Por que devemos reivindicar o trabalho doméstico como trabalho?

A jornada tripla: da conquista do mercado de trabalho à invisibilidade do trabalho doméstico

Lorena Garcia
CARPAS
8 min readJul 3, 2023

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Fonte: Think With Google

“O trabalho doméstico é socialmente invisível a partir do momento em que as mulheres que se dedicam à ele são consideradas inativas nos censos e nas estatísticas”(PENSAR CONTEMPORÂNEO,2019).

Em 1962, no Brasil, com o advento da Lei 4.212, surge o Estatuto da Mulher Casada, o qual permitia que mulheres casadas não precisassem de autorização do marido para trabalhar. Em 2021, o Projeto de Lei 2647 propõe a contagem do tempo de serviço, para efeitos de aposentadoria, das tarefas assistenciais de criação de filhos e filhas biológicos ou adotados.

Durante toda a história da humanidade, foi atribuída à mulher a tarefa doméstica, de cuidar da casa, dos filhos, do marido, em tempo integral e não remunerado. Apesar da conquista gradativa de direitos, a divisão social do trabalho, enraizada historicamente pela sociedade patriarcal e capitalista, não permitiu a transformação dessa realidade do trabalho doméstico, que passou a ser exercido cumulativamente a outras funções.

Houve a conquista do direito ao trabalho das mulheres à manutenção do trabalho doméstico atribuído exclusivamente à mulher, “reproduzido pelo patriarcado no sistema produtivo e reprodutivo da sociedade” (NOGUEIRA, 2010). Isso evidencia a jornada tripla exercida pela mulher, que se caracteriza com o exercício do trabalho doméstico, o trabalho remunerado e atividade intelectual acadêmica, exercidos concomitantemente.

Outrossim, o trabalho doméstico ocupa o espaço de invisibilidade na sociedade uma vez que “a mulher está ‘posicionada’ de maneira estratégica na sociedade capitalista, exercendo funções de mantenedoras do processo produtivo, sem que seja reconhecida social e economicamente por isso” (COSTA, 2018, p. 445).

O trabalho realizado pelas mulheres nos lares, seja acompanhado ou não de trabalho remunerado e intelectual, merece atenção, tendo em vista sua não-subordinação à Consolidação das Leis do Trabalho(CLT). Esse tipo de trabalho ,muitas vezes invisível, realizado principalmente por mulheres em tempo integral dentro de suas casas não possui uma carga horária definida, férias, décimo terceiro salário ou qualquer outro direito relacionado ao exercício laboral.

“Elas realizam atividades em casa — que não são consideradas integrantes do processo produtivo — que contribuem para a subsistência da sociedade produtiva como um todo, reduzindo os custos do sistema com os próprios trabalhadores, realizando a limpeza da casa e da roupa, o preparo dos alimentos (NOGUEIRA, 2010).

A chamada “jornada tripla” é a soma de multi-tarefas, que demandam responsabilidade e tempo. Essa realidade afeta não apenas mães solteiras, mas também mulheres que não são mães, aquelas responsáveis pelo lar e até mesmo mulheres que possuem parceiros ou cônjuges que não dividem igualmente as tarefas, o que geralmente é uma norma, e não uma exceção. Há o constante debate interno pelo trabalho, que emancipa a mulher, versus a atividade doméstica, atribuída em sua totalidade para as mulheres.

“Temos mais de 6 milhões de crianças sem o nome do pai no registro e isso já indica um número alto de mães solo. Mas existem aquelas mães que têm os filhos registrados, os nomes dos pais na certidão, mas não têm contato com o pai. Há os casos das mulheres que estão casadas com seus companheiros e ainda assim são as únicas responsáveis pela tarefa, vista ainda como uma obrigação da mulher (MIRANDA, 2021).”

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), em média, as mulheres dedicam 10,4 horas a mais por semana do que os homens aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas (IBGE, 2019). O relatório “Outras formas de trabalho: 2019” da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios(PNAD), investiga outras formas de trabalho que são atreladas ao trabalho doméstico e o cuidado de pessoas. Importante salientar que, como trabalho doméstico, a pesquisa leva em conta as seguintes atividades:

  1. preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça;
  2. cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos;
  3. fazer pequenos reparos ou manutenção do domicílio, do automóvel, de eletrodomésticos ou outros equipamentos;
  4. limpar ou arrumar o domicílio, a garagem, o quintal ou o jardim;
  5. cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados);
  6. fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio;
  7. cuidar dos animais domésticos; e
  8. outras tarefas domésticas.

Essa pesquisa evidenciou, estatisticamente, a situação das mulheres como principais responsáveis pelos afazeres domésticos. Segundo o IBGE, em 2019, 146,7 milhões de pessoas com 14 anos ou mais de idade realizaram atividades domésticas em seus próprios domicílios ou nos domicílios de parentes. Dentre essas pessoas, 92,1% das mulheres realizaram alguma atividade doméstica, enquanto essa proporção foi de 78,6% entre os homens (IBGE, 2019).

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 2019.

Conforme o gráfico acima, o único tipo de tarefa que superou a realização feita pelos homens foi a de pequenos reparos de manutenção de domicílio, automóveis e eletrodomésticos. Tarefa essa historicamente atribuída para o homem, através da divisão sexual do trabalho, como “tarefa masculina”.

Na conquista de direitos relacionados ao trabalho da mulher, houve proteção no tocante à maternidade como, por exemplo, a estabilidade da mulher gestante, licença-maternidade, direito ao repouso no caso de aborto natural, proibição de discriminação de qualquer natureza, remuneração igualitária. Além disso, no que tange à aposentadoria, a mulher pode aposentar-se integralmente cinco anos antes dos homens.

Já em relação à previdência social, a dona de casa pode se aposentar como segurada facultativa e, caso não tenha contribuído ao Instituto Nacional do Seguro Social(INSS), pedir o benefício de prestação continuada, preenchendo requisitos como: possuir mais de 65 anos ou ser pessoa com deficiência, ter uma renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo e ter inscrição no Cadastro Único(CadÚnico).

Apesar de possuir os direitos garantidos pela CLT e Constituição, a realidade da mulher no mercado de trabalho se distancia da preceituada pela lei. Soma-se à isso, a questão dos afazeres domésticos não-remunerados, que demandam tempo, responsabilidade, vindo acompanhados da maternidade ou não, de um parceiro ou solo.

“O mundo do trabalho é desenhado por homens, para homens, sobre homens e as mulheres foram se encaixando nesse universo sem terem as suas necessidades contempladas, sem poder colocar na mesa a jornada dupla (Maíra Liguori)”

As legislações não dispõem acerca dos afazeres domésticos como um trabalho, permitindo que a carga de uma jornada dupla ou tripla, recaia sobre a mulher, gerando sobrecarga física, psíquica e que muitas vezes as impedem de exercer sua liberdade no mercado de trabalho e sua liberdade como mulher.

Em 2021, surge o Projeto de Lei 2647/2021 de autoria da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) que destaca que “a manutenção das mulheres como principais responsáveis pelos afazeres domésticos e pelo cuidado com as pessoas fez com que uma grande massa de mulheres não consiga manter uma vida laboral ininterrupta”. Além disso, assevera ainda que:

“Sabe-se que 1/3 das mulheres brasileiras em idade de aposentadoria não tem acesso ao benefício por não terem conseguido cumprir as regras do tempo de serviço. Essas mulheres trabalharam todos dias. Cumprindo jornadas extenuantes, não remuneradas, de cuidados de pessoas, suprindo a falta de políticas públicas. É necessário reconhecer a maternidade como uma função social”.

O projeto de lei que dispõe sobre a contagem do tempo dedicado ao cuidado materno, para efeito de aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social, tem como principal modificação legislativa a computação, para fins de aposentadoria para mães e gestantes 1 ano de tempo de serviço para cada filha ou filho nascido com vida, ou 2 anos de tempo de serviço por cada criança menor de idade adotada como filho ou filha, ou por filho ou filha biológicos nascido com incapacidade permanente (BRASIL, 2021).

O projeto de lei ainda está passando pelas comissões e aguardando a realização dos pareceres, sendo sua última movimentação feita em 2021. Há outros projetos de lei que versam sobre a questão da contagem de tempo dos afazeres domésticos para aposentadoria, configurando como um trabalho propriamente dito.

Em 2016, o Projeto de Lei 326/15 visa incluir na Previdência Social os trabalhadores sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico em suas residências, desde que pertencentes a famílias de baixa renda — ou seja, com renda inferior a dois salários-mínimos (SENADO, 2016). Além disso, em 2022, o Projeto de Lei 2757/21, intitulado “Cuidado materno também é trabalho” visa a aposentadoria em um salário mínimo por cuidados domésticos, computando, também, o tempo de licença maternidade. O direito poderá ser garantido às mulheres com mais de 60 anos que não possuem os anos de contribuição necessários (RODRIGUES, 2022).

É evidente que os afazeres domésticos devem ser considerados como um trabalho remunerado, inclusive para fins de aposentadoria, tendo em vista que são milhares de mulheres responsáveis pela jornada dupla, e até mesmo tripla nos lares brasileiros.

Historicamente, além disso, a administração da casa foi entendida como algo essencialmente feminino, que elas fazem quase que por instinto. E a recente aceitação das tarefas domésticas por parte dos homens forneceu-lhes o álibi perfeito para demonstrar sua corresponsabilidade e dar o assunto por encerrado (ABUNDANCIA, 2019)

“Você poderia ter me pedido”, Emma Clit, 2017. Traduzido por Bandeira Negra.

A ilustração acima é de autoria de Emma Clit, uma história em quadrinhos intitulada “Você Poderia Ter me Pedido”, em que fala sobre essa atribuição de tarefas femininas. Em uma entrevista ao El Periódico, a autora declarou:

“Não existe nada biológico que leve as mulheres à exercer esse papel, mas interessa que continuem a fazer esse trabalho de graça. É o que permite manter o sistema. A criação dos filhos e o trabalho doméstico colocam a mulher nesse esquema graças ao patriarcado. Uma sociedade dominada pela classe masculina, que deteve o poder político e religioso durante séculos e manteve o controle sobre as mulheres, especialmente sobre sua capacidade reprodutiva, que é um poder essencial”.

A desconstrução dos afazeres domésticos associado a um papel feminino urge, sendo perceptível no cotidiano das mulheres através das multitarefas e jornada tripla. O trabalho doméstico limita e traz riscos à liberdade feminina no que tange ao seu desenvolvimento no mercado de trabalho e no trabalho acadêmico. O trabalho doméstico deve ser considerado trabalho a fim de proporcionar à mulher que se dedique a isso, o pleno exercício de seus direitos.

REFERÊNCIAS

ABUNDANCIA,RITA. Carga mental: a tarefa invisível das mulheres de que ninguém fala. El País. Disponível em :https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/01/politica/1551460732_315309.html.

AGÊNCIA IBGE. Em média, mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. Disponível em : https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas.

IBGE. Outras formas de trabalho 2019. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua(PNAD). Disponível em :https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto permite que a criação de filho conte tempo para aposentadoria. Agência Câmara de Notícias. Disponível em : https://www.camara.leg.br/noticias/827411-projeto-permite-que-a-criacao-de-filho-conte-tempo-para-aposentadoria/

CÂMARA DOS DEPUTADOS.Projeto prevê aposentadoria para donas e donos de casa de baixa renda. Agência Câmara de Notícias. Disponível em : https://www.camara.leg.br/noticias/482762-PROJETO-PREVE-APOSENTADORIA-PARA-DONAS-E-DONOS-DE-CASA-DE-BAIXA-RENDA

MIRANDA,Júlia de. Mães solo e carreira: uma equação que não fecha.Lunetas. Disponível em :https://lunetas.com.br/maes-solo-e-carreira/

NOGUEIRA, Cláudia M. As relações sociais de gênero no trabalho e na reprodução. AURORA, nº 6. Ago/2010. p. 59–62. Disponível em:https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/aurora/article/view/1231#:~:text=AS%20RELA%C3%87%C3%95ES%20SOCIAIS%20DE%20G%C3%8ANERO%20NO%20TRABALHO%20E%20NA%20REPRODU%C3%87%C3%83O,-Autores&text=rela%C3%A7%C3%B5es%20sociais%20de%20g%C3%AAnero%2C%20entendidas,articula%C3%A7%C3%A3o%20fundamental%20da%20produ%C3%A7%C3%A3o%2Freprodu%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 19 de junho.

RODRIGUES. Thais. Projeto de Lei prevê aposentadoria para donas de casa com mais de 60 anos. Terra. Disponível em : https://www.terra.com.br/nos/projeto-de-lei-preve-aposentadoria-para-donas-de-casa-com-mais-de-60-anos,8cb094a85abb6ee9ab589867dcc27ce8iy8gtji8.html.

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Lorena Garcia
CARPAS
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Bacharela em Direito. Pesquisadora. Redatora Carpas.