Sob o signo do dólar: Brasil, BRICS e desdolarização?

Marina Moreno de Farias
CARPAS
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18 min readJun 22, 2023
Photo by Eric Prouzet on Unsplash

A palavra do dia é “desdolarização” (de dollarization). Em jornais, revistas, sites de notícias e redes sociais, temos visto um interesse crescente neste termo que, até então, era marginal e restrito às discussões da Economia Política Internacional e sua esfera mais heterodoxa.

O termo repercutiu principalmente após a visita de Lula à China, onde o Presidente, em discurso no Banco dos BRICS, expôs seu desejo de utilizar moedas nacionais como meio de troca no comércio exterior, driblando o dólar, entre os países parceiros do Brasil. É importante notar que algumas — se não a maioria — dessas produções revelam um caráter otimista um tanto quanto ingênuo das dinâmicas das Relações Internacionais. Não é para pouco: é um tema complexo e pouco estudado dentro e fora da Academia.

O debate sobre uma desdolarização do Sistema Monetário Internacional (SMI) é precedido, necessariamente, pelas discussões acerca do papel do dólar e que perpassa um debate mais amplo sobre poder e dinheiro — que por sua vez atravessa as dinâmicas da geopolítica e da geoeconomia.

Nesta matéria, meu ímpeto é realizar: 1) uma breve discussão teórico-conceitual do que é Moeda; 2) um breve histórico do estabelecimento do dólar enquanto moeda de referência internacional; 3) contextualizar o debate público e a conjuntura, tentando compreender se há espaço para uma desdolarização do Sistema Monetário Internacional e como se daria essa outra dinâmica.

Moeda: uma breve discussão teórico/conceitual

Para as teorias monetárias do mainstream, o dinheiro é apenas uma maneira de tornar o circuito do escambo mais eficiente (M-M). No escambo, dois indivíduos possuem bens específicos e desejam trocá-los no mesmo momento. No entanto, nem sempre essa convergência ocorre.

O possuidor de tal mercadoria precisa querer trocar aquela mercadoria específica por uma outra mercadoria específica — que outro possuidor também quisesse trocar e receber a do outro de volta -, no mesmo momento. A moeda apareceria, então, como um equivalente geral, universalmente aceito, para servir enquanto meio de troca:

“Seria apenas uma mercadoria específica que se destacou das demais por características intrínsecas, como durabilidade, divisibilidade e transferibilidade.” (TORRES, 2022, p.75).

Em razão destas especificidades, tornaria-se meio de pagamento mais facilmente do que as outras mercadorias. Essa teoria vai ser defendida por Aristóteles, Locke e clássicos da Economia Política, como Adam Smith.

Esse mainstream econômico, em razão de sua convicção em um individualismo metodológico, assume que o circuito do escambo (M-M) produz então, naturalmente, o circuito da mercadoria (M-D-M) , gerando uma convergência em torno de um equivalente geral (unidade de conta).

O açougueiro tem consigo mais carne do que a porção de que precisa para seu consumo, e o cervejeiro e o padeiro estariam dispostos a comprar uma parte do produto. Entretanto, não têm nada a oferecer em troca, a não ser os produtos diferentes de seu trabalho ou de suas transações comerciais, e o açougueiro já tem o pão e a cerveja de que precisa para seu consumo. […] A fim de evitar o inconveniente de tais situações, toda pessoa prudente, […], depois de adotar pela primeira vez a divisão do trabalho, deve naturalmente ter se empenhado em conduzir seus negócios de tal forma que a cada momento tivesse consigo, além dos produtos diretos de seu próprio trabalho, certa quantidade de alguma outra mercadoria. (SMITH, 1996, p.81)

Esse equivalente geral adotou inicialmente forma de metais preciosos (como prata e ouro), em razão de serem duráveis, resistentes e raros, servindo para a cunhagem de moedas. Mas as evidências históricas sobre o uso da moeda enquanto meio de troca — como forma de uso generalizado nas sociedades — são nulas.

O autor Felix Martin, no fascinante livro “Dinheiro: Uma biografia não autorizada” nos presenteia com diversos eventos históricos e exemplos empíricos da sociedade humana desde a criação da moeda no Egeu, e nenhum deles demonstra a ampla utilização da moeda como meio de troca. Desde a criação da contabilidade na Mesopotâmia até os dias de hoje, a moeda é um “registro visível do crédito” e o dinheiro é o “sistema de contas de crédito e compensação”. A moeda atua como símbolo, como tecnologia social complexa entre crédito e dívida transferível = fiat currency ou, moeda fiduciária.

Um “fei”, a primeira moeda, na ilha de Yap, na Micronésia. Pelo tamanho, é visível que não poderia ser transportada, e não era utilizada como meio de troca. A simples existência e conhecimento do valor da moeda era suficiente para servir como compensação do crédito e da dívida entre os cidadãos.

A discussão acerca da teoria monetária é muito mais ampla do que o escopo deste trabalho permite, mas não é exagero dizer que a teoria convencional onde o dinheiro assume a forma de moeda, que assume a forma do meio de troca/meio de pagamento é totalmente falaciosa. Além de Martin, autores importantes como David Graeber e Charles Kindleberger são referências nestas conclusões históricas.

Ainda, para os economistas ortodoxos, com base na Teoria Quantitativa da Moeda, “O único impacto relevante do dinheiro na economia seria o efeito de uma mudança na sua quantidade sobre o nível geral de preços.” (TORRES, 2022, p.73). Essa teoria é desbancada pela heterodoxia econômica, principalmente baseada nas contribuições do maior economista do século XX, John Maynard Keynes. Keynes, utilizando-se do “Cartalismo”, inaugurado pelo economista alemão Georg Friedrich Knapp, enxerga a moeda principalmente como unidade de conta e enquanto criatura da lei (KNAPP, 1924). O meio de troca que teria evoluído dos mercados, a partir da propensão “natural” do homus economicus à barganha não seria mais do que o que Karl Polanyi chamou de falácia economicista.

Pensar no dinheiro como uma mercadoria e na troca monetária como a troca de bens por um meio de troca tangível pode ter sido intuitivo na época em que as moedas eram cunhadas com metais preciosos […] Nos regimes monetários modernos de hoje, não há ouro que lastreie nossos dólares, libras ou euros — nem qualquer direito legal de trocar nossas cédulas por ele. As cédulas modernas são, de forma bastante transparente, nada mais do que tokens. Além disso, a maior parte da moeda em nossas economias contemporâneas não desfruta nem mesmo da precária existência física de uma cédula. A grande maioria de nosso dinheiro nacional […] consiste meramente nos saldos de nossas contas em nossos bancos (MARTIN, 2016, p.23)

A partir dessa breve conceituação histórica acerca do papel principal exercido pela moeda — unidade de conta — podemos entender seus outros papéis lógicos. Para o Cartalismo, o valor nominal da moeda — unidade de conta — só pode ser determinado pela autoridade central: o Estado. Esse meio de pagamento emitido pela autoridade central ocorre dentro de um território definido, com sociedade organizada e onde o Estado se constitui enquanto aquele que detém o monopólio da violência. Essa autoridade central emite a unidade de conta na qual os cidadãos precisam liquidar a dívida que contraíram com o pagamento de tributos. Tributos estes, vale notar, que surgem para o financiamento da guerra. Só a autoridade central, detendo o monopólio da violência, pode proclamar a unidade de conta (moeda).

Nesse sentido, Martin (2016, p.93) descreve que “A fiabilidade do crédito do soberano repousa não na nossa avaliação de sua capacidade de obter crédito no mercado, mas na força de sua autoridade e na disposição do soberano de utilizá-la para acumular crédito junto aos seus súditos por meio da taxação.” O autor segue dizendo que “mais que seu tamanho representativo no mercado, é o poder dominante do soberano fora do mercado que torna suas promessas de dívida tão eficazes como dinheiro.” É a contrapartida de tributação, a partir do monopólio da violência da autoridade Racional-Legal do Estado moderno que confere à moeda e ao dinheiro a força e o poder que hoje possui.

Em outras palavras, a moeda, para ser considerada como tal, precisa exercer no mínimo três funções: 1) Unidade de conta; 2) Meio de troca; 3) Reserva de Valor. A própria existência e manutenção da moeda fiduciária revela este caráter Cartal (Knapp, 1924), pois a moeda fiduciária nada mais é do que a moeda cujo lastro é a confiança no Estado soberano que a emitiu: todas as moedas atualmente funcionam de acordo com este caráter fiduciário, pois não são mais lastreados em metal precioso ou cunhadas em algum objeto com valor “intrínseco” (como vimos, não existe objeto com valor intrínseco que tenha características superiores e possibilite a ação deste enquanto meio de troca). Assim,

“qualquer Estado soberano que tenha a capacidade de impor obrigações tributárias inevitáveis poderá emitir uma moeda fiduciária […] poderá fazer gastos deficitários, comprando bens e serviços por meio do crédito de reservas bancárias. Ele nunca precisará pedir empréstimos antes de poder gastar.” (WRAY, 2002, p.10).

Tais conceitos são essenciais para compreender o alcance do dólar hoje e um possível esforço posterior de desdolarização.

O Sistema Internacional

A conceituação realizada na seção 1 empreende uma compreensão nacional da moeda, dentro de um território definido como Estado. Para pensar no caráter do dólar e da moeda enquanto moeda de referência internacional, há que se caracterizar o Sistema Monetário Internacional, e para tanto, o próprio Sistema Internacional (S.I); unidade básica de análise das Relações Internacionais (R.I.).

O paradigma realista enquanto campo teórico das R.I entende o S.I enquanto anárquico. Kenneth Waltz, principal expoente da escola Neo Realista das Relações Internacionais (em conjunto com John Mearsheimer), postula que o Estado é o ator central no Sistema Internacional, e portanto, o conflito, a guerra, o poder relativo, a balança de poder, a segurança e a autoajuda são os temas de maior interesse nas relações interestatais.

O Estado é ator unitário e racional que molda as estruturas do Sistema Internacional. Em sua tese principal, Waltz busca responder a pergunta que acredita ser fundamental nas Relações Internacionais: quais as causas da guerra?

A resposta vem na forma das três imagens, sendo a primeira no nível de análise do indivíduo, a segunda no nível de análise do Estado e a terceira, no nível do Sistema Internacional. Para o autor, teorias que buscam explicar a guerra a partir do nível do indivíduo (primeira imagem) e do nível do Estado somente (segunda imagem) são reducionistas, e apenas uma análise a partir da totalidade do Sistema Internacional consegue explicar as origens da guerra.

Waltz postula então que a guerra é causada pela ausência do poder supranacional que caracteriza o Sistema Internacional, ou, a anarquia internacional. Essa anarquia gera a guerra de todos contra todos, porque é a competição por sobrevivência que funda os Estados nacionais, e é essa anarquia que “constrange”, estruturalmente, os Estados. Esse ambiente internacional anárquico só possibilita a sobrevivência daqueles Estados que conseguem recursos para sobreviverem mantendo o status quo. Não há, portanto, uma autonomia completa no Sistema Internacional, porque o comportamento dos Estados é moldado pela anarquia e pela necessidade de sobrevivência, que ocorre somente baseado na autoajuda (o Estado só pode confiar em si mesmo para que sobreviva).

Waltz então enfatiza a estrutura política do Sistema Internacional, que é imutável. O uso da força ou a ameaça do uso da força é a solução para os conflitos de interesses que existem entre esses Estados ao buscarem sempre o poder como meio para a sobrevivência dentro da anarquia; o poder, em Waltz, é meio, e não fim em si mesmo.

O padrão-ouro e o Choque Nixon

Até a Primeira Guerra Mundial, o Sistema Monetário Internacional funcionou sob o padrão-ouro: regime cambial fixo, onde cada país mantinha ativos de reserva em forma de ouro. Essas reservas eram determinantes das condições de comércio internacional, porque os fluxos de ouro atuavam sob o Balanço de Pagamentos. A depender do déficit ou superávit no comércio exterior, o país exportava ouro para ajustá-lo. Era um SMI com uma base monetária internacional equilibrada na paridade cambial.

O contexto de ascensão dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial transforma drasticamente esse paradigma. Além do poder militar e econômico alcançado, contou com a Europa em frangalhos para reforçar seu status no S.I. Esse contexto moldou as negociações de Bretton Woods (1942–1944), cujo objetivo era estabelecer uma nova estrutura econômico-financeira no período.

O sistema de Bretton Woods estabeleceu a obrigação para todos os países signatários de adotarem uma política monetária que mantivesse a taxa de câmbio dentro de um valor fixo, indexado ao dólar (aproximadamente 1%). Além disso, o sistema previa que o dólar teria respaldo em ouro, com a taxa de conversão fixada em 35 dólares por onça de ouro. No entanto, posteriormente, essa ilusão seria desmistificada com o próprio desmantelamento de Bretton Woods, evidenciando que essa troca em larga escala seria insustentável.

No contexto da criação do sistema Bretton Woods, surgiram duas instituições internacionais fundamentais: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

Essas instituições foram responsáveis por fornecer suporte ao novo modelo monetário em desenvolvimento. Além disso, a criação do FMI marcou um momento crucial para o aprofundamento do poder político e econômico dos Estados Unidos. Nessa fase, os Estados Unidos estavam, de maneira pró-ativa, consolidando sua dominação sobre as demais moedas ao moldar a estrutura do novo Sistema Monetário Internacional (SMI), o que resultou na imposição do desafio da restrição externa aos demais países.

Um esforço notável, liderado por Keynes nas negociações em Bretton Woods, foi feito pela Inglaterra para estabelecer uma moeda supranacional (chamada Bancor), que seria emitida por uma instituição multilateral de compensação conhecida como Clearing Union. A ideia era utilizar o Bancor como unidade de conta no comércio internacional. Não é necessário dizer que tal esforço foi em vão, e que os EUA conseguiram estabelecer o dólar como moeda de referência no SMI.

Os acordos resultaram na adoção de um sistema de taxa de câmbio vinculado ao dólar e ao ouro (sistema dólar-ouro), que seria gerenciado pelo recém-criado FMI e Banco Mundial. Dessa forma, o dólar foi estabelecido como uma moeda de reserva conversível em ouro, com uma taxa de câmbio fixa, devido às: 1) supostas grandes reservas de ouro mantidas pelos Estados Unidos naquela época e 2) o superávit comercial do país.

Nesse cenário, o Federal Reserve Board (FED) — Banco Central dos EUA — se tornou emprestador de última instância do FMI, além da adoção do papel de regulador de liquidez. Para o economista brasileiro Luiz Gonzaga Belluzzo (2016, p.14), “[…] a posição de “banqueiro internacional” que concedeu um enorme espaço para o crescimento dos bancos americanos”. É ingênuo pensar que a adoção do dólar como moeda de referência do SMI tenha sido por motivos econômicos (no sentido de estabelecer uma estabilidade a reboque do papel do dólar), e não pelos motivos geoeconômicos e geopolíticos.

Em 1971, ocorre o que é conhecido na literatura como “Choque Nixon”, onde, dentre outras medidas econômico-monetárias internas, o presidente Richard Nixon desarticulou o sistema dólar-ouro. O fim desse sistema tornou o dólar a moeda fiduciária do Sistema Internacional. Dado que o dólar foi estabelecido como a moeda padrão para transações internacionais no âmbito dos acordos de BW, respaldado pelo ouro, o colapso deste sistema resultou em uma mudança no regime monetário da economia global para a flutuação cambial.

A dimensão do poder geopolítico re-aparece: à época, Alemanha e Japão, entre outros “sócios e competidores”, estavam passando por seus processos de industrialização pela via tardia, emergindo como possíveis rivais aos Estados Unidos.

Como moeda de reserva do Sistema Internacional (SI), considerada a mais confiável, com o país emissor desempenhando o papel de emprestador de última instância, a economia global passou a depender exclusivamente da confiança nos Estados Unidos. Portanto, o declínio de Bretton Woods resultou em uma desregulamentação financeira de proporções internacionais e inaugurando uma ordem que chamamos de Neoliberalismo. O autor Gary Dymski (2023, s/p) lembra que “A única maneira na qual o sistema neoliberal pôde persistir é com o FED como emprestador internacional de última instância”.

Reforço que esse papel é exercido também, logicamente, no âmbito do comércio internacional. E daí cabe lembrar das últimas falas do presidente Lula, tanto na China quando lamentou “Toda noite eu me pergunto por que os países tem que basear seu comércio no dólar”, quanto no Palácio do Itamaraty durante a visita do presidente venezuelano Nicolás Maduro, ao afirmar “‘Sonho que a gente possa ter outra moeda e não depender só do dólar”. O comércio de todas as commodities mundiais (incluindo alimentos e petróleo) hoje variam de acordo com o dólar — que varia de acordo com o próprio FED.

Os países que não emitem a moeda de referência precisam encontrar maneiras de adquirir essa moeda para operar em suas transações. Essas transações variam desde importações simples até complexas operações financeiras e acúmulo de reservas internacionais, que são necessárias para cumprir obrigações no exterior, como pagamentos de empréstimos, e também para mitigar os impactos de crises cambiais.

Existem duas opções para um país obter a moeda de referência: 1) Através de exportações, onde o dólar é recebido em troca da venda de produtos, eliminando a necessidade de uma dívida futura; e 2) Por meio do endividamento em moeda estrangeira, que pode ocorrer por meio de Investimento Estrangeiro Direto (IED), investimentos em carteiras, empréstimos e financiamentos, todos eles com a contrapartida de uma dívida futura a ser paga na moeda de referência, que o país devedor não emite.

Este problema, chamado na economia de Restrição Externa, acarreta sérios desafios econômicos aos países não emissores de moeda de referência, mas principalmente aos países que não possuem moedas facilmente conversíveis e minimamente internacionalizadas, como na América Latina. Claro que a zona do Euro, por exemplo, sofrerá muito menos com a restrição externa, mesmo que não emita dólares americanos. A restrição externa possibilitou, para focar apenas em exemplos mais próximos, a crise da dívida da América Latina, no que ficou conhecido como a “Década Perdida”, já que, não só os termos do comércio internacional são estabelecidos em dólar, mas também os empréstimos do FMI e posteriores renegociações da dívida externa contraída.

Desdolarização: uma transformação possível?

Talvez esse seja o parágrafo mais importante deste texto, já que, é neste que podemos, a partir da conjuntura, realizar análises sérias sobre os recentes acontecimentos que vêm suscitando o debate da desdolarização. É difícil prever mudanças no Sistema Internacional enquanto inserido em sua própria lógica — está aí a dificuldade de todo cientista social com seu objeto de análise. É ainda mais difícil ignorar o otimismo da vontade que surge com as notícias animadoras sobre a “substituição” do dólar. Vamos tentar deixar esses elementos de lado e realizar uma análise clara sobre as possibilidades futuras. Para isso, vamos recapitular os papéis de uma moeda para pensar em sua internacionalização, já que, só é possível que haja um desafio ao dólar se outra moeda — ou uma cesta de moedas — se internacionalizar de maneira eficaz.

A moeda desempenha diferentes papéis em diferentes contextos. No comércio exterior, ela é utilizada como meio de troca para facilitar transações. Além disso, é usada como unidade de conta e meio de troca no faturamento e na liquidação do comércio internacional. Nos mercados financeiros, a moeda pode funcionar como reserva de valor. Em termos de política oficial, a moeda pode ser usada como âncora da taxa de câmbio, meio de troca para intervenção ou como moeda reserva.

Para que a moeda seja internacionalmente aceita, é necessário que ela tenha influência e seja capaz de competir com outras moedas amplamente utilizadas (o dólar, o euro, o iene japonês e a libra esterlina). Para isso, precisamos analisar a participação do Yuan — também chamado de Renminbi — no comércio internacional, mas principalmente nas operações financeiras internacionais e nas reservas internacionais, já que, a utilização do Yuan como meio de troca não garante grandes desafios à uma moeda que funciona como reserva de valor (o dólar).

Gráfico 1: Uso transnacional do Yuan

Fonte: People’s Bank of China (PBOC)

Gráfico 2: Porcentagem de dólar e yuan nas reservas globais

Fonte: FMI

Gráfico 3: Participação das moedas nos pagamentos globais

Fonte: SWIFT

O início da internacionalização da moeda chinesa remonta à crise de 2008, onde o país começou a permitir swaps de moeda com Bancos Centrais, principalmente de outros países asiáticos. O país também estabeleceu a utilização do Renminbi como meio de liquidação de transações internacionais como parte de seus esforços em meados de 2009 (COHEN, 2012). Neste ano de 2023, o Yuan ultrapassou o dólar nas transações externas da China; de acordo com a Bloomberg, “a participação da moeda local nos pagamentos e recebimentos internacionais da China subiu de quase zero em 2010 para um recorde de 48% no final do mês”.

Atualmente, o Yuan ocupa a quinta posição entre as moedas mais utilizadas, no entanto, ainda representa apenas 2,4% dos pagamentos globais (FOREIGN POLICY, 2023), em contraste com os 41,7% do dólar. Mas, a facilidade de conversão da moeda é um elemento essencial para a conveniência de seu uso em transações internacionais. No entanto, a China, um país que mantém um rígido controle de capitais, enfrenta desafios para promover essa conversibilidade sem abrir mão desse controle. E esse controle é um pilar central da política macroeconômica chinesa, focado em manter a estabilidade.

Gráfico 4: Yuan ultrapassa o dólar como a moeda internacional mais usada na China

Fonte: Bloomberg

No ano de 2013, o governo central da China estabeleceu metas para transformar o RMB em uma moeda internacional até 2020. Eles alcançaram sucesso ao incluir a moeda na cesta de moedas dos Direitos Especiais de Saque (SDR) do FMI. A China, com seu sistema financeiro regulado, sua taxa de câmbio fixa estipulada pelo Estado e seu controle de capitais, no entanto, não poderia fazer frente ao dólar a partir de uma internacionalização sem resolver algumas destas questões.

Esses elementos constituem o Trilema de Mundell, ou a “Unholy Trinity”, onde é impossível exercer ao mesmo tempo, estes três elementos: 1) Taxa de câmbio fixa; 2) Fluxos livres de capital e 3) Uma política monetária independente. Os chineses, a partir da atuação do Estado empreendedor, seguem uma lógica de disciplinar o capital externo e o capital financeiro, o que tem funcionado muito bem para o desenvolvimento do país. Se a China quiser efetivamente internacionalizar sua moeda, precisa resolver este trilema. Não me parece que o país estaria disposto a se integrar ao neoliberalismo e à financeirização necessárias para a internacionalização efetiva da moeda.

Nesse contexto, a internacionalização do Yuan parece vir de uma forma defensiva contra a militarização do uso do dólar, e não como uma ofensiva que pretende desbancá-lo de seu papel de moeda de referência internacional. Em termos claros, me parece possível o alcance do Yuan como meio de troca para transações comerciais bi e multilaterais (como já foi recentemente adotado na relação Brasil-China), e como maneira de acomodar as outras moedas no âmbito das sanções (caso da Rússia, por exemplo), através do CIPS no lugar do sistema SWIFT.

O plano proposto por Pequim no 13º Plano Quinquenal (2016–2020), sobre criação de um Sistema Monetário Internacional (SMI) multipolar, com um Fundo Monetário Internacional (FMI) reformado e uma melhoria dos Direitos Especiais de Saque, que atuariam como um ativo de reserva de última instância seria uma opção possível. Essa estrutura é parecida com a proposta do Bancor e da Clearing Union de Keynes no contexto das negociações de Bretton Woods — que, como sabemos, não foi colocada em prática.

No âmbito dos BRICS, a criação de uma moeda comum exerceria os papéis de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor, já que a proposta é uma divisa digital emitida por Banco Central, facilitando e diminuindo os custos das transações interestatais dos países do bloco. Em 2022, Vladimir Putin também ressaltou que o SPFS (Sistema de Mensagens Financeiras) — alternativa russa ao SWIFT — também está aberto aos países membros dos BRICS. A emissão de uma moeda comum para bloco econômico, no entanto, é um processo longo e que envolve diversos riscos, principalmente no que tange às políticas monetárias e fiscais dos países membros.

Com certeza, se realizado, é um passo para uma diminuição do espaço conquistado pelo dólar nas últimas décadas; as reações negativas dentro dos Estados Unidos sobre a queda da importância da moeda americana não deixam mentir sobre o quão cruciais essas iniciativas conjuntas são, mas também são perspectivas futuras que ainda estão por se desenrolar. A África do Sul sedia a próxima cúpula dos BRICS, em Agosto. Podemos esperar alguma movimentação sobre a moeda comum no evento.

Na última visita de Lula à China, os dois países firmaram a criação de uma Clearing House (sistema de compensação), para fechar negócios e para a concessão de empréstimos sem o uso do dólar como mediador.

O ICBC (Banco Industrial e Comercial da China, na sigla em inglês), é o banco que operará a clearing house no Brasil para permitir que empresários brasileiros e chineses possam fazer transações comerciais e empréstimos em yuan, e não apenas em dólar, como acontece hoje entre os dois países. (G1)

Para nós então, por enquanto, há otimismo e cautela.

Referências

KEYNES, J. Maynard. A treatise on Money. Edimburgo: R&R Clark Limited, 1935.

KINDLEBERGER, Charles. A Financial History of Western Europe. Routledge, 2010.

KNAPP, Georg F. The State Theory of Money. Londres: Macmillan & Company Limited, 1924.

MARTIN, Felix. Dinheiro: Uma biografia não autorizada. Portfolio-Penguin, São Paulo, 2016.

POLANYI, K., A Subsistência do Homem e Ensaios Correlatos, Contraponto, Rio de Janeiro,2012. (parte I)

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. Nova Cultural, 1v, São Paulo, 1996.

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