Mulheres curdas na luta pela liberdade e soberania do seu povo

No início da Semana da Solidariedade com Territórios Não-Autônomos, a Carpas traz um pouco sobre o povo curdo e a luta das mulheres curdas em busca de sua soberania e liberdade.

Penélope Cravo
CARPAS
6 min readJun 1, 2023

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Um povo sem lar

Atualmente, os curdos são o maior povo apátrida do mundo. Aproximadamente trinta milhões de pessoas compõe esse povo que há cerca de dois séculos luta por sua soberania e reconhecimento étnico. Sua história é marcada por resistência, por luta e por ter uma grande frente de mulheres que dentro de movimentos e partidos, colocam as questões de gênero e direitos das mulheres como parte fundamental para a luta por um Estado.

Um povo de muitas religiões e línguas, os curdos vivem em regiões de vários países como Armênia, Irã, Turquia, Síria e Iraque e frequentemente são vistos como uma “etnia persa”, “árabes das montanhas” ou, ainda, “turcos das montanhas”; por enquanto apenas o Irã e o Iraque reconhecem suas populações curdas.

Ao longo da história, os curdos tiveram e ainda têm conflitos muitas vezes violentos contra as forças armadas de países como Turquia e Iraque. Além da hostilidade de seus vizinhos, por vezes em sua história os curdos tiveram que lidar com o interesse e exploração de potências estrangeiras: A região possui um solo fértil e é rica em água. Mesmo assim, os curdos são conhecidos por resistir a estes tipos de interferência.

Mapa da região habitada por curdos. Disponível em: https://novaescola.org.br/

No momento atual no Iraque, os curdos estão em uma região relativamente estável chamada de “Curdistão”, com um governo democrático semiautônomo. A criação de um Estado para o curdos foi considerada no início do século XX, mas com a criação do Estado moderno da Turquia em 1923, sua situação passou a ser negligenciada. Desde então, em cada região que ocupam tiveram conflitos, guerras e surgimento de partidos e milícias que buscam afirmar a sua posição geográfica e étnica e, se possível, um Estado próprio.

Apesar disso, os curdos são considerados um dos principais opositores do Estado Islâmico, mostrando sua força nos conflitos que os rodeiam. E esse título não é por acaso: em sua busca por um país fundamentalista, o EI procurou algumas regiões do Curdistão Sírio, que o colocou em combate direto com os curdos, que organizaram uma potente força que foi fundamental para impedir os seus avanços e recuperar territórios.

A história das mulheres curdas é um símbolo da força do Curdistão

Mulheres curdas. Disponível em: https://thekurdishproject.org/history-and-culture/kurdish-women/

“O papel geopolítico desempenhado pela etnia no Oriente Médio é fundamental atualmente, uma vez que os curdos são um dos maiores opositores ao Estado Islâmico na Síria e no Iraque.”

Na Síria, as mulheres da brigada feminina Unidade de Proteção das Mulheres (YPJ) foram reconhecidas por sua bravura e luta no campo de batalha que, de acordo com o Al Jazeera, derrubaram cerca de 100 combatentes do Estado Islâmico. Além disso, cerca de 40% da resistência contra o EI é composta por mulheres na região de Kobani, cidade que faz parte de Rojava. De fato, a internacionalista Maria Florencia Guarche Ribeiro diz que, o que as mulheres curdas fazem em Rojava, o Curdistão sírio, pode ser considerado como a primeira revolução na história cuja estrutura é feminista.

Da mesma forma, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que começou a ser articulado na década de 60 e foi fundado oficialmente em 1978, ficou conhecido por sua articulação com comunidades e tribos locais. Além disso, contou com apoio popular e um profundo trabalho de base quanto à participação de mulheres. Boa parte disso se deu graças à uma de suas personalidades mais proeminentes, Sakine Cansiz, co-fundadora do PKK que foi assassinada em Paris no ano de 2013.

Em sua biografia, Cansiz colocou que no congresso de fundação do Partido, apenas ela e outra mulher estavam presentes. Essa sub-representação era resultado do sexismo que as excluía do espaço político. Ela reparou também no desinteresse dos homens em trazer mulheres para o Partido. Por isso, tomou para si a missão de articular mulheres em sindicatos e fábricas, “fomentando a formação política e o debate ideológico” (Ribeiro 2019 apud Cansiz 2017).

“Sakine Cansiz é considerada a melhor representante da “ética e da estética” militante. A sua capacidade de questionar os estereótipos de gênero e despatriarcalizar a sua vida reflete-se em seu trabalho diário, quando incentiva outras mulheres a questionarem os seus papéis sociais (CANSIZ, 2017).”

Presa e torturada algumas vezes, “ Sakine Cansiz é considerada a melhor representante da ‘ética e da estética’ militante. A sua capacidade de questionar os estereótipos de gênero e despatriarcalizar a sua vida reflete-se em seu trabalho diário, quando incentiva outras mulheres a questionarem os seus papéis sociais” (Ribeiro 2019 apud Cansiz 2017).

Mulheres do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Disponível em: https://medyanews.net/the-pkk-is-not-like-a-man-but-like-a-woman-women-in-north-east-syria-on-fighting-for-freedom/

Outras mulheres curdas buscam resistir às opressões, violência, torturas e prisões através de redes de solidariedade e organização nos partidos curdos. Em documentários e notícias como “Our Allies” (Nossos Aliados) Ep. 1: As Mulheres Curdas — Field of Vision” do The Intercept Brasil e “Conheça as YPJ, as mulheres que combatem o grupo Estado Islâmico” do EuroNews em Português é possível ver como destacam sua própria independência, foco nas suas batalhas e inspiram outras jovens e mulheres ao seu redor a lutar também.

Soldada do YPJ. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/840765824169761398/

“A participação das mulheres na guerrilha e nas estruturas orgânicas do partido repercute de diversas formas na sociedade. Ao questionar os estereótipos de gênero e enfrentar as estruturas do patriarcado, a sua mobilização adquire prestígio junto às comunidades locais. Em decorrência, fortalecem-se a solidariedade e os laços de confiança entre elas. E isso é o contraponto à estrutura social tribal-feudal que as submete à autoridade patriarcal.” (Ribeiro 2019).

Para a comunidade, estas mulheres são parte de uma simbologia maior da libertação de todo o Curdistão e resistência ao Estado Islâmico.

Ao mesmo tempo, quando se tornam soldadas e renunciam a vida com a família — muitas vezes forçadas devido às circunstâncias da guerra — percebem que não têm nada a perder. Dessa forma, rompem com os papéis de gênero que lhes é imposto. Assim, enquanto soldadas encontram espaço para reivindicar uma transformação em todos os aspectos de sua vida. A liberação do seu povo provém também da sua liberação enquanto mulheres que, com a guerrilha, questionam o seu papel dentro do sistema patriarcal.

REFERÊNCIAS:

A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO DE MULHERES NO NOROESTE DO CURDISTÃO: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONFEDERALISMO DEMOCRÁTICO E DA JINEOLOGÎ (1978–2018) https://lume.ufrgs.br/handle/10183/193052

Curdos: o maior povo apátrida do mundo https://www.politize.com.br/curdos/

‘The PKK is not like a man, but like a woman’: Women in North East Syria on fighting for freedom https://medyanews.net/the-pkk-is-not-like-a-man-but-like-a-woman-women-in-north-east-syria-on-fighting-for-freedom/

Curdistão: Garotas em guerra (Kurdistan Girls at War) (ARTE tv) https://www.youtube.com/watch?v=SMwFY3SoBUY&list=PLHdRvP1Bp8nqgVwIdZZka1qEFSaOJt_vt&index=6

Conheça as YPJ, as mulheres que combatem o grupo Estado Islâmico https://www.youtube.com/watch?v=BU3HDANUBWs&list=PLHdRvP1Bp8nqgVwIdZZka1qEFSaOJt_vt&index=5

“Our Allies” (Nossos Aliados) Ep. 1: As Mulheres Curdas — Field of Vision https://www.youtube.com/watch?v=YlXVvoYSjvI&list=PLHdRvP1Bp8nqgVwIdZZka1qEFSaOJt_vt&index=1

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Penélope Cravo
CARPAS
Writer for

Ciências Sociais (UNIFESP). Tópicos de pesquisa giram em torno de: Gênero; Oriente Médio; Sociologia da Arte.