo de Emiel Martens

Vudú: una visión integral de la espiritualidad haitiana, artigo de Iván Renato Zúñiga Carrasco

Cinema e história — as funções do cinema como agente, fonte e representação da história, artigo de José D’Assunção Barros

América latina según Whitney y Disney: el cine interamericano de la política de buena vecindad en los años 1930 y 40, artigo de András Lénárt

Circuito comunicacional: o cinema na perspectiva da História Social, artigo de Guilherme de Almeida Américo

Representaciones fílmicas del Caribe: del exotismo a la auto-representación, artigo de Roger Canals

Ghouls, Hell and and Transcendence: The Zombie in Popular Culture from “Night of the Living Dead” to “Shaun of the Dead”, dissertação de Jasie Stokes

Imagined Voodoo: terror, sex, and racism in american popular culture, dissertação de Adam Michael McGee

More Than a Misunderstood Religion: Rediscovering Vodou as a Tool of Survival and a Vehicle for Independence in Colonial Haiti, tese de Eliza M. Kamerling-Brown

The State and the Spirits: Voodoo and Religious Repression in Jim Crow New Orleans, tese de Kendra Cole

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