“The dollar is our currency, but your problem”: uma discussão sobre moeda e restrição externa

Ao contrário do que postula a teoria econômica ortodoxa, os países não partem do mesmo lugar em direção ao crescimento econômico. No caso da América Latina, ele é restringido pela escassez de divisas internacionais e pela hierarquia do Sistema Monetário-Financeiro Internacional.

Marina Moreno de Farias
CARPAS
10 min readSep 13, 2023

--

A visão neoclássica do desenvolvimento econômico, advinda de Smith, entende o subdesenvolvimento como uma etapa rumo ao desenvolvimento — processo de catch-up — , no nível do mercado. Dado que os salários devem estar no nível da subsistência, qualquer ganho de produtividade — acumulação de capital — é do capitalista, podendo ser transformado em reinvestimento para a produção industrial. Nesse processo, há a substituição da mão-de-obra, negligenciado a flexibilidade dos salários.

Nesse cenário, a alta oferta de mão-de-obra e o salário flexível na periferia geram um ciclo de declínio no preço dos produtos primários, e não há estímulo para melhoria no processo produtivo (principalmente na produção agrícola). Essa dificuldade na ampliação da produção agrícola, por questões naturais — tal dificuldade não existe na produção industrial — é o que gera menor oferta e maior preço dos produtos agrícolas. Enquanto o centro do capitalismo enfrenta uma escassez crônica de mão-de-obra, a periferia enfrenta uma escassez crônica de divisas internacionais.

Há, nesse processo, uma transferência dos desequilíbrios de preços para a América Latina, além de restrição externa que gera uma tendência crônica ao endividamento. É o economista argentino Raúl Prebisch que inaugura o modelo centro-periferia cepalino, onde sustenta a ideia de deterioração nos termos de troca.

Essa discussão remonta à teoria do Sistema Mundo de Immanuel Wallerstein. Nela, a Divisão Internacional do Trabalho (DIT) se conceitua como uma disputa entre as regiões pelo excedente econômico, onde o centro realiza a produção de alto valor agregado, e a periferia a de baixo valor agregado. A visão da DIT é a visão marxista atualizada ao mundo globalizado, em uma tentativa inaugurada por Wallerstein de internacionalizar o conceito do valor-trabalho e luta pelo excedente que em Marx constitui o Estado nacional. Na concepção da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o Estado é central na tentativa de ascender e ampliar a participação econômica na divisão internacional do trabalho.

A concepção cepalina conceitua alguns elementos que diferenciam os países subdesenvolvidos dos países desenvolvidos. Os países subdesenvolvidos são: i) primário-exportadores, e portanto ii) dependentes do centro do capitalismo, ii) possuem demanda interna limitada (demanda externa é propulsora do processo de crescimento econômico); iii) possuem heterogeneidade estrutural, iv) abundância de mão-de-obra e v) escassez de capital. Os países desenvolvidos são: i) industrializados; ii) autônomos, iii) possuem demanda interna ampliada, iv) são estruturalmente homogêneos, v) possuem abundância de capital e vi) escassez de mão-de-obra.

Para a CEPAL, o processo central para o rompimento com o subdesenvolvimento é o processo de industrialização capitaneado pelo Estado desenvolvimentista. No caso da América Latina, apenas Argentina, Brasil e México realizaram processos de industrialização. No caso do Brasil, a organização da produção foi externa, a partir do capital internacional, gerando economias de enclave — sistema econômico voltado para exportação, controlado por capital internacional, por meio de recursos externos.

Sobre isso, Prebisch (1949, p.72) diz: “É certo que o raciocínio concernente aos benefícios econômicos da divisão internacional do trabalho é de incontestável validade teórica. Mas é comum esquecer-se que ele se baseia numa premissa que é terminantemente desmentida pelos fatos.” e continua:

Segundo essa premissa, o fruto do progresso técnico tende a se distribuir de maneira equitativa por toda a coletividade, seja através da queda dos preços, seja através do aumento correspondente da renda. Mediante o intercâmbio internacional, os países de produção primária conseguem sua parte desse fruto. Sendo assim, não precisam industrializar-se.

Nesse sentido, a visão estruturalista latinoamericana se contrapõe a visão liberal tanto da Divisão Internacional do Trabalho quanto a seus possíveis ganhos através das vantagens comparativas.

O problema da restrição externa

Um dos problemas principais a acometer os demais países que não são emissores de moeda de referência internacional (e portanto, todos, com exceção apenas dos Estados Unidos) é o problema da restrição externa. Os demais países precisam operar utilizando uma moeda que eles não emitem, e portanto, precisam de canais para auferir a moeda de referência (dólar americano).

Essas operações vão desde operações simples de importação, até circuitos financeiros e acúmulo de reservas internacionais para cumprir com as obrigações no exterior (empréstimos, por exemplo) e para diminuir o efeito de crises cambiais. O ponto de partida para entender a importância da emissão de uma moeda competitiva nas relações monetárias internacionais está no Balanço de Pagamentos (Balance of Payments), ou BP, onde: [Conta Corrente] + [Conta Capital] + [Conta Financeira] = [Saldo do Balanço de Pagamentos].

A balança de pagamentos é a soma do saldo da balança comercial e do saldo dos fluxos de capital. É o resultado contábil quando se considera todo o dinheiro que entra e todo o dinheiro que sai de um país por meio do comércio, de investimentos, de empréstimos, da repatriação de capital, das remessas de migrantes, etc. (CEPAL, s/a, s/p).

As economias, em um sistema econômico, monetário e financeiro internacional, estão conectadas por seus Balanços de Pagamentos, já que os BPs são as diferenças dos fluxos monetários, provenientes das relações de comércio e investimento entre estas. O déficit de uma é o superávit de outra. A ligação entre as contas do BP e a determinação do PIB já havia sido feita por Raul Prebisch quando determinou que as importações são induzidas pelo nível de atividade econômica.

De acordo com Bhering e Serrano (2014, p.3): “À medida que aumentam os gastos, a renda e o produto, aumenta também a demanda por importações e, consequentemente, a quantidade de divisas necessárias para pagá-las. Desta forma, o produto de longo prazo fica limitado pela capacidade de gerar as divisas necessárias”.

Nesse sentido, um país sofrerá de restrição externa quando houver escassez crônica de divisas, principalmente para se pagar por importações (BHERING; SERRANO, 2014).

A possibilidade de haver escassez de divisas é proveniente, portanto, da diferença entre a moeda emitida internamente e a moeda usada para se pagar as obrigações internacionais. Isto tem uma implicação direta de que o país emissor da moeda internacional não sofre uma restrição externa. Ou seja, dentro de um cenário no qual o dólar é a moeda mundial de referência, os EUA não se deparam com uma situação de escassez de divisas (BHERING; SERRANO,2014, p.3)

Existem duas possibilidades para que um Estado não-emissor obtenha tal moeda: 1) Exportações (o dólar entra com a venda de produtos, então não há dívida futura a ser paga) e 2) Endividamento em divisa estrangeira (que pode se dar através de Investimento Externo Direto (IED), investimentos em carteiras ou empréstimos e financiamento, os quais possuem contrapartida futura; pagamento de dívida nesta mesma moeda de referência (que o Estado devedor não emite).

A alta elasticidade-renda das importações nos países subdesenvolvidos é correlacionada diretamente com a propensão marginal a importar, ou seja, quanto da demanda nacional está sendo acolhida pelas importações. A escola cepalina, principalmente no pensamento de Prebisch já levantava que “países subdesenvolvidos teriam uma alta elasticidade-renda das importações […] e que, portanto, a estratégia para que o crescimento não ficasse sempre restrito pelo BP seria reduzir a proporção de bens importados através da substituição de importações” (BHERING; SERRANO, 2014, p.5).

O processo de substituição de importações, como uma política oficial da CEPAL, surge então para diminuir a necessidade de bens importados em razão de atender a uma demanda interna, o que diminuiria a propensão marginal a importar, e por conseguinte, a necessidade de divisas estrangeiras (moeda de referência) não emitidas pelos países latinoamericanos.

Países que teriam uma elasticidade-renda das importações maior que um seriam aqueles que, dado o estágio de desenvolvimento, aumentos no nível de renda gerariam aumentos na demanda por bens que não são produzidos internamente. Isto faz com que volumes de divisas cada vez maiores sejam necessários para se pagar por estas importações e a restrição externa dificultaria o processo de crescimento. Neste contexto, a industrialização com substituição de importações teria o objetivo de reduzir a proporção de bens importados e, por conseguinte, m com a finalidade de aliviar as contas externas (BHERING; SERRANO, 2014, p.5).

Cabe mencionar que a necessidade do acúmulo de reservas internacionais em dólar diminui massivamente a poupança que poderia ser alocada para investimentos produtivos internamente, por exemplo (AGLIETTA; BAI, 2017). Não apenas, sabemos também que empréstimos e renegociações de dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição gestada no seio dos Acordos de BW, precisam ser liquidados em dólar, já que a instituição atua com o respaldo do Federal Reserve Board (FED) — o Banco Central dos Estados Unidos -.

Não à toa a década de 1980 ficou conhecida como a década perdida em razão da crise da dívida externa na América Latina. É no âmbito do FED que se define a política monetária, e o aumento dos juros do FED define também as taxas de juros dos empréstimos, em escala mundial, dado o papel do dólar de moeda de referência, meio de pagamento global e moeda reserva. Como resultado do conhecido Choque Volcker, esse aumento expressivo dos juros, paralelamente às consequências internas, houve um “enquadramento” das economias subdesenvolvidas, principalmente as latinoamericanas, ao poder norte-americano.

In retrospect, the tightening of monetary policy begun by the Federal Reserve under the leadership of Paul Volcker in October 1979 stands as a decisive turning point in the post-war monetary history of the United States (GOODFRIEND, 2005, p. 243).

A supervalorização do dólar na década de 80 a partir do Choque Volcker levou a uma diminuição absoluta do crédito (via empréstimos) para a periferia do Sistema Internacional. No caso pós-moratória mexicana, em 1982, o crédito se voltou para as “praças mais seguras”, em outras palavras: “[…] os sistemas bancário e financeiro passaram para tutela de Washington. Desde a década de 1980, os bancos internacionais não estão apenas sob o guarda-chuva do Fed, mas também financiando o déficit norteamericano ao comprar dólares e a adquirir a liquidez associada a ele”(SANTOS MAIA, 2018, p.53).

O título deste texto traduz a maneira como enxergamos o poder do dólar, construído no pós-Segunda Guerra Mundial e reafirmado a cada década que passa. “The dollar is our currency, but it ‘s your problem.”, em português “O dólar é a nossa moeda, mas é problema seu”, foi a frase dita por John Connally, secretário do Tesouro americano na administração Nixon (1969–1974), em 1971, durante o que chamamos Choque Nixon.

A construção da hegemonia monetária americana enquadra os “sócios e competidores” do capitalismo, gerando o que o presidente francês Charles de Gaulle (1959–1969), chamava de privilégio exorbitante do dólar — privilège exorbitant — em razão do poder geopolítico e geoeconômico da moeda americana como a de referência internacional (international reserve currency).

O país emissor de moeda de referência não enfrenta uma restrição de Balanço de Pagamentos — já que suas importações são compradas em sua própria moeda — como vimos que ocorre com os países não emissores. Os países que compram títulos da dívida pública americana (como a China faz em larga escala) estão inclusive, financiando o déficit em conta corrente que os Estados Unidos possuem há 40 anos. Todas as outras moedas, mesmo as que são internacionais (como o euro, por exemplo), flutuam conforme o dólar.

O dólar, por sua vez, flutua conforme as determinações do Federal Reserve Board. Em cenários de crise, as fugas de capital — capital flight — nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, são massivas, fazendo com que haja fuga para o dólar — a moeda mais “confiável”. Os Estados Unidos, não apenas, gerenciam sistemas como o SWIFT, e por meio deste utilizam o dólar como uma arma geopolítica no âmbito das sanções.

Quando não são as sanções, fazem embargos econômicos, utilizando-se mais uma vez do poder do dólar — que cota as commodities e o comércio exterior. A utilização do dólar como força que cria e reforça a hegemonia americana é inegável, e reforça a visão da moeda enquanto criatura da lei, não-neutra e portanto, ferramenta da consolidação e ampliação constante do poder.

O poder, conceito mobilizado com frequência no campo das Relações Internacionais, só existe se for exercido — não é estoque, mas fluxo (FIORI, 2005) — e só é exercido em relação a outro Estado. Nesse caso, os Estados Unidos utilizam seu poder monetário de emissor de moeda de referência internacional para enquadrar os outros países a partir da restrição externa — em tempos de paz — e usam a mesma ferramenta como arma geopolítica — em tempos de guerra.

Referências

BHERING, Gustavo. SERRANO, Franklin. A Restrição Externa e a “Lei de Thirlwall” com Endividamento Externo. Excedente, org. Grupo de Economia Política, 2014. Disponível em: <https://www.excedente.org/artigos/a-restricao-externa-e-a-lei-de-thirlwall-com-endividamento-externo/>. Acesso em 10 de Julho de 2023.

BRAUDEL, Fernand. Afterthoughts on Material Life and Capitalism. Baltimore, Md: JohnsHopkins University Press, 1977.

CEPAL. Raúl Prebisch e os desafios do desenvolvimento no século XXI. Disponível em: <https://biblioguias.cepal.org/prebisch_pt/sigloXXI/heterogeneidade-estrutural#:~:text=Publica%C3%A7%C3%B5es-,Heterogeneidade%20estrutural,atrasada%2C%20como%20entre%20os%20pa%C3%ADses.>. Acesso em 8 de Julho de 2023.

FIORI, José Luís. Sobre o Poder Global. Revista Novos Estudos, CEBRAP. São Paulo, no.72, p. 61–72. Novembro, 2005.

FMI. SINGH, Sukudhew. The Case for Intervention. 2023. Disponível em: <https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/2023/03/POV-malaysia-the-case-for-intervention-sukudhew-singh#:~:text=Intervention%20in%20the%20foreign%20exchange,about%20the%20currency's%20future%20value.>. Acesso em: 13 de Junho de 2023.

GOODFRIEND, Marvin. The monetary policy debate since October 1979: Lessons for theory and practice. Federal Reserve Bank of Richmond Review, Richmond, v. 87, n. 2, p.243–263, mar/abr. 2005.

GRAEBER, David. Debt: The first 5000 years, Melville House Publishing, NY, 2011.

KEYNES, J. Maynard. A treatise on Money. Edimburgo: R&R Clark Limited, 1935.

KINDLEBERGER, Charles. A Financial History of Western Europe. Routledge, 2010.

KNAPP, Georg F. The State Theory of Money. Londres: Macmillan & Company Limited, 1924.

MARTIN, Felix. Dinheiro: Uma biografia não autorizada. Portfolio-Penguin, São Paulo, 2016.

POLANYI, K., A Subsistência do Homem e Ensaios Correlatos, Contraponto, Rio de Janeiro,

2012. (parte I)

PREBISCH, Raul. O Desenvolvimento Econômico Da América Latina E Alguns De Seus Problemas Principais. Estudio económico de la América Latina, 1948 (E/CN. 12/89), 1949.

SANTOS MAIA, Eduardo. O papel das finanças na hegemonia dos Estados Unidos pós-1980: a centralidade do choque Volcker. Dissertação de Mestrado. Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. Nova Cultural, 1v, São Paulo, 1996.

STEIL, Benn. The Battle of Bretton Woods: John Maynard Keynes, Harry Dexter White, and the Making of a New World Order. Princeton: Princeton University Press, 2013.

TORRES FILHO, Ernani Teixeira. A moeda em Minsky e o atual sistema monetário globalizado americano. Texto para discussão 12, Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.

TORRES FILHO, Ernani Teixeira. SANÇÕES CONTRA A RÚSSIA: BOMBA-DÓLAR, DESGLOBALIZAÇÃO E GEOPOLÍTICA. Oikos, Volume 21, número 2 • 2022 ISSN 1808–0235 ISSN VIRTUAL 2236–0484.

WRAY, L Randall. Seigniorage or Sovereignty? Revista Economia e Sociedade, Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), vol. 19, pages 1–19, January.

WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol. I: a agricultura capitalista e as origens da economia-mundo europeia no século XVI. Porto: Ed. Afrontamentos, 1974.

--

--