Um ensaio sobre a ascensão do fascismo no sistema democrático

Fernanda de Melo
CARPAS
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20 min readApr 17, 2021
Grupo polonês de extrema-direita Bydgoskie Kamractwo Rodaków entraram em um orfanato para exigir que parem de vacinar crianças contra a Covid-19

“No fascismo, o proletariado é confrontado por um inimigo extraordinariamente perigoso. O fascismo é a expressão concentrada da ofensiva geral empreendida pela burguesia mundial contra o proletariado.” — Clara Zetkin. [1]

É imprescindível, para a compreensão do que é, de fato, o fascismo, enxergar a intrínseca ligação entre o fenômeno fascista e as composições basilares do capitalismo, do imperialismo e da democracia. Isto foi inequivocamente elucidado por Georgi Dimitrov, estadista búlgaro e secretário-geral da Internacional Comunista (1934–1943), em seu escrito “A Unidade Operária contra o Fascismo” que se preocupou em dissertar acerca das tarefas que as grandes massas devem exercer no combate a ascensão do fascismo, bem como realiza uma análise de como este produto político-econômico burguês surge.

No informe ao VII Congresso da Internacional, Dimitrov indica a existência de “brotos fascistas” e denuncia uma “ofensiva fascista” da burguesia para frear o aprofundamento e ampliação da crise do sistema capitalista. Ou seja, o fascismo surge enquanto uma das ferramentas políticas da burguesia nacional para atrasar qualquer possibilidade de quebra do capitalismo e, consequentemente, da dominação da sua classe. O fascismo seria, portanto, a fusão do capital financeiro das multinacionais com o poder político mais reacionário.

Em continuidade, o autor prossegue afirmando que a burguesia e seus respectivos representantes incentivam a acumulação através das guerras e intervenções militares as quais destroem forças produtivas, inventam e produzem outras na procura de gerar lucros à indústria militar, vinculada, evidentemente, ao capital financeiro, situação observável no sistema carcerário estadunidense, com uma indústria privada ligada às corporações financeiras. Como exemplo, temos a Corrections Corporation of America, uma empresa privada dedicada à prisão de imigrantes que protestou pelo fato de normas e controles dos imigrantes não estarem sendo rigidamente fiscalizadas porque isso “reduziria a demanda de cárceres e serviços”.

Dentro de uma perspectiva histórica, a partir da Segunda Guerra Mundial, a busca da acumulação do capital em tempos de crise se fundamenta em três componentes: 1) o predomínio do capital financeiro sobre qualquer outra forma do capital; 2) o impulso à indústria militar e 3) a busca, localização e controle dos recursos naturais: petróleo, gás e minerais em geral. Todos os elementos, de certa forma, se chocam e se interseccionam no corpo sistemático não apenas do capitalismo, mas do imperialismo, resultando na ofensiva fascista como recurso de manutenção do sistema de produção vigente [2].

O desenvolvimento do fascismo e a própria ditadura fascista revestem-se, nos diversos países, de formas diferentes, segundo as condições históricas, sociais e econômicas, as particularidades nacionais e a posição internacional de cada país. Em alguns países, principalmente onde não conta com uma ampla base de massas e onde a luta entre os diversos grupos no campo da própria burguesia fascista é bastante dura, o fascismo não se decide imediatamente a acabar com o parlamento e permite aos demais partidos burgueses, assim como à social democracia, certa legalidade [2].

Perante esse cenário, é notório que não é estritamente o liberalismo agindo a favor deste tipo de dominação, mas a própria social-democracia, visto que, enquanto ideologia, não se propõe extinguir as classes e, consequentemente, tampouco a classe burguesa. Pachukanis discorre sobre a Alemanha do final de 1918, quando os soviets eram dirigidos pela social-democracia e encobriram a contrarrevolução. O autor nos comprova que as atas do Congresso mostram com clareza como, no momento decisivo da revolução alemã, a social-democracia salvou o capitalismo, organizando as forças de reação burguesa e preparando o triunfo do próprio fascismo. A vida e morte do capitalismo alemão dependiam do êxito ou do fracasso em falsificar os soviets e a social-democracia foi capaz de cumprir essa tarefa, haja vista sua disposição do aparato diversificado e experiente das organizações partidárias e sindicais [3]

Noutros países, onde a burguesia dominante teme a próxima eclosão da revolução, o fascismo estabelece seu monopólio político ilimitado, ora de golpe e bordoada, ora intensificando cada vez mais o terror e o ajuste de contas com todos os partidos e agrupamentos rivais. Isto não faz com que o fascismo, no momento em que se agrava de um modo especial sua situação, deixe de estender sua base para combinar — sem alterar seu caráter de classe — a ditadura terrorista descarada com uma grosseira falsificação do parlamentarismo [2].

Os Estados Unidos, tido como a potência hegemônica perante o sistema internacional, expressa o caráter imagético da preparação do terreno do fascismo: a ilusão das instituições democráticas existentes como agente ativo da reação antifascista. A influência do Institucionalismo na Ciência Política, e, por consequência, na ideologia dominante, reverbera na crença de que o Estado Democrático de Direito é um ator benevolente no combate ao fascismo, sem considerar as raízes institucionais que manifestam-se na eclosão dos ideais totalitários.

“O capitalismo é, em primeiro lugar e principalmente, um sistema social histórico. Para entender suas origens, formação e perspectivas atuais, precisamos examinar sua configuração real.” — Immanuel Wallerstein [4].

A farsa democrática

O conceito de democracia apresenta-se numa dicotomia: a democracia clássica, da Grécia Antiga, e a democracia contemporânea. Os significados divergem-se também a partir da incompatibilidade: as eleições eram vistas como opostas ao ordenamento democrático na Antiguidade, e ao fato de que hoje em dia nenhum dos países tidos como democrático obtêm o povo ocupando espaços políticos no governo de fato.

Atualmente, apesar do congresso estadunidense possuir uma maior diversidade quanto ao gênero e raça dos congressistas, ainda não é suficiente. Números compilados pelo Daily Kos fixam a porcentagem de não brancos da Câmara em 22 por cento e a mesma cifra no Senado em 9 por cento. As mulheres representam cerca de um quinto de cada órgão — 19% da Câmara e 21% do Senado. Para além das questões sociais, mais da metade dos congressistas são milionários. O patrimônio líquido médio dos membros do Congresso é de pouco mais de US $ 1 milhão.

Na conhecida mundialmente como “maior democracia do mundo”, tal contradição nos afasta mais ainda de encontrar o que a concepção “democrática” propõe. Na democracia contemporânea, a massa popular é limitada ao mero exercício de votar. E, assim, erroneamente se crê que todo o sistema eleitoral está resumido ao voto.

Beirando a passividade, o povo apenas exerce sua “soberania” de tempos em tempos, no período de eleições [5]. Condenados à escolhas restringidas, a sociedade é vítima de um sistema formulado a partir de uma linha teórica descrente quanto a execução de um verdadeiro poder emanado do povo: a Teoria das Elites.

No caldeirão fervilhante que era a Europa do século XVIII e XIX, pensamentos políticos de maior igualdade entre os homens transpassaram o mundo das ideias, atingindo classes de potências revolucionárias. Tomemos como exemplo Alexis de Tocqueville, quem escreveu o clássico da Ciência Política, “A Democracia na América”. Em sua visão, “igualdade” e “democracia” andavam juntos, pois é impossível ter um, sem o outro. No entanto, na visão dos principais percussores da Teoria das Elites, a desigualdade é um fator inerente ao ser humano. Isto é, é natural. Os homens não estariam em posições de poder por ventura do sistema social vigente, mas por intrínsecos méritos próprios.

A própria dimensão teórica que o elitismo cria gera incoerência para as bases das formulações do pensamento democrático. A ideia do economista e sociólogo franco-italiano Vilfredo Pareto e o jurista e sociólogo italiano Gaetano Mosca é que a elite cria uma gama de valores, crenças e sentimentos comuns, assim se mostrando como uma personificação e encarnação de tais valores, tendo sua deterioração apontada para mudanças sociais. Mais tarde, essa descrição seria conceituada como o aparato ideológico do Estado. Seria, através disso, que a elite se manteria no poder. Ademais, a participação popular através do voto não é um sinal de que o povo tenha o poder para conduzir seus eleitos, mas pelo contrário, o povo é fadado a escolher entre as opções determinadas pela elite.

Os oprimidos são autorizados, uma vez cada três ou seis anos, a decidir qual, entre os membros da classe dominante, será o que, no parlamento, os representará e esmagará! — Karl Marx em sua análise da experiência da Comuna de Paris.

Na visão de Pareto, a mera existência das elites não é algo desumano, mas a expressão da desigualdade pela sua própria natureza. A injustiça entre os homens, dessa forma, não passa de um efeito colateral das próprias relações humanas. Até porque o autor insiste que até mesmo em sistemas de classes mais fechados, como o de castas, existem aberturas para a ascensão social para que os melhores das classes inferiores subam. Diante desse contexto, uma vez que a desigualdade é inerente às relações humanas, a sua eliminação é, portanto, impossível.

Em relação a elite política, Mosca não dificulta a questão: o domínio da minoria sobre a maioria é uma constante universal, segundo seu argumento de que a minoria é organizada, já a maioria, por ser numerosa, é vítima da desorganização. Ambos os autores não escondiam o repúdio que sentiam ao ver a mobilização dos movimentos operários, que tinha como proposta a tomada de poder. E, embora tentaram tratar apenas do socialismo como utópico em suas obras, acabaram por trazer à tona a democracia, por ter — teoricamente — como fantasia uma ideia de um governo não só da maioria, como do povo.

Nesse contexto, uma forte via da teoria democrática resgata argumentos elitistas em seus pressupostos. Joseph Schumpeter, economista e cientista político austríaco, em sua tese de “democracia concorrencial” incorpora preceitos discorridos por Mosca e Pareto. O problema é que a visão schumpeteriana não é uma tendência dentro da teoria democrática, mas um dos percussores basilares para sua elaboração, inspirando outros teóricos democráticos importantes como Robert Dahl.

“A democracia é o método para promover o bem comum através da tomada de decisões pelo próprio povo, com a intermediação de seus representantes.” Um primeiro ponto a ser criticado nesta definição é a própria noção de bem comum. Schumpeter observa que, para cada indivíduo, o bem comum poderá significar uma coisa diferente. Sua perspectiva, portanto, é a da sociedade como um composto de indivíduos atomizados, sem a possibilidade de construção de vontades coletivas. O ponto crucial da crítica schumpeteriana está aqui: as pessoas não sabem determinar o que é melhor para elas, quando estão em jogo questões públicas. Não há uma vontade do cidadão, só impulsos vagos, equivocados, desinformados. Segundo o economista austríaco, o indivíduo médio desce para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra no campo da política. Em suma, mesmo que possa cuidar bem dos seus negócios pessoais, não sabe tratar de assuntos públicos. [5]

Isto é, a visão schumpeteriana compartilha do elitismo ao colocar a densa massa social como uma classe não apenas ignorante, mas intelectualmente incapaz de participar ativamente de modo coletivo da vida política.

As conclusões de Schumpeter também encontram sua base em uma visão de natureza humana. As pessoas são egoístas, incapazes de se preocuparem com os interesses coletivos (mesmo quando estes as afetam). Ou seja, não adianta mudar as instituições, já que a causa da apatia e da desinformação não está nelas, mas nos próprios indivíduos. Mas se o indivíduo é ruim, a massa — aqui Schumpeter se baseia nos trabalhos, hoje desacreditados, de Gustave Le Bon — é pior, cega, age irracionalmente, levada por seus preconceitos. E não é por estar disperso pelos vários locais de votação que o eleitorado deixa de ser uma massa. [5]

O que se vê contemporaneamente é que as teorias democráticas incorporaram a crença da teoria elitista de que o poder político deve ser retido e alternado entre uma minoria. Isto é, os países democráticos tecnicamente não deveriam apresentar os índices de desigualdade que hoje nos fornece, mas a teoria não está desconectada da prática nessa situação.

No período histórico do capitalismo, prevalece a democracia para a burguesia, e a ditadura em cima do proletariado. Há uma democracia para uma minoria, e uma ditadura sob as cabeças de uma maioria.

No âmbito internacional, a democracia do Norte representa a exploração aos molde coloniais do Sul.

A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista; no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua sempre a ser, mais ou menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores fundada na escravidão. — Estado e Revolução, Vladimir Lênin (Capítulo 5, pág. 106).

Apenas na “maior democracia do mundo”, é possível encontrar:

Por outro lado, apenas para tratarmos de contrapontos e, para além disso, uma contrapropaganda, vejamos os dados referentes à ilha caribenha, Cuba:

No entanto, o argumento de partido único parece dominar as discussões em torno do sistema político socialista versus liberal. Na democracia liberal, a existência de partidos múltiplos não passam de uma ilusão propagandista de que em um cenário multipartidário há uma diversidade de escolhas. No entanto, a Casa Branca reveza o poder presidencial entre candidatos dos partidos Democrata e Republicano desde 1853. Ou seja, dois partidos revezam entre si há 168 anos.

Não precisamos ir tão longe também, nas eleições municipais e estaduais de 2020 no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgou que o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Social Liberal (PSL) teriam os maiores tempos de propaganda eleitoral gratuita. Enquanto isso, partidos construídos por mãos proletárias como a Unidade Popular (UP), legalizado a partir da atuação de jovens e trabalhadores de diversos estados brasileiros ao irem para as ruas recolherem assinaturas do povo, sem qualquer auxílio financeiro de empresários, teve direito a menos de dez segundos.

Para além do campo eleitoral, pois bem sabemos que os impulsos democráticos não se resumem às eleições, é invisual a existência de “Direitos Humanos” ou do “Estado Democrático de Direito”, nacional ou internacionalmente. Ora, se existem países europeus desenvolvidos que aos ouvidos soam como o antro do progressismo social, é porque há acumulação de riqueza e exploração de alguma mão-de-obra. Vemos em Rosa Luxemburgo a explicação da expansão do capitalismo como algo inerente ao próprio sistema. O imperialismo não é uma opção entre outras de política externa, senão uma necessidade vital do sistema econômico vigente, que precisa de terceiros mercados que absorvam a mais-valia que não pode ser realizada nos países de origem. Uma vez completada a expansão, com o mundo totalmente integrado à lógica do capitalismo, a inexistência desse terceiro mercado inviabilizará a própria capacidade de acumulação, o que se traduzirá em colapso geral, guerras pela redivisão do mundo, revoluções. [6]

Também de uma perspectiva crítica, Lênin descreve as características que considera fundamentais no novo contexto da economia mundial. Embora reconheça que a expansão do capitalismo tende a amenizar as contradições internas nos países mais desenvolvidos, permitindo uma certa distribuição de renda e favorecendo políticas reformistas por parte dos partidos socialistas, isso não significa o início de uma era de estabilidade permanente do sistema ou a caducidade da ideia de revolução socialista. [6]

Na realidade, só há no mundo uma liberdade concreta e uma democracia concreta e não existe nem liberdade, nem democracia abstratas. Em uma sociedade na qual existe a luta de classes, quando as classes exploradoras têm liberdade para explorar os trabalhadores, estes não têm liberdade para eximir-se à exploração; onde existe democracia para a burguesia não pode haver democracia para o proletariado e demais trabalhadores. Em alguns países capitalistas é permitida a existência legal de partidos comunistas, mas unicamente na medida em que estes não lesem os interesses vitais da burguesia. Não lhes é permitido ultrapassar este limite. Os que exigem a liberdade e democracia em abstrato consideram que a democracia é um fim e não um meio. Por vezes, a democracia parece um fim, mas, na realidade, esta é somente um meio. O marxismo ensina-nos que a democracia faz parte da superestrutura e pertence ao domínio da política. Isto significa, afinal de contas, que a democracia serve à base econômica. O mesmo se dá com a liberdade. A democracia e a liberdade são relativas e não absolutas, surgiram e desenvolveram-se ao longo da história. No seio do povo, a democracia pressupõe o centralismo, e a liberdade a disciplina. Em ambos os casos, trata-se de dois aspectos contraditórios de uma mesma entidade, simultaneamente em contradição e em unidade, e não devemos sublinhar unilateralmente um e negar o outro. — Mao Tsé Tung [7].

A Constituição Brasileira, burguesa tal como seu aparato estatal, garante os direitos sociais: a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais, e, ainda assim, temos 30 milhões de indivíduos sem teto no Brasil.

A Constituição Brasileira diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas cerca de 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso a nenhum serviço de saúde de uso regular.

A Constituição Brasileira nos assegura o direito a vida, mas mais de 345 mil pessoas morreram não por um vírus que não nos deixa respirar, mas porque “a economia não pode parar.”.

A Constituição Brasileira se prolonga sobre o direito a terra, mas povos indígena, quilombola e campesino lutam tendo que encarar uma pistola.

A Constituição Brasileira afirma o direito humano à alimentação, mas 10,3 milhões de brasileiros passam fome enquanto o Brasil desperdiça 23,6 milhões de toneladas de alimentos por ano.

Não falaremos de paz e democracia enquanto milhões morrem de fome e de doenças curáveis. Não falaremos de paz e democracia enquanto 11 milhões de brasileiros são analfabetos.

E, ainda assim, por algum motivo, quando exigimos isso de forma universal, ampla e popular, chamam de socialismo. Por isso, se a justiça e a solidariedade resultam na radicalidade, então trataremos aqui de disputas ideológicas.

O nascimento e a articulação do fascismo

Clara Zetkin, uma das fundadoras e dirigentes do Socorro Vermelho Internacional e pensadora marxista alemã, nos alerta sobre as raízes do fascismo, complementando as razões da defesa burguesa dadas por Dimitrov:

Com o abalo da economia capitalista causado pela Primeira Guerra Mundial, gerando não somente um agravamento no empobrecimento do proletariado, mas também na miséria da pequena burguesia, do pequeno campesinato e dos intelectuais, mesmo quando a guerra havia prometido sua ascensão, a segurança econômica dessas classes se perdeu. É a partir daqui que o fascismo age, recrutando um contingente de pessoas considerável.

O segundo motivo se trata da traição dos líderes reformistas, tanto liberais quanto sociais-democratas para com a revolução mundial.

Grande parte da pequena burguesia, incluindo até as classes médias, havia descartado sua psicologia dos tempos da guerra em nome de uma certa simpatia pelo socialismo reformista, esperando que este provocasse uma reforma social por vias democráticas. Eles ficaram desapontados em suas esperanças. Eles podem agora ver que os líderes reformistas estão em acordo benevolente com a burguesia, e o pior de tudo é que essas massas perderam a fé não apenas nos líderes reformistas, mas no socialismo como um todo. [1]

Diante da desesperança, o fascismo se torna um refúgio para os desabrigados ideológicos. O objetivo óbvio dos fascistas, ao ganhar apoio entre os vários elementos da sociedade, seria, naturalmente, tentar superar o antagonismo de classe nas próprias fileiras de seus adeptos, e o chamado Estado autoritário deveria servir como um meio para esse fim. O fascismo agora abrange elementos que podem se tornar muito perigosos para a ordem burguesa. No entanto, até agora esses elementos foram invariavelmente superados pelos elementos reacionários. [1]

Na concepção de Zetkin, a burguesia sabe reconhecer a defasagem do sistema capitalista. Esse enfraquecimento denuncia que as forças ofensivas burguesas estão vulneráveis, o que os leva a recorrer a reconstrução do sistema econômico a partir do impulsionamento da exploração do proletariado. Afina, eles precisam de um novo ordenamento de segurança e garantia de mantimento da ordem social. Por esse motivo, a classe dominante envida esforços para o surgimento do fascismo.

Essas condições são visíveis na Itália de Benito Mussolini, o capital industrial do país não era forte o suficiente para promover a reconstrução de uma economia arruinada pela perda da Primeira Guerra Mundial, a Crise de 1929 e as perdas humanas e bélicas que enfrentaram no período entre guerras. As grandes indústrias colapsaram e havia um enorme exército industrial de reserva pelas crescentes condições de desemprego que pairava sob todo o caos. O Estado, por sua vez, voltou sua atenção para o capital agrário e financeiro. Diante dessa conjectura, o proletariado italiano, organizado, se fortaleceu e, no verão de 1920, ocupou fábricas. Pairava agora, arrastada pelos ventos soviéticos, uma condição revolucionária na calorosa Itália.

Sem surpresas aparentes, a influência reformista dos sindicatos traíram a mobilização. Com a derrota dos trabalhadores nas ocupações industriais, o número de fascistas que agiam em conluio a Mussolini continham um número alto de proletariados. A causa da cooptação da causa trabalhadora se debruça no fato de que o fascismo mascara-se em um movimento revolucionário, de massas. Seu discurso, a priori, era contra a exploração. Como uma farsa tática, obviamente, os planos não conseguiram ser escondidos por muito tempo: o Partido Fascista criam sindicatos fascistas, corporações trabalhistas, mas aterrorizavam proletários através dos esquadrões militantes que se originaram das expedições punitivas.

Devemos perceber que o fascismo é um movimento dos desapontados e daqueles cuja existência está arruinada. Portanto, devemos nos esforçar para conquistar ou neutralizar aquelas massas que ainda estão no campo fascista. Desejo enfatizar a importância de percebermos que devemos lutar ideologicamente pelos corações e mentes dessas massas. Devemos perceber que eles não estão apenas tentando escapar de suas tribulações atuais, mas que estão ansiando por uma nova filosofia. — Clara Zetkin.

Apesar de cada país expressar elementos particulares, existem alguns fatores comuns no que tange ao fascismo [8]:

  1. Se trata não somente de uma ditadura burguesa, mas sim de uma ditadura em que o setor monopolista tem o predomínio onímodo, inclusive sobre os setores burgueses não monopolistas.
  2. Essa ditadura adquire um caráter terrorista até o ponto de produzir uma mudança qualitativa na forma de dominação e consequentemente na forma do Estado, operando uma ruptura radical com as formas democrático-burguesas.
  3. Essa forma de dominação se exerce fundamentalmente contra a classe operária, que a burguesia identifica como seu inimigo principal.
  4. Tal ditadura aparece como o “remédio infalível onde o capitalismo atravessa uma crise e teme seu colapso” (Togliatti).

No caso do fascismo latino-americano, sua principal característica consiste na sua impossibilidade de conseguir uma base de apoio popular, ou seja, de sustentar-se em algum movimento de massas. Isso tem a ver sobretudo com o seguinte: os países dependentes não podem dispor de uma afluência de excedente proveniente do exterior que lhes permita expandir de maneira rápida e de forma relativamente homogênea sua economia, mas estão sujeitos a uma drenagem constante de excedentes. Nessas condições, ou sua economia cresce acentuando violentamente as desigualdades de todo tipo e desenvolvendo unicamente os pontos que interessam ao capital estrangeiro (o caso do Brasil), ou acabam na estagnação como seria o caso do Chile, Uruguai e Argentina atualmente [8].

Outra característica particular do fascismo latino-americano consiste na sua impossibilidade de implementar uma política de tipo nacionalista, dada a nossa configuração dependente. No plano objetivo isso se torna impensável dado que o capital monopolista dominante é justamente estrangeiro e não pode desenvolver uma política contra si mesmo. Já no plano subjetivo, também não é fácil agitar bandeiras nacionalistas para mobilizar as massas pela simples razão de que nos países dependentes se corre os risco de adquirir uma base de projeções anti-imperialistas [8].

Na Alemanha, o fascismo adquire um tom não só único, como chauvinista. Tratamos agora da pureza racial como um elemento basilar adicional, não que não existisse a conotação de supremacia racial na Itália ou até mesmo no resto da Europa ocidental, mas enquanto os italianos posicionam os comunistas como o inimigo da segurança nacional, os alemães viram suas energias para além desses grupos políticos como inimigos da sociedade e ordem alemã: minorias étnicas.

Não se pode negligenciar as “tarefas coloniais” [9], a concepção de que se enfrente no império continental os povos destinados a trabalhar como escravos a serviço da raça dos senhores, aniquilar a classe intelectual é um dever paliativo, mas deve-se impedir que se forme também uma nova classe intelectual, porque, nessa conjectura, “só pode haver um senhor, o alemão” [10]. Na realidade, no Oeste existe uma diferenciação: do respeito ao jus in bello e às normas do jus publicum europaeum, estão excluídos os judeus, estranhos à Europa e à civilização, constituindo, como diria Goebbels, “um corpo estranho no plano das nações civilizadas”[11]. Como se nota, o elemento central da ideologia nazista é a dicotomia entre povos e raças depositárias da civilização, destinados ao domínio, e povos e raças que encarnam a barbárie e devem resignar-se à sua condição natural de escravos ou semiescravos. [12]

Em Munique, um livro em seu próprio título aponta os Estados Unidos como um país modelo no assunto de “higiene racial”. O autor, Geza von Hoffmann, enaltece os Estados Unidos pela “lucidez” e pela “pura razão prática” que demonstram ao enfrentar, com a devida energia, um problema tão importante quanto frequentemente suprimido: a higiene racial é promovida em favor do “crescimento daqueles racialmente mais dotados” (Rassentüchtigte), desencorajando a procriação dos “menos válidos” (Minderwertige) e realizando uma acurada “seleção dos imigrantes”, de modo a descartar não somente os indivíduos indesejados mas também “raças inteiras”[13]. A higiene racial é posta em prática também num nível posterior: vige a “proibição dos matrimônios mistos” e da “mistura extraconjulgal entre a raça branca e negra”; violar tais leis pode implicar até mesmo dez anos de reclusão. [12]

Em 1923, um médico alemão, Fritz Lenz, lamenta o fato de que, em relação à “higiene racial”, a Alemanha está muito aquém dos Estados Unidos [14]. Mesmo depois da conquista de poder pelo nazismo, os ideólogos e “cientistas” da raça continuam reiterando: “A Alemanha também tem muito que aprender com as medidas dos norte-americanos: eles sabem o que estão fazendo” [15]. [8].

Em Mein Kampf, Adolf Hitler discorre, depois de afirmar que “a fusão das raças superiores com as inferiores traz consigo consequências desastrosas”: “A experiência histórica nos fornece a esse respeito inúmeros exemplos. Mostra com assustadora clareza que a mistura do sangue ariano com o dos povos inferiores resulta no fim do povo portador da civilização. A América do Norte, cuja população é constituída por uma enorme maioria de elementos germânicos, os quais muito raramente se misturaram com povos inferiores e de cor, mostra uma humanidade e uma civilização muito distinta daquelas da América Central e do Sul, onde os imigrantes, em grande parte latinos, se fundiram com os habitantes originais. Basta apenas este exemplo para captar de modo claro e peculiar o efeito da mistura racial. Os alemães do continente americano, que permaneceram racialmente puros e incontaminados, tornaram-se os seus senhores e permanecerão assim até o momento em que eles mesmos sejam vítimas de um insulto ao sangue [16].” [12]

Em resumo, a democracia nunca tentou conter a ascensão de um regime fascista, bem como vemos na Europa e América Latina da metade do século XX. Enquanto isso, em países cujos votos foram direcionados a candidatos progressistas, como o caso de Salvador Allende e João Goulart, a burguesia, junto aos imperialistas, não hesitou em promover um golpe reacionário e antipopular, perseguir, torturar e assassinar lideranças políticas, sindicais e de movimentos sociais. Em outros termos, a burguesia seleciona quem, dentro de uma elite política, assumirá o cargo executivo, e não o povo. Enquanto a classe burguesa existir, a verdadeira democracia jamais triunfará.

Os sinais de desintegração, tão palpáveis diante de nossos olhos, nos dão a convicção de que o gigante proletário voltará a participar da luta revolucionária, e que seu grito ao mundo burguês será: eu sou a força, eu sou a vontade, em mim você vê o futuro! — Clara Zetkin

REFERÊNCIAS

  1. Fascismo, Clara Zetkin
  2. A Unidade Operária Contra o Fascismo, Georgi Dimitrov
  3. Pachukanis, Evguiéni Bronislávovitch. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020
  4. Wallerstein, Immanuel. Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001
  5. A Democracia Domesticada: Bases Antidemocráticas do Pensamento Democrático Contemporâneo, Luis Felipe Miguel.
  6. Luis Fernando Ayerbe. Estados Unidos e América Latina: a construção da hegemonia. São Paulo: Editora UNESP. 2002.
  7. Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo, Mao Tsé Tung
  8. A questão do fascismo, Agustín Cueva
  9. Adolf Hitler, Hitlers zweites Buch: ein Dokument aus dem Jahre 1928 (Stuttgart, Deutsche Verlags-Anstalt, 1961), p. 1238.
  10. Adolf Hitler, Hitlers zweites Buch: ein Dokument aus dem Jahre 1928 (Stuttgart, Deutsche Verlags-Anstalt, 1961), p.1682
  11. Joseph Goebbels, Tagebüch (Munique-Zurique, Piper Verlag, 1991), p. 1659.
  12. LOSURDO, Domenico. Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
  13. Geza von Hoffmann, Die Rassenhygiene in den Vereinigten Staaten von Nordamerika.
  14. Robert Jay Lifton, Ärzte im Dritten Reich, 1988, p. 29.
  15. Hans Friedrich Karl Günther, Rassenkunde des deutschen Voles 1934, p. 465.
  16. Adolf Hitler, Mein Kampf, p. 313–4.

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