Raízes do sertão nordestino: As comunidades de fundo de pasto e a luta pelo uso comunal da terra.

Cecília Nayane
CARPAS
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10 min readJul 22, 2020

“A teoria da renda pressupõe que toda a população agrícola tenha sido dividida completamente em latifundiários, capitalistas e trabalhadores assalariados. Este é o ideal do capitalismo, mas não significa a realidade”. — Lenin.

A interiorização do povoamento do território nordestino no Brasil ocorreu a partir da necessidade de abastecimento das propriedades do litoral açucareiro no século XVI. Assim, surgiu a Civilização do Couro. A pecuária extensiva e a criação de animais de carga consistiam em práticas amplamente adotadas neste período, onde os trabalhadores dos sesmeiros estabeleciam os limites territoriais das sesmarias e cuidavam do pasto, desenvolvendo pequenas comunidades nos arredores das terras. Desse modo, é válido considerar que o sertão surge com o vaqueiro, assim como com o latifúndio.

A história do nordeste é a narrativa do início da concentração fundiária no país. Por exemplo, como demonstra o sociólogo Raymundo Faoro em ´´Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.´´ (1997), a maioria das terras do sertão da Bahia no século XVII eram propriedades de duas grandes famílias: A Dias O´Ávila, formando o território Casa da Torre, e a Guedes de Britto, proprietários da Casa da Ponte. Os trabalhadores destas e de outras sesmarias mantinham bois, cabras, carneiros e pequenas terras de subsistência em troca dos serviços de gestão destas casas senhoriais. No entanto, o que garantiu a formação do minifúndio e das aglomerações de vaqueiros, rendeiros, escravos fugidos e indígenas foi o absenteísmo dos latifundiários.

A vastidão dos territórios somada à ausência dos proprietários de terras nas suas posses durante a colonização contribuíram para o apossamento coletivo e a criação de pequenos povoados. A decadência da economia açucareira e o fim do ciclo do gado no sertão ocasionaram a fragmentação das grandes sesmarias. Assim, inúmeras terras foram apropriadas por ´´coronéis´´ locais e aquelas devolvidas ao Estado permaneceram habitadas informalmente por pequenas comunidades. Nestas aglomerações, o uso das terras abandonadas era coletivo. As criações bovina e caprina eram soltas, sem o uso de cercas, originando as comunidades de fundo de pasto concentradas principalmente no sertão baiano, Pernambuco e Piauí. Para o geógrafo Manuel Correia de Andrade (1989), estes povoados representam uma parcela do campesinato que “não foram inteiramente expropriados dos meios de produção”.

Estas aglomerações tradicionais demonstram a importância do conhecimento do povo nordestino do campo e sua relação com a terra. A interiorização do território do nordeste brasileiro foi marcada pelo desmatamento, contribuindo para o assentamento do clima semiárido, a eliminação da vegetação densa e o empobrecimento das terras, segundo consta na obra ´´As Veias Abertas da América Latina´´ (1984), do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Dessa forma, os sertanejos viram-se obrigados a sofrerem as consequências do monopólio do açúcar. O povo dos sertões fora abandonado após o declínio do ciclo da cana, sentenciado a sofrer com terras inférteis, escassez de água, dificuldades no transporte de mercadorias e uma vida infausta. No entanto, as comunidades de fundo de pasto surgiram como símbolos de esperança e resistência, onde o residente do campo encontrou a oportunidade de uma vida mais bonita na coletividade, contrapondo-se à ganância e ao egoísmo dos grandes senhores.

Estes povoados desenvolveram uma série de tradições e costumes que garantiram sua sobrevivência, alinhando-se também com práticas de culturas indígenas e africanas: O uso coletivo das terras para a criação de animais, deixando-os usufruírem do pasto livre e da vegetação natural; a socialização da água; o desenvolvimento de plantações de mandioca, milho e cana-de-açúcar, adequando-se às condições climáticas desfavoráveis; a prática da coivara e os conhecimentos sobre as secas periódicas e os tempos de colheita e plantio. A cultura do semiárido nordestino foi determinada por um cotidiano de resistência.

´´Fundo e fecho de pasto
É nossas terras de criação
Onde nasceu meus avós
Os meus pais, vem de geração
É uma inteira comunidade
Que vive na simplicidade
Que preserva a união

As comunidades de fundo de pasto
Tem um jeito próprio de viver
É só uma terra a de todos
Pra todos se estabelecer
Onde nela o povo cria
Em coletivo e na alegria
De produzir o que comer […]´´

— Cordel Comunidade de Fundo de Pasto, Anselmo Ferreira.

A modernização da agricultura e a efervescência dos conflitos territoriais.

´´Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o lugar. Viver é muito perigoso…´´ — Guimarães Rosa.

As comunidades de fundo de pasto resistiram aos mandos e desmandos do coronelismo e aos ataques de grandes proprietários de terras ao longo de toda a história do Brasil. As medidas adotadas durante o Império no país não apresentavam retorno econômico para a população, muito menos segurança para o pequeno proprietário de terras. No final do século XIX, avançaram rapidamente os cercamentos de arame farpado. A cultura do algodão surgiu como um advento da Revolução Industrial no nordeste brasileiro, a fim de satisfazer a indústria têxtil inglesa. Assim, a concentração fundiária aumentou, juntamente com as ameaças aos povoados que utilizavam pastos coletivos e não delimitados.

A medida que a modernização e a mecanização do trabalho adentravam na estrutura agrícola do país no século XX, o Estado agia para eliminar os povoados que utilizavam do sistema de bode solto e a agricultura familiar de subsistência. Estas comunidades fogem do ideal capitalista da relação entre patrões e assalariados a qual a agricultura brasileira adotou e reforçou com a criação da empresa agrícola. O processo de ´´rodoviarismo´´ da década de 1950 e as medidas de integração do interior demonstram um forte interesse na urbanização do sertão, favorecendo os latifundiários, já que possuíam condições materiais para acompanhar as mudanças trazidas pelas inovações do século XX. O Estatuto da Terra (1964) foi proposto com o objetivo de adaptar o sistema agropecuário brasileiro às novas exigências da sociedade moderna, definindo:

´´Empresa rural (é) o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados pública e previamente pelo poder executivo.´´ — Estatuto da Terra, artigo IV.

A promulgação do Estatuto legitimou as grandes propriedades rurais como o único modelo a ser seguido e a via de acesso aos benefícios das políticas públicas então implementadas, eliminando qualquer pensamento refente à democratização agrária levantado por Celso Furtado em seu trabalho na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Além disso, dificultou a regulamentação das pequenas propriedades de terras e desconsiderou a existência das propriedades comunais de fundo de pasto. Assim, a socióloga Maria de Nazareth Baudel Wanderley define a modernização da agricultura no Brasil como uma modernização sob o comando da terra.

Estas medidas colocaram as comunidades que utilizavam a terra de forma coletiva em situação de vulnerabilidade em muitos aspectos. A opressão econômica e técnica, em virtude da valorização da terra, da competitividade do mercado e da mecanização do trabalho agrícola; a questão fundiária e as opressões políticas. A grilagem ocasionou uma onda de conflitos violentos no âmbito rural nordestino, sobretudo na Bahia e no Maranhão, durante as décadas de 1940 e 1950. O geógrafo Manoel Correia de Andrade (1989) destaca conflitos pela posse de terras de fundo de pasto, pela construção de estradas e pelo domínio de barragens, ocasionando a morte de inúmeros trabalhadores rurais, a desterritorialização e o crescimento do abismo da desigualdade social no sertão.

Referente a ações estatais, faz-se válido citar as pressões políticas sofridas pelas comunidades de fundo de pasto. Na década de 1980, o Projeto Sertanejo incentivava o crescimento econômico no nordeste semiárido por meio de créditos. No entanto, o acesso ao apoio deste projeto foi concedido apenas a terras legalizadas e que se adequassem aos parâmetros de produção da empresa rural, favorecendo, assim, as propriedades de terras médias e grandes. Em consequência, os pequenos trabalhadores rurais sofreram com a incapacidade de competição no mercado, com o aumento das desigualdades sociais e a crescente miséria. O incentivo a construção de hidrelétricas, projetos de financiamento de terras e a facilitação da apropriação privada limitaram as comunidades de bode solto.

Em 1981, os regulamentos municipais chamados de ´´leis dos quatro fios´´ marcaram um agravamento nestas disputas:

Art. 1°. A criação de caprinos e ovinos no município deverá ser em área cercada e os rebanhos guardados e vigiados com cuidado preciso a fim de evitar prejuízos em propriedades alheias.

Art. 2°. Aos agricultores e pecuaristas fica assegurado o direito de construírem cercas para a proteção de suas lavouras ou para o critério de gado vacum com apenas 3 ou 4 fios de arame farpado.

As comunidades tradicionais que utilizavam da terra de forma coletiva, mas não possuíam as oportunidades jurídicas e financeiras de reivindicar o direito ao uso comunal das propriedades encontraram-se em uma enorme situação de vulnerabilidade, assim como a importância de suas tradições e costumes para a história do povo nordestino. O Estado permitiu que a grilagem e a agroindústria avançassem sobre os povoados de bode solto que sempre resistiram aos ideais das relações capitalistas e lutaram pelo uso da terra como um bem comum. Sobre as medidas tomadas pela classe dominante para legitimar as invasões e conquistas de terras, o filósofo Karl Marx afirma:

´´No decurso da história, os conquistadores acharam conveniente dar aos seus direitos de posse originais, derivados da força bruta, uma espécie de estabilidade social por intermédio de leis impostas por eles próprios.´´

O marco regulatório e a resistência dos povoados de fundo de pasto hoje.

VI Seminário Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, 07/09/2019. Senhor do Bonfim (BA). Fonte: http://www.sdr.ba.gov.br/noticias/2019-06-07/comunidades-de-fundo-e-fecho-de-pasto-debatem-politicas-publicas-para-o

´´[…]

Mas hoje temos ameaças
Causadas por fazendeiros
Que querem roubar as terras
Também as querem os grileiros
Pro agronegócio e mineração
Pra eólica a politição
Pra nelas plantar dinheiro

Só visam o lucro dos ricos
Só querem fazer capital
Não se importa com quem tá na terra
Nem a causa ambiental
Querem mesmo é explorar
E tudo monocultularizar
E acabar com o natural

[…]´´ — Cordel Comunidade de Fundo de Pasto, Anselmo Ferreira.

Atualmente, os povoados de fundos de pasto são reconhecidos pela Constituição Baiana de 1989, pelo governo federal e pela Organização Internacional do Trabalho. Além disso, o estado da Bahia implementou o ´´Projeto Fundo de Pasto´´ com o objetivo de reconhecer e incentivar o desenvolvimento destas comunidades. No entanto, de mais de 400 fundos de pasto reconhecidos atualmente, menos da metade estão regularizados e possuem acesso aos projetos de incentivo estatal, além das problemáticas na burocratização do processo de legalização destas propriedades coletivas.

Apesar do reconhecimento das comunidades de fundo de pasto como um dos 14 grupos com assento na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, criada pelo governo federal, as invasões e pressões de latifundiários e grileiros não cessaram. Por exemplo, o Projeto Baixio de Irecê, na mesorregião do Centro-norte baiano, que consiste em um plano de irrigação em construção ao norte da região médio do Rio São Francisco, coordenado pelo Ministério da Integração Nacional (MIN) e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Paraíba (CODEVASF). O projeto impacta o abastecimento de água, o desenvolvimento da agricultura e a criação de animais de 23 comunidades, dentre elas as comunidades de fundo de pasto.

Assim, torna-se evidente que o objetivo do capital é a proletarização do campo por meio da desterritorialização, do apagamento destes povoados tradicionais e dos costumes nordestinos da hospitalidade, da fé e do sentido de comunidade. Os povoados de pequenos agricultores representam uma luta contra a reificação. Atualmente, as comunidades de fundo e fecho de pasto organizam-se em seminários e reuniões para organizarem a luta por seus direitos como comunidades tradicionais.

Por exemplo, em Correntina (BA), uma das cidades mais afetadas pelas ´´leis dos quatro fios´´, as comunidades de fundo e fecho de pasto lutam pelo acesso à água do rio Arrojado. A fazenda Igarashi retira, diariamente, 106 milhões de litros de água do rio para irrigação. Em 2017, os trabalhadores rurais queimaram as bombas que puxavam a água do rio para a propriedade. No entanto, o prejuízo da fazenda não se compara ao sofrimento das comunidades de fundo de pasto da região, encurraladas pelo avanço da agroindústria. Há famílias que estão ali há 300 anos, retirando da natureza os frutos de sua subsistência e presenciando não só a morte de uma fonte de água, mas a desterritorialização do seu povo, o fim do conhecimento ancestral sobre a terra e o esquecimento sobre o uso sustentável que estas comunidades fazem dos recursos naturais disponíveis no sertão.

“Dizemos sempre que não somos nós que criamos o bode, mas que é o bode que cria a gente” — Maria Izete Lopes, moradora de uma comunidade de fundo de pasto na Bahia.

REFERÊNCIAS

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. O agricultor familiar no Brasil: um ator social da construção do futuro. Disponível em: <https://www.unifal-mg.edu.br/geres/files/Texto%207.pdf>. Acesso em: 14 de jul. de 2020.

JUNIOR, Luiz Antonio Ferraro; BURSZTYN, Marcel. À margem de quatro séculos e meio de latifúndio: Razões dos Fundos de Pasto na história do Brasil e do Nordeste (1534–1982), 2008. Disponível em:<https://geografar.ufba.br/sites/geografar.ufba.br/files/2008a_ferraro_e_bursztyn.pdf>. Acesso em: 15 de jul. de 2020.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11ª edição. São Paulo: Globo, 1997.

ANDRADE, Manuel Correia de. Lutas camponesas no nordeste. 2ª edição. Editora Ática, 1989.

DANTAS, Fernanda Gabriela Leal. Regularização fundiária das comunidades de fundo de pasto, 2015. Disponível em: <https://irpaa.org/publicacoes/artigos/monografia--fernanda-g.-leal.pdf>. Acesso em: 18 de jul. de 2020.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 36ª edição. Estudos latino americanos, v.12 — aumentada de um pósfacio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

COMUNIDADES DE FUNDO DE PASTO RESISTEM A PRESSÕES. Repórter Brasil, 2009. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2009/09/comunidades-de-fundos-de-pasto-resistem-a-pressoes/>. Acesso em: 1 4 de jul. de 2020.

FERREIRA, Anselmo. Cordel Comunidade de Fundo de Pasto. Disponível em: <http://www.sasop.org.br/noticia.php?cod=551>. Acesso em: 18 de jul. de 2020.

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Cecília Nayane
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"Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros." | Estudante latino-americana.