Os desafios da luta antimanicomial no Brasil
entenda a história, as reinvindicações e o debate na contemporaneidade
Escrito por Giulia Cristiano e Pâmela Lins
Nesta quinta-feira (18), celebramos os 36 anos do movimento que deu origem a Reforma Psiquiátrica no Brasil, reconhecido como o Dia da Luta Antimanicomial. A data evoca os eventos ocorridos em 1987 e que foram fundamentais para estruturar o que seria chamado de Movimento Antimanicomial: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM), realizados em Bauru, no interior paulista. O segundo contou com a presença de diversas associações de usuários e familiares, como a “Loucos pela Vida” de São Paulo e a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA) do Rio de Janeiro. No Congresso, também foi redigido o Manifesto de Bauru, até hoje considerado o marco inicial de uma mobilização que, anos depois, culminaria na aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216, em 2001.
Pesquisadores apontam que as primeiras manifestações do Movimento Antimanicomial se deram durante a abertura do regime militar, especialmente a partir de 1976 com a criação de espaços de discussão e produção do pensamento crítico na área, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e do movimento de Renovação Médica (REME). Entre 1978 e 1987, vários eventos foram realizados com o objetivo de fortalecer o MTSM e em prol do debate sobre a transformação do sistema de saúde. O movimento era composto por trabalhadores de diversos setores e estava conectado com os demais movimentos nascidos no mesmo período.
A realização do II Congresso do MTSM foi um marco. A participação de novas associações gerou um movimento cada vez mais amplo, todas reunidas em torno da luta pela transformação das políticas e práticas psiquiátricas. Esse processo culminou em uma transformação do MTSM, passando a se observar cada vez mais um afastamento do movimento em relação ao Estado e uma aproximação com os usuários dos aparelhos psiquiátricos e seus familiares. É nesse momento em que se cria um lema que centraliza todas as demandas desses grupos: por uma sociedade sem manicômios.
Em conjunto com essas novas entidades foi elaborado o Manifesto de Bauru, uma espécie de documento fundador do movimento antimanicomial. O escrito reiterou a aproximação dos trabalhadores do campo com a sociedade para o combate às práticas excludentes e violentas contra os chamados loucos. Com esse manifesto, surge então a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial.
Dentre as principais reivindicações do movimento, estavam: o aumento salarial, críticas à manicomialização e ao uso do eletrochoque, redução do número excessivo de consultas por turno de trabalho, melhores condições de assistência à população e humanização dos serviços. Este processo resultou em uma greve em 1978, que durou oito meses e obteve grande repercussão na imprensa. Já durante o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro de 1978, percebe-se que os debates foram ampliados para além do campo da saúde, estendendo-se às discussões sobre o cenário político nacional.
Entre 1987 e 1993, diversas articulações foram realizadas e núcleos foram se construindo dentro do movimento, até por fim, ser fundado em 1993, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA).
É apenas em 2001, com a aprovação da Lei Federal de Saúde Mental, n° 10.216, proveniente do Projeto de Lei Paulo Delgado, que se regulamenta de fato a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O PL reitera a proteção dos portadores de doenças mentais e reestrutura o modelo de assistência psiquiátrica no país, promovendo o tratamento em serviços de base comunitária, ainda que sem necessariamente propor ferramentas claras para a extinção dos manicômios.
Violações e exclusão nos manicômios brasileiros
A Reforma Psiquiátrica foi um importante passo na luta contra a manicomialização da loucura e exclusão do louco no Brasil. Isso porque eram constantes as violações humanas promovidas dentro dos manicômios pelo país, muitas vezes respaldadas pela psiquiatria organicista no período.
O primeiro hospital psiquiátrico brasileiro foi inaugurado em 1852 e recebeu o nome de Hospício D. Pedro II. Até então, os chamados “loucos” não se beneficiavam de qualquer tipo de assistência médica específica, sendo muitas vezes encaminhados para prisões ou para os hospitais gerais da Santa Casa de Misericórdia. No Brasil, as práticas manicomiais foram influenciadas pela teoria da degenerescência, de Benedict-Augustin Morel, a qual interpretava a degeneração como uma patologia hereditária e contagiosa, podendo se manifestar na loucura, e portanto, tornou-se uma justificativa para a exclusão e isolamento dos considerados imorais e loucos. Outro pilar da política psiquiátrica foi o organicismo, pensamento que atribui um fator físico-biológico às doenças mentais, e que aliado ao alienismo, foi responsável pelo enclausuramento de milhares de pacientes em aparelhos psiquiátricos no Brasil.
Ainda a partir da década de 1920, a psiquiatria brasileira hegemônica adotou a higiene mental enquanto perspectiva teórica e prática, que encontrou na década seguinte um forte apoio conceitual na eugenia. A adoção de tais perspectivas resultou na aplicação de diversas terapias biológicas em internos, tais como como a piretoterapia, convulsoterapia, comas glicêmicos e psicocirurgias. A utilização dessas práticas foi essencial para a consolidação da Psiquiatria enquanto uma área da medicina respeitável e moderna. Uma vez que aqueles que compunham esse setor buscavam adotar um discurso cada vez mais científico, a eugenia e higienismo foram basilares para auxiliar conceitualmente suas produções teóricas e práticas médicas dentro dos manicômios.
Apesar dos ares de cientificidade, o que se observou foi a ampliação das problemáticas que assolavam os hospitais psiquiátricos brasileiros desde suas primeiras décadas de funcionamento: lotação desses complexos manicomiais, cortes orçamentários que afetavam diretamente suas estruturas e precarização dos trabalhadores da área de saúde mental, condições essas que potencializam a desumanização dos internos, cenário alterado somente a partir da luta antimanicomial.
Os retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental diante dos governos de extrema direita de Temer e Bolsonaro
Com o golpe empresarial-jurídico-parlamentar instituído em 2016, através do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, houve a ascensão de uma política econômica ultraneoliberal devido ao seu alinhamento com a política de ajuste fiscal orientada pelo Consenso de Washington de 1989 [1], em níveis jamais vistos no Brasil, que defende uma série de medidas neoliberais para os países periféricos.
Além disso, contextualiza-se também nesta época o avanço do autoritarismo e do conservadorismo na atuação governamental, “que tem feito uso da violência para impor à população suas amargas políticas” (Silva; Silva, 2020, p. 107). Estes processos terão impactos na Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), como será discutido no decorrer do artigo.
Segundo Cruz, Gonçalves e Delgado (2020), desde 2016, vê-se um processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela Reforma Psiquiátrica. No governo de Temer, identificam-se alterações na PNSM por meio de medidas como a resolução n° 32/2017, trazendo pela primeira vez, desde a implementação da Reforma Psiquiátrica, o hospital psiquiátrico como parte integrante do cuidado na rede. Diante disso, a resolução viabiliza:
A manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, ao passo que veta fechamentos e expande valores pagos para a internação nessas instituições de R$49 para R$80; estimula a criação de novas vagas em hospitais gerais; e propõe a ampliação das comunidades terapêuticas ligadas ao setor privado, de caráter religioso, para atender dependentes químicos por meio de um investimento bastante significativo, no valor que poderia chegar a R$240 milhões por ano, contra quase R$32 milhões destinados por ano aos demais dispositivos que compõem a rede de atenção (Silva; Silva, 2020, p.108).
Além dela, tem-se a criação da Portaria n° 3.588/2017, que propõe o aumento do valor da diária de internação nos hospitais psiquiátricos e amplia o número de leitos nessas instituições de 15% para 20%. Quanto aos hospitais gerais, a Portaria determina uma taxa de ocupação de 80% dos leitos de saúde mental, como condição para receber a verba de custeio do serviço. Tais medidas estimulam práticas de internação e segregação desses usuários, aspecto fortemente criticado pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, que defende a liberdade, a autonomia e a socialização desses indivíduos, com o cuidado integrado em saúde, tendo a internação como último recurso.
[…] o que está principalmente em questão é o retorno da ênfase dada a modalidades assistenciais conhecidas pela sua ineficácia nos processos de reabilitação psicossocial, reinserção social, singularização e autonomização de pessoas acometidas de transtornos mentais e de usuários de álcool e outras drogas, portanto, manicomializadoras (Batalha; Dominguez, 2018, p. 24).
Ademais, estas medidas têm afetado o financiamento da PNSM, pois estimula a ampliação dos recursos para os hospitais psiquiátricos em vez de se fortalecer e ampliar a Rede de Atenção Psicossocial, que encontra-se precarizada e enfrenta limitações para sua consolidação.
A desocupação dos leitos em hospitais psiquiátricos e a desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação é uma das principais bandeiras defendidas pelo Movimento da Reforma Sanitária e uma de suas principais conquistas, que, apesar dos avanços, têm encontrado diversos entraves para sua efetivação, principalmente no que tange seu financiamento e a construção da estrutura necessária com a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Embora tenha ocorrido o fechamento de mais de 60 mil leitos no Brasil por meio da Reforma Psiquiátrica, não houve uma abertura efetiva de um campo substitutivo com outras possibilidades de cuidado, dado a insuficiência de recursos e investimentos que poderiam ampliar os serviços de atenção psicossocial (Silva; Silva, 2020, p. 111).
Outra medida foi a publicação da Portaria 1.482 em outubro de 2016, incluindo as comunidades terapêuticas, que possuem um caráter religioso, punitivista e de exclusão social, no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), tornando possível o repasse de verbas públicas para estas instituições. Em 2018, houve a publicação de um edital que sistematiza o financiamento dessas instituições, permitindo a permanência de usuários no período de 12 meses. Segundo dados apresentados por Cruz; Gonçalves; Delgado (2020) houve a contratação de 216 comunidades terapêuticas e os recursos para o tratamento de dependentes químicos passaram a ser no valor de R$ 153,7 milhões por ano, para 10.833 vagas.
Digno de nota perceber que se trata de um aporte considerável de recursos num momento em que todo o restante do SUS se encontra em contingenciamento de grande intensidade, a ponto de colocar o próprio sistema em risco. […] É algo paradoxal que, mesmo em face de uma diminuição de recursos drástica como a determinada pela EC 95, que ameaça a própria existência do SUS, existam recursos para financiar amplamente as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020, p. 9).
Este aspecto se torna ainda mais alarmante quando, em 2018, a portaria n° 3.659 suspendeu o repasse do recurso financeiro destinado ao incentivo de custeio mensal de 72 CAPSs, 31 Unidades de Acolhimento e de 22 Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral, integrantes da Rede de Atenção Psicossocial em todo o Brasil. Ou seja, torna-se evidente qual a prioridade deste governo no direcionamento da política de saúde mental, pautada no retorno de práticas de encarceramento pouco resolutivas anteriores à Reforma Psiquiátrica, como apresentado no início deste artigo.
Outra normativa, que não está diretamente vinculada a PNSM, mas apresenta impactos nessa política, é a Portaria GM n° 3.992, de dezembro de 2017, que dispõe sobre o financiamento e a transferência de recursos federais para ações e serviços públicos de saúde. Ela acaba com a destinação de financiamento do Ministério da Saúde para fins específicos, flexibilizando a área em que tais recursos podem estar sendo alocados.
Assim, recursos originalmente destinados aos serviços de base comunitária poderiam migrar para hospitais psiquiátricos ou para comunidades terapêuticas, por exemplo. Mesmo recursos destinados à saúde mental podem ser realocados em outras áreas da saúde. Em conjunto, essas mudanças nos fazem apontar um risco considerável de desfinanciamento de serviços como os CAPSs (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020, p. 8).
O governo de Bolsonaro buscou reforçar tais medidas por meio da nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS que reuniu todas as portarias, resoluções, decretos e editais do período entre 2016 e 2019, ao qual denominou de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. Para Cruz, Gonçalves e Delgado (2020) essa nova política incentiva a internação psiquiátrica, além de apresentar a separação da política sobre álcool e outras drogas, objetivando dar ênfase ao financiamento das comunidades terapêuticas, por meio de uma abordagem proibicionista e punitivista.
Outra ação deste governo foi a criação de uma nova modalidade de CAPS AD, do tipo IV, que possui uma estrutura semelhante a um hospital de pequeno porte e pretende funcionar por 24 horas, “sob a justificativa de uma suposta ampliação do atendimento, mas que, na verdade, na prática acaba por facilitar a internação compulsória de quem seja tido como usuário” (Silva e Silva, 2020, p.112).
Como já mencionado, a nota técnica propôs a separação da política de saúde mental com a de álcool e outras drogas, sendo esta última direcionada para o superministério da Cidadania, “cujo titular, proveniente do governo Temer, propaga uma clara política de apoio às comunidades terapêuticas, contra a estratégia de redução de danos e em defesa da abstinência como única possibilidade” (Silva e Silva, 2020, p.112). Com isso, observa-se o alinhamento das ações dos governos de Temer e Bolsonaro quanto a agenda para a política de saúde mental.
Após fortes denúncias realizadas pelos movimentos sociais, a nota técnica foi retirada do site do Ministério da Saúde, mas tais ameaças à consolidação da reforma psiquiátrica se mantiveram nos referidos governos da extrema direita. Podemos apontar, por fim, ações como a abertura do Edital de Chamamento Público n°3 de 2022, que busca selecionar instituições de direito privado para atender como hospitais psiquiátricos; e a Portaria 596/2022, que interrompe o Programa e o Incentivo Financeiro de Custeio Mensal para o Programa de Desinstitucionalização da RAPS. Ou seja, busca-se reverter toda a lógica comunitária defendida pelo movimento da reforma psiquiátrica e ampliar as práticas de internações.
O governo Lula, em 2023, tem em seus discursos se comprometido com a ampliação da Política Nacional de Saúde Mental pautada na Reforma Psiquiátrica, porém, não se tem ainda um detalhamento das ações governamentais que pautarão esta política. Nísia Trindade, atual ministra da saúde, em seu discurso de posse, se comprometeu em retomar os princípios da Reforma Psiquiátrica no direcionamento da política de saúde mental no país. Uma das ações recentes foi a nomeação de Sônia Barros, enfermeira, professora e a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nise da Silveira, para o recém criado Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas.
NOTAS
[1] Definiu o receituário neoliberal para a América Latina, orientado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e pelo Banco Mundial (BM). A sua execução se dá com base em dez áreas programáticas: disciplina fiscal, estabilidade monetária, redução de gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, investimento direto estrangeiro, privatizações, desregulamentações, com drásticas consequências para a classe trabalhadora em toda América Latina.
REFERÊNCIAS
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BARBOSA, Guilherme Correa; COSTA, Tatiana Garcia da; MORENO, Vânia. Movimento da luta antimanicomial: trajetória, avanços e desafios. Cadernos brasileiros de saúde mental, p. 45–50, 2012.
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