MATERNIDADE E CÁRCERE

A privação do exercício da maternidade como punição para mulheres infratoras

Lorena Garcia
CARPAS
8 min readMay 14, 2023

--

Fonte: Revista Interface

Em 2017, no julgamento do ADPF 347 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) a Suprema Corte Brasileira adotou — importou — a tese colombiana de Estado de Coisas Inconstitucionais para caracterizar a falha sistêmica/estrutural do sistema prisional brasileiro. Significa dizer que o sistema prisional brasileiro produz uma constante violação dos direitos fundamentais, resultante de ações e omissões dos Poderes Públicos nas diferentes esferas, associado ao quadro de superlotação e de suas condições estruturais degradantes e desumanas.

“Há relação de causa e efeito entre atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, atacados nesta ação, e o quadro de transgressão de direitos relatado. O afastamento do estado de inconstitucionalidades, conforme se pretende nesta ação, só é possível mediante mudança significativa do comportamento do Poder Público, considerados atos de natureza normativa, administrativa e judicial. (…) O quadro não é exclusivo desse ou daquele presídio. A situação mostra-se similar em todas as unidades da Federação, devendo ser reconhecida a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro” — Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio no ADPF 347.

A situação se torna ainda mais complexa quando se considera a perspectiva de gênero no sistema prisional. De acordo com o DEPEN (2020), entre as 37 mil mulheres que integram a população prisional brasileira, havia 208 grávidas, 44 puérperas e 12.821 mães de crianças de até 12 anos. Em relação às presas provisórias, havia 77 grávidas, 20 puérperas e 3.136 mães de crianças de até 12 anos. No entanto, de acordo com o último Infopen (2020), apenas 16,5% das unidades prisionais que abrigam mulheres tinham espaços reservados para gestantes e lactantes, e apenas 4,1% dos estabelecimentos possuíam berçários e/ou centros de referência materno-infantil, totalizando 50 unidades.

As Diretrizes para a Convivência Mãe/Filho no Sistema Prisional, do Conselho Nacional de Justiça, abordam a efetivação do princípio da equidade, pois são necessárias medidas diferenciadas devido às especificidades das mulheres. Além disso, a primeira regra das Regras de Bangkok afirma que as diferentes necessidades das mulheres devem ser consideradas para alcançar a igualdade de gênero material. Infelizmente, a realidade não acompanha os direitos positivados tanto no ordenamento jurídico nacional quanto internacional, como constatado pelo Conselho Nacional de Justiça:

“De uma forma figurada, pode-se dizer que as mães presas e seus/suas filhos/as são sujeitos ausentes e invisíveis dentro do sistema penitenciário, uma vez que os regramentos, as normas e manuais não dão conta, efetivamente, das suas necessidades. Infelizmente, essas medidas levam a situações degradantes, a exemplo da permanência de crianças em espaços prisionais seguindo uma mesma rotina carcerária das mulheres, além de casos em que há a perda do vínculo familiar e até do poder familiar, quando as crianças são encaminhadas para instituições de acolhimento, sem a escuta e defesa técnica das mães” –trecho da introdução das Diretrizes para a Convivência Mãe/Filho no Sistema Prisional,CNJ,2016.

Mas, quem são as mulheres no cárcere, quais seus direitos e o que enfrentam atualmente no ambiente carcerário no Brasil? O gênero feminino no cárcere vai muito além das mulheres presas propriamente ditas, e, quando se fala em maternidade, é necessário englobar as mães que geram seus filhos no sistema penitenciário ou que já adentram sendo mães. Outrossim, as mães que são mães de pessoas aprisionadas e as mães que são cônjuges/companheiras de pessoas aprisionadas.

O Habeas Corpus Coletivo, concedido pelo Ministro Ricardo Lewandowski no caso HC 143641/2018-SP, discutiu e concedeu o instituto da prisão domiciliar para mulheres que são mães ou geram crianças no sistema prisional. Esse direito é garantido principalmente pelas Regras de Bangkok e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A audiência de custódia é um dos direitos mais importantes, pois permite a determinação de uma medida cautelar alternativa à prisão, como a prisão domiciliar.

“à gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência presas preventivamente e passou a estender a ordem, de ofício, às demais as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional” — (HC 143641 — SP; relatoria do Min. Ricardo Lewandowski)

O ministro asseverou ainda que:

“nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, sendo escusado anotar que, no caso das mulheres presas, a privação de liberdade e suas nefastas consequências estão sendo estendidas às crianças que portam no ventre e àquelas que geraram.(…)são evidentes e óbvios os impactos perniciosos da prisão da mulher, e da posterior separação de seus filhos, no bem-estar físico e psíquico das crianças. (HC 143641 — SP; relatoria do Min. Ricardo Lewandowski)

É evidente que o Estado de Coisas Inconstitucional se intensifica em relação às questões de gênero, especialmente quando se trata dos impactos na maternidade e nos direitos das mulheres encarceradas. A decisão do STF ressalta a importância de garantir esses direitos.

No que diz respeito ao acompanhamento médico e psicológico, gestantes e mães presas têm o direito de recebê-lo durante todo o período pré-natal, parto e pós-parto, conforme estabelecido no artigo 8º, parágrafo 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O parto deve ocorrer em condições dignas, sem o uso de algemas e fora das dependências prisionais. Além disso, de acordo com a Lei 11.108/05, a mulher grávida pode indicar um acompanhante para o momento do parto.

É garantido também o direito ao teste de gravidez, e caso a gravidez seja resultado de violência sexual, a equipe multidisciplinar do presídio deve orientar sobre o aborto legal. Durante a amamentação, as mulheres presas têm o direito de ficar com seus filhos, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988.

Em relação à guarda da criança, inicialmente ela deverá ficar com um familiar ou alguém que tenha vínculo afetivo. Quando não há familiar disponível para cuidar dos filhos das mulheres presas, eles são encaminhados para acolhimento institucional, sendo esse arranjo temporário, com prazo máximo de 2 anos, visando o retorno da criança para a família.

É importante ressaltar o direito à convivência familiar. É determinado por lei que os familiares ou pessoas responsáveis pelos cuidados das crianças durante o período em que a mãe está presa devem fazer todos os esforços para permitir que os filhos visitem suas mães. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que é obrigação da equipe do abrigo levar as crianças para visitar as mães presas.

No entanto, a estrutura dos presídios dificulta o exercício da maternidade, tanto no momento do nascimento da criança quanto no período pós-parto, incluindo as visitas familiares. Um estudo realizado em 2018 pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ao entrevistar 36 crianças e adolescentes, constatou que nenhum deles afirmou visitar suas mães encarceradas.

“Nenhum disse que visitava a mãe. Segundo a organizadora do estudo, Ana Paula Galdeano, existe um impacto econômico muito forte na vida das famílias quando um membro é encarcerado. Quando é o marido que vai preso, a esposa insiste nessa visita. Mas, quando é ela que está atrás das grades, e o marido a abandona, o restante da família não consegue arcar com esse custo”

O contexto da prisão em si dificulta o exercício da maternidade, como mencionado na pesquisa. As prisões não são percebidas pelas famílias como ambientes adequados para crianças, e o processo de revista para entrar nos presídios é considerado vexatório. Essas dificuldades adicionais enfrentadas pelas mulheres encarceradas limitam o pleno exercício da maternidade e de outros direitos garantidos por lei. Apesar dos direitos positivados, a realidade prisional apresenta obstáculos significativos.

AS MÃES DE PESSOAS ENCARCERADAS

Além das mulheres que estão cumprindo pena, as mães de pessoas encarceradas também enfrentam desafios significativos. Elas são prisioneiras das rotinas de visitas aos presídios, sofrem com o preconceito e carregam a culpa associada ao estigma que recai sobre elas. Essas mães enfrentam dificuldades emocionais, psicológicas e sociais decorrentes da situação de ter um filho preso, o que pode afetar profundamente suas vidas. A reportagem

“Domingo é dia de visita”, da Universa — UOL, provavelmente aborda essas questões, destacando a realidade enfrentada pelas mães de pessoas encarceradas.

“Além da tristeza e preocupação constantes, elas perdem a liberdade ao viver uma rotina que inclui conversas com advogados, gastos com mantimentos para os filhos, longas jornadas para vê-los e humilhações durante a revista. É uma punição constante, como se elas fossem criminosas”- Domingo é dia de visita, Universa-UOL

Nesse sentido, em entrevista concedida à UOL, a mãe de um apenado afirma que:

“Somos reféns de uma sociedade que nos olha da mesma forma como enxerga um criminoso. O fato de nossos filhos estarem presos não significa que não prestamos […]. Hoje é o meu [filho], amanhã pode ser o seu, o do seu amigo, de alguém conhecido. Isso não torna você, seu amigo ou seu conhecido alguém que não preste” — Domingo é dia de visita, Universa-UOL

As mães de pessoas encarceradas enfrentam estigma e julgamento em relação à criação de seus filhos, tanto dentro como fora do ambiente de trabalho. Esse estigma pode resultar em pressões sociais e familiares, afetando negativamente a vida dessas mães. Elas sofrem com o preconceito, não apenas por parte da sociedade, mas também dentro do sistema prisional, onde podem enfrentar tratamento discriminatório por parte dos agentes penitenciários.

Como resultado, essas mulheres são condenadas junto com seus filhos, mesmo que não tenham cometido o crime em si. Esse contexto de estigmatização e culpa muitas vezes motiva as visitas semanais que essas mães fazem aos filhos encarcerados, buscando estar presentes e apoiá-los durante esse período difícil.

“o julgamento informal de amigos, familiares e conhecidos, são consideradas cúmplices dos atos criminosos, estivessem ou não cientes daquilo que acontecia fora de suas casas. E reclamam de essa crença manifestar-se explicitamente na forma como são tratadas pelos agentes penitenciários nos dias de visita, cheios de momentos de mal-estar. Nessas situações, quando enfrentam horas de fila para entregar kits de higiene e comida aos filhos, dizem ser tratadas como bandidas. “Eles procuram nos humilhar de tudo o que é jeito, provocando, constrangendo-UOL”

São mulheres que, em sua maioria, enfrentam o abandono por parte dos maridos e das famílias devido ao preconceito, além de lidar com os desafios do sistema prisional semanalmente. Elas enfrentam revistas vexatórias, falta de espaços adequados para visitas e também enfrentam dificuldades econômicas para chegar aos presídios, que muitas vezes estão distantes e exigem gastos com transporte.

Tanto as mulheres encarceradas como aquelas que visitam os encarcerad/os possuem particularidades que devem ser consideradas para garantir a efetividade de seus direitos nesses espaços. Independentemente do papel que desempenham, essas mulheres são mães e mulheres em situação de privação de liberdade.

REFERÊNCIAS

Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) Mulheres, disponível em: infopenmulheres_arte_07–03–18–1.pdf (conectas.org)

O Sistema Penitenciário Brasileiro fora da Constituição, relatório disponível em: Relatório_ECI_1406.pdf (cnj.jus.br)

Monitoramento da Resolução nº 369/21, disponível em: Monitoramento Res. 369/2021 (cnj.jus.br)

Nascer nas prisões, disponível em: Nascer nas Prisões — Nascer no Brasil (fiocruz.br)

--

--

Lorena Garcia
CARPAS
Writer for

Bacharela em Direito. Pesquisadora. Redatora Carpas.