vila mathusa e as famílias que escolhemos

através das palavras de zênite astra, travestis e transexuais ganham narrativas e identidades individuais, ao mesmo tempo em que formam na vila mathusa uma comunidade inspirada naqueles que foram, são e serão.

Maria Eduarda Lima
CARPAS
3 min readMar 11, 2023

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rubi sabe que algumas crianças nascem menino, que outras nascem menina, e que outras nascem criança e só, que nem rubi. sabe também que algumas nascem menino, mas na verdade são menina, que nem aurora.

nos oito contos de vila mathusa, primeiro livro de zênite astra, somos apresentados às histórias de alguns moradores da vila que dá nome à obra e suas vivências, dores e alegrias. nesta história, travestis e transexuais ganham narrativas e identidades individuais, ao mesmo tempo em que formam na vila mathusa uma comunidade inspirada naqueles que foram, são e serão.

construída com foco de dividir-se em ora nos apresentar a inocência, ora expor seu antônimo, a história dos moradores da vila entrelaça-se com períodos de nossa história, para onde zênite nos leva através de sua máquina do tempo construída capítulo a capítulo, entre encontros e desencontros, da infância ao leito de morte, da existência à resistência.

enquanto para uns a vila mathusa é mais um elemento condenável na boca do lixo da maior metrópole do país, para outros ela é um respiro dentro de uma são paulo acostumada a marginalizar aqueles que não adequam-se ao beabá imposto pela sociedade.

a travessa da vila mathusa é estreita e ladrilhada com paralelepípedos entrecortados por alguns tufos de grama. longe de ser uma vila que conste em mapas, é antes um rasgo para dentro do quarteirão, um lapso urbanístico.

dentro da vila, nossos personagens se abrigam, cada um e cada uma vivendo seu dilema pessoal, mas abraçados pelo coletivo, como no quintal de aurora e rubi, quando acompanhamos a autoafirmação transgênera na infância, período em que ser diferente é tudo o que não se quer, e descobrimos como um ninho acolhedor proporciona coragem quando o mundo externo não é gentil.

ou quando, por meio das confissões de yka, vivemos a dor do luto pelos anos perdidos sendo quem não se é em virtude da negação de uma juventude trans, da corrida para acompanhar o ritmo de um mundo que renega corpos que ousam ser mais para, em seguida, acompanharmos o voo, a libertação, as asas do pássaro se abrindo por conta própria.

ou, ainda, quando nas cartas de lui, a gente encontra um jovem lidando com as descobertas em relação à própria identidade e com a renegação materna apenas para mais a frente vê-lo protagonizando um dos encontros mais bonitos da obra.

os personagens a que somos apresentados no decorrer da história nem sempre tem o final que desejamos, como mona monique ou dinah dinamite, mas balanceando a leveza com o peso e a alegria com o sofrimento, zênite astra nos presenteia com uma apresentação do que é viver em comunidade.

permeada de memórias e saudações àqueles que pavimentaram os caminhos que percorremos hoje, reflexões acerca das questões de gênero e debates sobre as políticas exterminatórias, astra constrói e reconstrói personagens para nos mostrar sua perspicácia na amarração de todas as pontas que podem existir em histórias que se entrecruzam.

vila mathusa é, sobretudo, sobre as famílias que escolhemos.

quando uma travesti morre, morre com ela um planeta inteiro, mas quando uma travesti vive, meu amor… aí é outra história.

zênite astra é licenciada em Letras pela Unicamp e atua como educadora. Em sua produção artística, faz da experimentação com diferentes linguagens uma tentativa de dar conta de realidades plurais. Se interessa por investigar a memória, a formação de comunidades nas experiências trans, não-binárias e travestis. Em 2020, publicou o conto o meu nome quer dizer verdade em formato digital e, em 2022, lançou seu primeiro livro, vila mathusa.

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Maria Eduarda Lima
CARPAS
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Pernambucana, graduanda em Relações Internacionais (UEPB) e apaixonada por literatura latino-americana.