Vista Chinesa e a convivência solitária com o trauma
Vista Chinesa traz à tona os desafios de continuar a viver com uma ferida que, mesmo após anos, ainda sangra: o trauma de um abuso sexual.
Eu passava horas inventando estratégias para apagar a realidade dos fatos, como se eu pudesse voltar a ser a mesma Júlia de antes. Mas há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer porque se repetem todos os dias. — Vista Chinesa.
Em Vista Chinesa, quarto romance de Tatiana Salem Levy, Júlia é uma arquiteta encarregada de desenvolver o projeto da sede do golfe para as Olimpíadas de 2016 quando é brutalmente estuprada enquanto corria pela Vista Chinesa, um dos cartões-postais do Rio de Janeiro. Enquanto ainda aprende a lidar com os desdobramentos do trauma, cinco anos depois ela decide escrever uma carta a seus filhos, para quem deseja contar a sua versão da violência que sofreu.
Baseado na história vivida por uma amiga pessoal da autora, a diretora de televisão Joana Jabace, o livro traz à tona os desafios de continuar a viver com uma ferida que nunca fecha; uma ferida que, mesmo após anos, ainda sangra diante da família, dos amigos, da sociedade, do espelho e, sobretudo, internamente: o trauma de um abuso sexual.
A escrita de Levy é minuciosa, detalhada e com as passagens dos eventos propositalmente intercaladas para apresentar ao leitor o que é conviver com as lembranças de um dia que você deseja esquecer: sentir o cheiro do lugar durante as férias no México, sentir que aquele corpo violado não é mais seu, reviver as lembranças da violência misturadas com outras memórias.
Através da experiência de Júlia, a autora expressa a frustração de diversas outras mulheres abusadas que, de repente, têm sobre si o peso de lidar com a dor gerada pela agressão do outro.
De repente, a relação com seus pais, os dilemas de seu relacionamento, os problemas de trabalho, as crises existenciais, as dúvidas e obsessões que a priori eram importantes… tudo se torna secundário, ao mesmo tempo em que a vida continua o seu curso natural e essas questões seguem existindo, com o tempo sendo um deus que não para nem espera a recuperação do corpo e da alma.
É desesperador quando a palavra não cola na imagem. Toda fenda é exasperante, mas esta dói no corpo. Eu tenho vontade de sair gritando, por favor, me deem a palavra certa, aí alguém diz, não existe, as palavras certas nunca existem, mas eu não acredito nisso, eu acho que para toda coisa existe uma palavra certa e se a gente falar falar falar uma hora a gente encontra. As palavras certas poderiam ser: Eu fui estuprada. A mãe de vocês foi estuprada. Eu, a mãe de vocês, fui estuprada. Foi. Fui. Estuprada. Estuprada. Es-tu-pra-da. Isso é o que vocês vão ouvir de alguém, numa conversa distraída, um copo a mais, uma conversa mais íntima, ou até de mim mesma, a mamãe foi estuprada, sabiam? E ainda assim falta alguma coisa. Falta dar a essa palavra os sentidos que ela teve pra mim naquele instante e em todos os que se seguiram ao longo desses cinco anos, nos quais eu me tornei a mãe de vocês. — Vista Chinesa.
Em meio ao trauma, tem o Estado que não realiza aquilo a que se propõe: previamente fracassa em proteger e, posteriormente, em acolher a vítima, encontrar, responsabilizar e julgar de maneira justa o estuprador. No livro, o Estado falho se apresenta na figura do policial que oferece ao parceiro de Júlia um momento a sós com o abusador para acertar as contas; na figura da delegada responsável pelo caso, que revitimiza a protagonista ao perguntar por que ela foi correr em um horário diferente no dia em que foi estuprada, responsabilizando-a indiretamente pela violência que sofreu; na figura de toda a corporação policial que convencionou que era justo enviar a foto do suspeito para a vítima antes da realização de um processo formal de reconhecimento. Contudo, ele falha, sobretudo, ao não oferecer uma solução para o caso de Júlia, exatamente como não oferece ao caso de 99% das vítimas.
No país onde uma mulher é estuprada a cada 10 minutos, a batalha que Júlia — e todas as vítimas de violência sexual — enfrenta é individual, ao mesmo tempo em que é coletiva. O trauma do abuso, herança ancestral que permeia todas as mulheres, é dela, mas também é meu e seu. Todas nós precisamos lidar com ele em certa medida, o que fazemos diariamente em casa, na universidade, no trabalho e na rua.
Quando estava lendo Vista Chinesa pela primeira vez no ano passado, mandei um áudio para uma amiga dizendo “ei, estou lendo um livro ótimo, você vai gostar”, mas pouco tempo depois enviei outro dizendo “hm, acho melhor você não ler, é muito pesado”. E eu não menti — sim, é muito pesado, mas como ressaltou Joana Jabace, “quando o trauma é só um fantasma solitário, ele tem um determinado tamanho. Ao transformar esse fantasma em algo concreto, essa atitude, de alguma maneira, traz força. (…) Enquanto a gente não falar sobre esse assunto, ele continuará subterrâneo”.
Por isso, reitero o primeiro e volto atrás com o segundo conselho que dei a minha amiga aqui: leia Vista Chinesa, por mais difícil que seja. Precisamos superar o trauma, juntas.
Tatiana Salem Levy (Lisboa, 1979) é romancista, contista e ensaísta. Com seu romance A chave de casa, traduzido para diversos idiomas, recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura como autora estreante em 2008. Publicou ainda os romances Dois rios (2011) e Paraíso (2014), além de diversos livros dedicados ao público infantojuvenil e um volume de crônicas. Foi finalista no 64° Prêmio Jabuti com Vista Chinesa (2021). Escreve críticas e comentários culturais no jornal Valor Econômico.
Referências bibliográficas
- Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em 2021. g1, Brasília, 7 de março de 2022. g1 DF. Disponível em: <https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/07/brasil-teve-um-estupro-a-cada-10-minutos-e-um-feminicidio-a-cada-7-horas-em-2021.ghtml>. Acesso em: 11 de janeiro de 2023.
- BUCHMÜLLER, Hélio. CRIMES SEXUAIS: A impunidade gerada por um Estado omisso. Congresso em Foco, 2016. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/crimes-sexuais-a-impunidade-gerada-por-um-estado-omisso/>. Acesso em: 11 de janeiro de 2023.
- LEVY, Tatiana Salem (1979-). Vista Chinesa. São Paulo: Todavia, 1a edição, 2021, 112 páginas.
- ‘Quero mostrar que dá para seguir adiante’, diz diretora sobre transformar em filme o estupro que sofreu. Jornal O Globo, 11 de outubro de 2021. Gente. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/ela/gente/quero-mostrar-que-da-para-seguir-adiante-diz-diretora-sobre-transformar-em-filme-estupro-que-sofreu-25228976>. Acesso em: 11 de janeiro de 2023.