Wallerstein e Lênin: o Imperialismo e o Sistema-Mundo

Fernanda de Melo
CARPAS
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9 min readSep 21, 2020

“A emancipação só viria quando se conseguisse libertar nossa pátria do jugo do imperialismo norte-americano e para substituir o regime de latifundiários… por um regime democrático-popular” (Voz Operária, 1956).

A priori, é essencial compreender que a conceituação acerca do estudo do imperialismo ainda é contínuo, por ser um fenômeno em mudança constante. No entanto, utilizarei aqui, em função da análise que proponho realizar, o conceito original e o mais aceito pelo meio acadêmico.

Diante disso, o imperialismo é o conjunto de políticas, medidas e mecanismos que, sob determinação de um Estado-nação, se procura estabelecer políticas de expansão e domínio territorial, seja este cultural, seja econômico em torno de outras regiões geográficas. O primeiro estudo sistemático acerca do imperialismo surge apenas em 1902, um tempo curto na historiografia, com o livro “Imperialismo” do autor inglês John Hobson.

De acordo com Hobson, a ação imperialista ocorre em função da acumulação de capital excedente que deveria ser exportado. Isto é, se criam motivações para dar continuidade ao expansionismo, em busca de novas fontes de matérias-primas e de mercados. A obra do autor se torna excepcional por apresentar de maneira única, até então, a atribuição de raízes econômicas ao imperialismo, o que mais tarde fornecerá a base para a interpretação marxista, que gira em torno do capital financeiro.

Para entendermos a teoria que será desenvolvida no início do século XX pelo líder soviético Vladimir Lênin, é necessário resgatar em O Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels as análises feitas em torno do sistema internacional vigente do século XIX.

Para Marx, o alcance global do modo de produção capitalista deixou evidente a posição da burguesia enquanto uma classe internacional, haja vista que a mobilidade do capital a permitia se estabelecer e criar vínculos em qualquer lugar. Além disso, a obra também afirma que o proletariado moderno era uma classe sem pátria, pela sua constituição a partir das relações sociais de produção capitalista, universalizadas pela expansão do mercado global. Entretanto, apesar da dominação sobre o proletariado pelo capital ser um fenômeno mundial, sua reprodução social ocorre dentro do âmbito nacional, limitando suas ações políticas às fronteiras dos Estados Nacionais.

A dominação de classe não é mais capaz de disfarçar-se sob um uniforme nacional; os governos nacionais são um contra o proletariado… a classe trabalhadora francesa é apenas a vanguarda do proletariado moderno.” — Karl Marx, ao analisar a guerra civil na França em 1871.

A teoria imperialista de Vladimir Lênin

Tentando compreender a situação gerada pelas rivalidades emergentes entre as grandes potências capitalistas, Lênin, a partir de 1912 voltou sua atenção para o estudo do imperialismo. Para o revolucionário bolchevique, o problema do imperialismo não e somente um dos problemas essenciais, mas o mais essencial na esfera da ciência econômica que estuda a mudança de forma do capitalismo nos tempos modernos.

Em “Imperialismo, fase superior do capitalismo” (1916) Lênin, embora se baseie nas leis de movimento do capitalismo, tais como descritas por Marx, e mesmo localizando na dinâmica da acumulação e da luta de classes a fonte primária dos conflitos internacionais.

Ao contrário de Marx, que enfatizava as contradições entre as forças sociais de produção e as relações de produção capitalistas como força de transformação histórica das sociedades nacionais, Lênin aponta a contradição entre nações capitalistas como determinantes para desencadear o processo revolucionário que, consequentemente, levaria à queda do capitalismo. Pensando nisso, Lênin se preocupou em explicar duas questões fundamentais:

  1. as limitações da teoria marxista no que se referia à afirmação de uma tendência do capitalismo a sofrer crises sempre mais graves e de difícil superação, que o levariam à inexorável derrocada;
  2. a adesão do proletariado aos exércitos nacionais no quadro da guerra interimperialista.

A primeira questão era respondida na própria dinâmica do imperialismo. Para enfrentar as crises de superprodução e a tendência à queda da taxa de lucro, resultante da acumulação de excedentes e da concentração do capital, o capital monopolista busca novos mercados nos quais sua lucratividade será mais elevada. A expansão imperialista na busca de novos territórios corresponderia justamente à dinâmica dessa nova fase do capitalismo, na qual a exportação do capital excedente torna-se essencial a sua reprodução. Lênin considerava que a internacionalização do capitalismo por meio da expansão colonial das potências imperialistas levaria ao conflito e à guerra.

Portanto, ele transpõe as classes sociais, colocando os Estados nacionais enquanto os atores no sistema internacional e a luta de classes para o plano internacional. A luta de classes adquire uma nova dinâmica, agora no sistema internacional, pelas desigualdades entre Estados nacionais. Isso porque, na fase imperialista, o capital monopolista, em seu movimento de expansão e conquista de novos mercados, carrega com ele suas contradições, que assumem uma nova forma, correspondente à avançada internacionalização do processo de acumulação.

“A competição não desapareceu, portanto, mas assumiu uma nova forma, na qual os protagonistas da luta de classes não eram mais classes no interior dos Estados, mas tornaram-se elas mesmas, Estados.” — Vladimir Lênin.

Ou seja, a luta de classes manifesta-se agora por intermédio do conflito entre Estados nacionais, que ele classifica como “oprimidos” (desindustrializados) e “opressores” (industrializados). O conceito de imperialismo procura dar às diferenças e conflitos horizontais entre nações o caráter próprio de luta de classes, superando os limites da perspectiva de Marx. Nesse sentido, os antagonismos de classe e de tipo nacional cruzam-se na “fase superior” do capitalismo: o imperialismo, que é o movimento de expansão do capital monopolista e, consequentemente, da internacionalização das relações sociais do modo de produção capitalista. Sendo assim, o imperialismo nada mais é do que uma superestrutura do capitalismo monopolista.

Por conseguinte, para compreender os aspectos condicionantes objetivos e subjetivos da luta de classes no capitalismo monopolista, a teoria imperialista leninista combina dois movimentos. Por um lado, o capitalismo monopolista é visto como uma unidade dialética que contempla não apenas todas as dimensões da economia e da sociedade — as forças produtivas, as relações de mútua determinação no interior de cada formação social, como também a exploração econômica e dominação política que condicionam a relação entre as diferentes formações econômicas e sociais que formam o sistema capitalista mundial.

Por outro lado, a tendência efetiva da luta de classes é relacionada aos efeitos das novas contradições sobre o comportamento das classes sociais; a possibilidade do acirramento dos antagonismos gerar uma crise revolucionária para saltos históricos; a polarização da luta de classes entre revolução e contrarrevolução; o risco do proletariado desperdiçar a oportunidade histórica de superar o capitalismo pela ausência de uma teoria revolucionária que unifique a classe para enfrentar a burguesia.

Com as dificuldades teóricas que o imperialismo tem de construir um modelo que projete efetivamente a luta de classes para o plano internacional, o imperialismo, assim, tende a assumir feições de uma teoria sobre Estados com capacidades de poder diferentes, resultante do desenvolvimento desigual de suas forças produtivas. Sendo assim, esse processo gerou as trocas desiguais, em que os termos de troca se deterioraram pela vantagem que os países industrializados tinham sob os desindustrializados. Dessa forma, os Estados opressores eram capazes de produzir bens de alto valor agregado, enquanto os oprimidos se retém com bens primários, atuando como mercado consumidor. Portanto, as trocas desiguais ocasionam um método transgeracional de manutenção das desigualdades, conceituados como “gap”, criando um vão dos países entre si.

Podemos exemplificar tal questão ao observarmos que, no governo de Fulgêncio Batista, ditador cubano protegido pelo jugo estadunidense, Cuba vendia quase todo seu açúcar aos Estados Unidos. Fora apenas no triunfo da Revolução Cubana, em 1959, que Cuba, apesar dos envidados esforços dos presidentes Dwight Eisenhower e John Kennedy em investir numa contra-revolução, conseguiu ser uma nação verdadeiramente independente. Outro exemplo fora Bill Clinton que, no ano de 1999, aumentou a proibição comercial entre as duas nações ao limitar as comercializações de filiais estrangeiras de empresas americanas com Cuba em setecentos milhões de dólares por ano. Com a ampliação do esquema de interdição, o embargo a Cuba é considerado um dos mais longos do mundo contemporâneo.

Dessa maneira, o conceito de imperialismo discorrido por Lênin busca dar luz às diferenças e conflitos horizontais entre Estados e seu o caráter próprio da luta de classes, indo além das perspectivas de Marx. Nesse sentido, os antagonismos de classe e dos Estados nacionais se cruzam no que seria a fase superior do capitalismo: o movimento de expansão do capital monopolista e, consequentemente, de internacionalização das relações sociais do modo de produção capitalistas. Portanto, a teoria leninista do imperialismo tenderá a privilegiar as contradições horizontais no plano internacional sobre os antagonismos internos de classe no que se refere ao papel de motor do movimento revolucionário mundial.

A teoria do Sistema-Mundo de Immanuel Wallerstein

Immanuel Wallerstein foi um sociólogo estadunidense de cunho marxista que elaborou diversas críticas ao sistema capitalista, principalmente no que tange ao colonialismo africano e indiano.

Wallerstein se tornou um nome de relevância nos estudos sobre o marxismo desde sua recusa da noção de Terceiro Mundo. O autor argumentava que apenas existe um mundo, articulado por um complexo sistema de trocas econômicas caracterizado pela dicotomia entre capital e trabalho e a acumulação de capital entre Estados-nação, num equilíbrio sempre ameaçado por fricções internas. E é neste ponto que se origina a teoria do sistema-mundo.

A premissa teórica gira em torno de uma existente preocupação com o desenvolvimento desigual que caracteriza o capitalismo global e as estruturas de dominação decorrentes dele. A elaboração do sistema-mundo seria pelo qual Wallerstein trata o sistema internacional como uma única estrutura integrada, econômica e politicamente, sob a lógica da acumulação capitalista. Isso porque esse sistema-mundo é regido por leis de movimento que levam à exploração das economias mais pobres pelas economias centrais.

Não obstante, Wallerstein foca nas estruturas do sistema-mundo, como o processo de acumulação de capital organizado pelo espaço e tempo. Ao longo da configuração histórica do mundo, é criada uma organização espacial do sistema-mundo, formada de acordo com a Divisão Internacional do Trabalho e a concentração de renda. Assim, os Estados se caracterizam de três formas:

  • o centro, que concentra as atividades econômicas mais intensivas em capital, mais complexas e sofisticadas tecnologicamente e que agregam mais valor;
  • a semiperiferia tem um papel intermediário e possui traços de ambas divisões, os países registram certos níveis de industrialização e produtos menos sofisticados tecnologicamente. Economicamente são estáveis, mas ainda dependentes, especialmente de capital e tecnologia;
  • e a periferia, caracterizada por se especializar na produção de bens primários de baixo valor agregado e intensivas em mão de obra. A economia é, geralmente, pouco diversificada e extremamente dependente de exportações de produtos primários. Politicamente, a periferia é caracterizada como Estados fracos.

As três áreas do sistema mundial capitalista formam uma hierarquia de poder tanto econômico quanto político. Os países do centro exercem sua dominação sobre a semiperiferia e a periferia, seja por meio da força, quando necessário, ou das alianças com as burguesias locais dependentes do mercado mundial.

Uma perfeita ilustração seria a Operação Condor, uma aliança político-militar entre os setores da burguesia sul-americana e os Estados Unidos, coordenando a eliminação de líderes socialistas em meio a Guerra Fria, que perdurou até as redemocratizações. O uso não somente da força, mas de uma alternativa bélica, fora utilizada contra o conjunto de movimentos e militantes revolucionários que se espalhavam pela América do Sul, gerando a tortura, morte e desaparecimento de milhares de homens e mulheres sul-americanos.

A semiperiferia desempenha um papel importante porque representa a possibilidade de ascensão dos países pobres a um patamar mais elevado de renda, via industrialização. Nesse sentido, a semiperiferia contribui para moderar as contradições entre centro e periferia, muitas vezes assumindo o papel de ascendência política sobre os países mais pobres. O Brasil representa, nessa perspectiva, um exemplo claro de país semiperiférico e muitos dos críticos da sua política externa apontam para o papel de moderação de instabilidade política na América do Sul como instrumental para a manutenção da ordem no capitalismo contemporâneo.

Portanto, a teoria do sistema-mundo tem o objetivo de combinar a análise marxista das contradições capitalistas com a dimensão política do sistema internacional. Apesar em ambas teorias o Estado não ser a questão central, mas as classes sociais, ainda se reconhece a importância dos Estados nacionais enquanto atores políticos ativos. A análise central, logo, será voltada para a preocupação com os problemas da desigualdade e da exploração decorrente do sistema capitalista. No cenário global hodierno, a América Latina se encontra permeada pelos ventos do reacionarismo e do fascismo, em função das elites burguesas nacionais e transnacionais.

REFERÊNCIAS

Boucher, D. Political Theories of International Relations: From Thucydidies to the Present. Oxford: Oxford University Press, 1998. Burchill, S.; L. Andrew (Eds.). Theories of International Relations. Nova York: St. Martin’s Press, 1996.

Kubálková, V.; Cruickshank, A. Marxism and International Relations. Oxford: Oxford University Press, 1989.

Lênin, V. I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1985.

Linklater, A. Beyond Realism and Marxism: Critical Theory and International Relations. Londres: Macmillan, 1990.

Pontes Nogueira, João; Messari, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro, Elsevier, 2005.

Wallerstein, I. The Essential Wallerstein. Nova York: The New Press, 2000.

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