“Mulheres de conforto’’ e a escravidão sexual durante a II Guerra Mundial.

Julianny Araújo
CARPAS
Published in
5 min readAug 19, 2020
‘’The House of Sharing’’, em Seul, Coreia do Sul, é tanto uma casa de repouso quando um memorial para as ‘’mulheres de conforto’’.

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, entre 80 e 200 mil mulheres foram mobilizadas pelo Exército Imperial Japonês para servir sexualmente seus soldados. A maioria das vítimas, conhecidas eufemisticamente como “mulheres de conforto”, eram levadas para o que eram chamadas “estações de conforto’’ ao longo do Pacífico e submetidas a estupro e violência contínuas. A situação das mulheres de conforto não era uma grande preocupação para os poderes lutando na Segunda Guerra Mundial. Nem se mostrou do interesse de seus historiadores mesmo atualmente.

Para uma breve contextualização histórica sobre as tais “estações de conforto”: entre 1932 e 1945, o Japão envolveu-se em uma guerra imperial com os Estados Unidos e diversos países asiáticos, geralmente mencionada como Guerra do Pacífico. À medida que sua presença militar se expandiu na Ásia, o governo japonês incitou um grande número de mulheres para bordéis militares a fim de satisfazer as necessidades sexuais dos seus soldados e, assim, instituiu as “estações de conforto” onde quer que suas tropas estivessem estacionadas.

O número exato de mulheres levadas para esses bordéis é atualmente desconhecido, dado que o governo japonês queimou importantes escrituras históricas; porém, tendo por base alguns documentos que indicam a proporção de soldados japoneses às “mulheres de conforto”, os historiadores estimam que esse número varia entre 80 mil a 200 mil mulheres, sendo que menos de 30% destas sobreviveram. A mobilização incluiu principalmente moças da Coreia colonial, e, em menor escala, mulheres japonesas e de outros territórios ocupados, tais como Filipinas, Taiwan, Cingapura, Indonésia, Birmânia, Tailândia e Vietnã.

Desse modo, pode-se sinalizar que a questão das “mulheres de conforto” não só se trata de problemáticas referentes à “prostituição militarizada”, mas também de escravidão sexual baseada em gênero, classe, etnia e Estado, visto que o trabalho sexual forçado foi infligido principalmente sobre as jovens mulheres das classes baixas da Coreia colonial pelo Japão imperial. Estima-se que, das 80 mil a 200 mil mulheres que foram forçadas a servir como escravas sexuais, 80% delas eram de origem coreana, uma vez que a Coreia estava sob o domínio colonial do Japão entre 1910 e 1945.

Vale observar que sim, naquela época, o exército japonês tinha à sua disposição “mulheres de conforto” japonesas (karayuki-san), mas estas eram principalmente ex-prostitutas pagas pelo seu serviço e, dado seus antecedentes, eram mais velhas e mais “bem preparadas’’ para o serviço nos bordéis militares. Com o objetivo de combater a propagação de doenças e prevenir crimes sexuais por soldados contra as mulheres dos territórios ocupados, a liderança militar sugeriu que o governo recrutasse jovens mulheres solteiras das colônias (presumidas virgens e, portanto, livres de doenças sexualmente transmissíveis) como “mulheres de conforto” para o exército japonês, muitas delas ainda estudantes de ensino médio. As geishas japonesas, prostitutas legalizadas e voluntárias, serviam como uma espécie de instrutoras para as pobres garotas forçadas a realizar trabalho sexual.

Essas mulheres eram tidas através do sequestro, de falsas promessas de emprego ou mesmo através da coerção — mais eficazes contra as mulheres coreanas do que contra outras asiáticas, dada a situação colonial da Coreia perante o Japão — . Promessas de emprego trabalharam com efeito porque a política econômica colonial japonesa havia devastado a agricultura coreana, de forma que muitas jovens de famílias pobres estavam dispostas a sair de casa para trabalhos em um país estrangeiro. Portanto, para melhor compreender o alvo marcado nas jovens coreanas como “mulheres de conforto”, é necessária também uma análise minuciosa da intersecção entre o poder colonial, o gênero e a classe na Coreia durante o período de ocupação japonesa.

Levadas aos bordéis militares, as jovens eram e forçadas a ter relações sexuais com soldados japoneses 10, 30, 50, 60 vezes por dia em alojamentos degradantes. Além disso, eram submetidas a tratamentos extremamente brutais que envolviam tortura, espancamento, queimaduras de cigarro, ou mesmo esfaqueamento. Caso tentassem fugir das estações, elas eram perseguidas sob a ameaça de tiros. Algumas mulheres morreram de doenças venéreas, enquanto outras se suicidaram e diversas foram assassinadas. Madame X, naquela época uma jovem chinesa que vivia na Malásia britânica, descreveu no livro “The Comfort Women: Japan’s brutal regime of enforced prostitution in the Second World War” como era a vida em uma das estações de conforto:

Lá eu tinha um quarto grande com cama de casal. Tinha duas refeições simples por dia e uma faxineira que trocava os lençóis diariamente. Fui forçada a fazer sexo com dez a vinte homens por dia. Como resultado, eu ficava continuamente machucada. Em carne viva. O sexo era insuportável. Oh, você não tem ideia de como foi doloroso! Vocês não conseguiriam imaginar! Mas eu tinha que ser gentil e servir bem a cada soldado. Se eu não tivesse um bom desempenho, era espancada. Alguns dos homens estavam bêbados e me batiam de qualquer maneira. Um homem, embora bêbado, ficou dentro de mim durante todo o ato. Era insuportável — mas eu tinha que suportar.

Muitas das garotas eventualmente engravidavam, o que levava os japoneses a injetar drogas abortivas nas meninas e/ou as submeter a cirurgias mortais. Os preservativos eram escassos, e ficava por conta das mulheres a humilhante tarefa de lavar e cuidar dos poucos restantes para posterior reutilização.

O fim da Segunda Guerra não significou a liberdade dessas mulheres. As poucas que sobreviveram voltaram para casa ou tentaram começar novas vidas em outros locais, mas a experiência terrível de viver nas estações de conforto foi substituída pelo infindável trauma físico e psicológico de ter sobrevivido a elas. Ao invés de receber simpatia e apoio, as visões das sociedades asiáticas de castidade e moralidade oprimiram ainda mais as sobreviventes. Do ponto de vista patriarcal, foi visto quase como uma gentileza para as mulheres de conforto fingirem que esta brutalização sistemática nunca havia ocorrido.

A saga das mulheres de conforto não é apenas sobre uma atrocidade de guerra que permaneceu impune. As questões envolvidas em como o perpetradores do sistema de conforto quase escaparam com seus crimes destaca como a exploração de mulheres — e crianças — para lucrar com o serviço sexual, o qual continua até hoje e é perpetuado na cultura de prostituição e tolerância ao estupro não só dentro do Japão mas também como no restante do mundo.

A história do sistema de mulheres de conforto é oportuna porque reverbera lições sobre a prostituição patrocinada pelo Estado hoje. Em um contexto não-militar, os governos são tão persuasivos na promoção da prostituição quanto em um contexto militar. Os países que legalizaram ou descriminalizaram os sistemas de prostituição tornaram-se nações prostituidoras nas quais as mulheres são incentivadas a prostituir-se porque é legal. Mais homens recebem permissão legal para comprar mulheres, porque a prostituição é rebatizada como “serviço sexual” e os cafetões são transformados em agentes comerciais legítimos. Os regimes de prostituição patrocinados pelo Estado tecem o pano robusto da exploração sexual na paz como na guerra.

(Trecho retirado da tradução de Feminismo Com Classe para o Texto de Janice Raymond, publicado no site da Coalition Against the Trafficking on Women (CATW) em 2015.)

REFERÊNCIAS

HICKS, George. (1997), “The Comfort Women: Japan’s brutal regime of enforced prostitution in the Second World War”. New York: W.W. Norton & Co.

NORMA, Caroline. (2016), ‘’The Japanese Comfort Women and Sexual Slavery during the China and Pacific Wars’’. Bloomsbury Academic.

OKAMOTO, Julia Yuri, As “Mulheres de Conforto’’ da Guerra do Pacífico. v. 1 n. 1 (2013). Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ricri/article/view/17698

SUE, R. Lee, Comforting the Comfort Women: Who Can Make Japan Pay, 24 U. Pa. J. Int’l L. 509 (2003).
Disnponível em: https://scholarship.law.upenn.edu/jil/vol24/iss2/4

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