O impacto da crise no Sudão nos Direitos Humanos das Mulheres Sudanesas: uma breve análise histórica

Beatriz Firmino
CARPAS
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5 min readMar 21, 2020

“Ela estava tentando dar a todos esperança e energia positiva, e ela conseguiu isso. Ela estava representando todas as mulheres e meninas sudanesas. Inspirou todas as mulheres e garotas no protesto.” Lana Haroun

Presente desde a Revolução Industrial, o Imperialismo Moderno contribuiu negativamente para a história da África. Com o avanço da tecnologia na Segunda Revolução Industrial, o aumento da produção demandou uma maior quantidade de consumidores dos produtos que eram fabricados e também a disputa por matérias primas entre as potências. Além disso, nesse processo cresce o imperialismo: uma política de expansão e domínio comum no século XIX a fim de baratear a mão de obra — de forma escrava — e dominar territorial e economicamente os povos com riquezas naturais. Um exemplo dessa subjugação pode ser melhor compreendido na Conferência de Berlim presidida pelo chanceler alemão Otto von Bismarck, cujo objetivo era partilhar o continente africano entre as potências europeias sem o consentimento dos explorados, acontecimento que mostra como funcionava essa política. Como consequência disso temos, hoje, um continente fragmentado cultural e socialmente.

Embora o interesse europeu na mão de obra escrava e nas matérias primas não fosse recente, no século XIX a exploração também se intensificou por meio de outro processo: a colonização, marcada pelo controle do regime político e econômico e pela subjugação dos nativos que estavam, então, em uma posição de inferioridade. No Sudão, ambos os processos estavam muito presentes por ele ser um país com forte localização geoestratégica tanto pela questão da riqueza natural (ouro e marfim, principalmente) quanto da sua proximidade com o Rio Nilo (responsável pela água de todo o norte africano). Como uma das consequências mais fortes do colonialismo vê-se o conflito religioso, que se deu principalmente pela dominação britânica e a sua política separatista dividindo o Sudão em norte, de maioria muçulmana, e sul, com os cristãos e os animistas.

Outro acontecimento importante para entender o contexto histórico desse continente é a Guerra Fria, que foi iniciada após a Segunda Guerra Mundial e marcada pelo conflito ideológico dos Estados Unidos (capitalismo) e a União Soviética (socialismo). A Europa, mesmo após ter saído vitoriosa na segunda guerra, estava muito enfraquecida economicamente, o que levou a diminuição da sua participação nas colônias. Essa brecha somada à pressão externa dos EUA e URSS levaram a ruptura das colônias e a resistência dos povos colonizados. O interesse das duas superpotências na descolonização da África era diferente: a potência capitalista defendia a autodeterminação dos povos e a defesa de um autogoverno, enquanto a socialista difundiu os ideais comunistas por meio do apoio aos movimentos de libertação e oposição ao imperialismo e capitalismo.

No Sudão, contudo, mesmo depois de tornar-se independente em 1956, nota-se o reflexo dessas políticas exploratórias nos conflitos religiosos que se estendem até os dias atuais. A história do país é marcada por governos autoritários de muçulmanos do Norte como Muhammad Ahmed (1881), o califa Abdullahi (1898) e Gaafar al-Nimeiry (1969). O conflito analisado nesse estudo de caso começa em 1989, quando por um golpe militar no Sudão ascende o ditador árabe Omar al-Bashir e dá início ao Conflito de Darfur.

“Darfur é desde fevereiro de 2003 o palco de um conflito violento entre as milícias árabes Janjaweed, apoiadas pelo Governo de Cartum, e os movimentos rebeldes do Exército de Libertação do Sudão e do Movimento para a Justiça e Igualdade, que lutam por uma maior participação da região nas estruturas centrais do poder político e econômico.”

É a partir desse conflito que emerge a figura de uma “anarquia africana” marcada pelo domínio dos radicais islãs sob a população negra da região sul do país, desde a arabização do sistema educacional e do político até o desrespeito às etnias e a multiculturalidade que resultaram na perda da identidade sudanesa. Após 21 anos de guerra entre as duas regiões, um acordo de paz foi selado entre o Sudão e os rebeldes do sul. Esse acordo foi chamado de Tratado de Naivasha e assinado em 2005 pelo vice-presidente Ali Osman Taha e John Garang, líder do Exército Popular de Libertação do Sudão.

“Esse regime faz uso de muita intimidação e opressão, especialmente contra as mulheres. As mulheres sofreram muito. Eles olham para como você se veste e podem te chicotear. É por isso que devemos estar muito interessadas em derrubar esse regime.” — Nemat Malik

A sistemática repressão governamental às mulheres se tornou perceptível quando, segundo divulgado pela ONU, mulheres sudanesas eram estupradas como forma de pagamento aos grupos aliados. Leis estabelecidas como imposição do Islamismo restringiam os direitos básicos das mulheres: não podiam trabalhar, estudar, mostrar os cabelos em público e frequentar ambientes sem a companhia do marido. Caso contrário, seriam punidas com chibatadas.

“[As leis] São um instrumento de exploração, humilhação, violação e agressão aos direitos dos cidadãos.” — Abdalla Hamdok

Pré-estabelecido no tratado um referendo para aprovar ou não a separação do país, o Sudão do Sul se tornou independente em relação ao Sudão em 2011 com 98,83% dos votos aprovados. Essa tentativa de paz, contudo, falhou mais uma vez e o descontentamento da população com a alta inflação e crise econômica foi o estopim para o início das manifestações no Sudão em 2019. A partir daí, surgira um símbolo de resistência: Alaa Salah. Representando a força das mulheres nas manifestações contra o Governo e motivadas pela esperança de acabar com a ditadura, as sudanesas foram para as ruas (estima-se que 70% dos manifestantes eram mulheres) lutar pelos seus direitos. Em meio aos protestos, as Forças Armadas do Sudão retiraram o presidente Omar al-Bashir, dissolvendo o gabinete e a legislatura nacional e assumindo o poder.

Embora a crise atual no país seja uma das maiores enfrentadas no mundo, a situação do Sudão do Sul não é colocada como uma questão central para as relações internacionais, pois o campo internacional é motivado pelo poder e isso pode ser percebido no não posicionamento direto dos atores em relação a crise humanitária sudanesa. Essa postura, sobretudo, parte de uma ótica ocidental herdada da Guerra Fria que ignora a importância da segurança comum dos Estados independente da política. Como reflexo, vê-se a estabilidade da liderança política a nível global afetada principalmente porque esse descaso vai de encontro aos princípios presentes nas Nações Unidas: os direitos humanos, a democracia, o direito à liberdade e a paz.

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Beatriz Firmino
CARPAS
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Latino-americana, socialista e estudante de Relações Internacionais. beatrizfirmino.contato@gmail.com