Pandemia e Periferias Brasileiras: A relação entre necropolítica e racismo ambiental

Ellen Monielle
CARPAS
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6 min readJun 9, 2020

Desde que foi reportado em dezembro de 2019 com início na província chinesa de Wuhan, a rapidez de disseminação do coronavírus foi condicionada, principalmente, pelo processo de globalização. Desse modo, as crises que acometem o sistema-mundo, ou seja, sistema baseado nas interrelações do capitalismo como epicentro da economia, também se alastram rapidamente. Não obstante, pode-se perceber que os efeitos das crises social, econômica, ambiental e de saúde pública tem se proliferado de maneira desigual.

A chegada da pandemia, sua amplitude e letalidade nas periferias e favelas brasileiras, só evidenciou o total abandono do Estado para com seus moradores, além de comprovar desigualdades sociais profundas e naturalizadas. O barco dos pobres, negros e favelados, amontoados nesses locais, está à deriva, aliás, há muito tempo. Nesse sentido, a postura do governo de Jair Bolsonaro não reflete apenas a falta de coordenação eficaz das crises frente ao cenário de pandemia, contudo, reverbera uma política responsável por provocar a morte de milhares pessoas, mas não quaisquer pessoas.

Fonte: Rodrigo Gomes/Rede Brasil Atual

E é nessa perspectiva que o conceito de necropolítica, cunhado pelo filósofo e historiador camarônes Achille Mbembe, surge:

A expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer (…) matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. — Achille Mbembe

Em poucas palavras, a necropolítica é o modo como o Estado, por meio de suas políticas, decide a cada minuto quem vive e quem morre. Portanto, o poder necropolítico relativiza a priori relevância de determinadas vidas, sendo emoldurados por arbitrariedades como a sobreposição das preocupações econômicas sobre o valor humano e a desvalorização dos corpos que não produzem ou agregam valor sistêmico à sociedade. No Brasil, identifica-se que os escolhidos pelo governo para morrer são: pobres, mulheres, idosos e a população negra e afrodescendente.

Esse contexto é claramente demonstrado pela frase dita em um discurso proferido por Bolsonaro que, ao defender a reabertura do comércio, enfatizou:

Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida.

Consequentemente, a necropolítica acontece quando o governador Wilson Witzel dar ordens para atirar na cabeça de indivíduos ou quando policiais entram atirando dentro de favelas. No entanto, também é necessário reconhecer que a política da morte também acontece quando o Estado sucateia serviços que devem ser garantidos à luz do direito universal, como por exemplo, o acesso à água. Nesse sentido, a pandemia não tratou apenas de ressaltar adversidades do padrão desigual e segregado da urbanização brasileira. Além disso, apresentou os desequilíbrios socioambientais associados ao modelo de desenvolvimento neoliberal que tem sido adotado pelo mundo capitalista.

Quando o Estado define qual região irá receber ou não determinadas políticas de saneamento básico e acesso à água potável, tal decisão configura o cenário determinante de prováveis mortes, ao passo que tomadas de decisões no que tange ações socioambientais são diretamente ligadas ao bem-estar e saúde da população. Nesse caso, o necropoder atua por meio do racismo ambiental, determinando quem vai ter esgoto tratado e água encanada e quem vai estar exposto a resíduos tóxicos.

Fonte: RioOnWatch

O racismo é geralmente associado a fatores como cor da pele, práticas religiosas ou culturas historicamente discriminadas. Em contrapartida, o racismo ambiental abrange questões territoriais e discute acerca de injustiças acometidas contra grupos vulneráveis, geralmente, disseminadas na aplicação de políticas públicas ou obras do setor privado. Benjamin Chavis, líder afro-americano de direitos civis, empregou o termo pela primeira vez e reforçou:

Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas ambientais. É discriminação racial na escolha deliberada de comunidades de cor para depositar rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É discriminação racial no sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que ameaçam as vidas nas comunidades de cor. E discriminação racial é excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e das instâncias regulamentadoras.

É imprescindível evidenciar que em tempos de capitalismo global, o conceito de racismo ambiental de Chavis foi sendo ampliado. De acordo Cristiane Faustino, relatora nacional do direito humano ao meio ambiente da Plataforma Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), as principais vítimas do racismo ambiental são as populações pobres e negras, além de indígenas, quilombolas e outros grupos “étnicos e racialmente excluídos dos processos de participação política, e em desvantagem econômica”. À vista disso, Tania Pacheco, criadora do blog Combate ao Racismo Ambiental, resume:

Ninguém decide fazer um lixão em Ipanema ou Copacabana. A decisão de onde jogar o lixo está ligada à imagem que se tem da população em quem você joga lixo.

Nesse caminho, é difícil seguir a recomendação sanitária mais simples, como de lavar as mãos frequentemente com água e sabão, quando 30 milhões de brasileiros não usufrui de saneamento básico. Ademais, 11 milhões de brasileiros vivem em milhares de favelas espalhadas por um território com o dobro do tamanho da União Europeia. E além de que nessas comunidades, onde poucos confiam nas autoridades, o Estado só aparece com uniforme policial e faltam as infraestruturas mais básicas, combater o coronavírus se transforma em uma missão muito delicada.

Com isso, as periferias do Rio de Janeiro enfrentam contaminação dos recursos hídricos, no qual seus moradores afirmam que a água saindo da torneiras está com cor diferente, gosto estranho e cheiro esquisito — bem longe de ser inodora, insípida ou incolor. Apesar das autoridades garantirem que a água é potável, as emergências dos hospitais estão lotadas de pessoas com enjoos e diarreias. Nessa condição, as consequências desse tipo de injustiça e necropoder são cada vez mais visíveis em tempos de pandemia.

Pedro Luiz Côrtes, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ressalta que a maior concentração de casos na cidade de São Paulo se encontram nas regiões leste, sul e norte, onde ficam localizadas favelas e cortiços. É possível notar que nesses locais há situações recorrentes de redução de pressão da água, falta de sistemas de coleta e afastamento do esgoto, dificultando a higienização.

No Ceará, o avanço dos óbitos nas áreas pobres escancara abismo socioeconômico. Lá, o número de casos confirmados e de mortes rapidamente migrou da zona rica às mais vulneráveis, seja pela impossibilidade de isolamento em moradias precárias ou pela falta de acesso à saúde pública. Em Fortaleza, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) divulgou que dos dez bairros com mais mortes pela doença pandêmica, todos estão na periferia.

Diante disso, é de caráter urgente identificar que o racismo ambiental também se ramifica dentro das bases da necropolítica. E apesar do Estado ter várias políticas de morte diferentes, há algo em comum entre eles: sempre atingem primeiro quem é pobre. É preciso apontar que o modelo de Estado é assentado sobre a produção das mortes de, majoritariamente, pretos e favelados e, assim, enfrentar as tendências necropolíticas e resistir à essa nova realidade é um poder que, em tempos de pandemia, é necessário cativar.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Juliana. A crise da água no Rio de Janeiro é a necropolítica pela torneira. 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/01/21/a-crise-da-agua-no-rio-de-janeiro-e-a-necropolitica-pela-torneira/.

GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Coronavírus chega às favelas brasileiras com impacto mais incerto que nas grandes cidades. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-05/coronavirus-chega-as-favelas-brasileiras-com-impacto-mais-incerto-que-nas-grandes-cidades.html.

JORNAL DA USP. Falta de saneamento básico dificulta controle da panemia. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/falta-de-saneamento-basico-dificulta-controle-da-pandemia/.

LOPES, Sheryda. Entendendo o racismo ambietal. Disponível em: https://fase.org.br/pt/informe-se/noticias/entendendo-o-racismo-ambiental/.

MATHIAS, Maíra. O que é Racismo Ambiental. in Rev. Poli/Fiocruz, 2017. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2017/03/14/o-que-e-racismo-ambiental/.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A “necropolítica e o Brasil de ontem e hoje. 2019. Disponível em: https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/.

RIBEIRO, Anael. A Necropolítica praticada por Bolsonaro nas periferias. 2020. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/04/28/a-necropolitica-praticada-por-bolsonaro-nas-periferias/.

SANTOS, Gislene Aparecida dos. Reflexões em tempos de pandemia, necropolítica e genocídios. 2020. Disponível em:https://jornal.usp.br/artigos/reflexoes-em-tempos-de-pandemia-necropolitica-e-genocidios/.

SILVA, Pedro Henrique Moreira da. A bio-necropolítica do Coronavírus. 2020. Disponível em: https://domtotal.com/noticia/1433659/2020/03/a-bio-necropolitica-do-coronavirus/.

VIANA, Theyse. Dez bairros com mais mortes por Covid-19 estão na periferia de Fortaleza. 2020. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/amp/dez-bairros-com-mais-mortes-por-covid-19-estao-na-periferia-de-fortaleza-1.2245835.

UEMURA, Margareth Matiko. A triste realidad da entrada do coronavírus nas favelas do Brasil. 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/a-triste-realidade-da-entrada-do-coronavirus-nas-favelas-do-brasil/.

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Ellen Monielle
CARPAS
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Graduada em Relações Internacionais, ecossocialista, ladina-amefricana e escritora de versos aleatórios.