Women On Waves: o “Cavalo de Tróia Marinho”

Conheça a ajuda humanitária às mulheres que não tem acesso ao aborto, conhecida como o “Cavalo de Tróia” marinho, que realiza o procedimento seguro em alto mar

Giulia Cortazio
CARPAS
11 min readJan 26, 2023

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A questão é: como realizar um aborto seguro com acompanhamento médico se seu país criminaliza este ato?

A resposta veio da auspiciosa Dra. Rebecca Gomperts: em águas internacionais.

À primeira vista, a ideia de realizar um aborto em alto mar pode parecer algo perigoso e inadequado, mas, colocado em contexto, se trata de uma ideia engenhosa e revolucionária que já beneficiou milhares de mulheres nos últimos vinte anos. A estimativa da Organização Mundial da Saúde é de que 53 milhões de abortos são realizados a cada ano, no entanto entende-se que cerca de 20 milhões desses são feitos em condiçoes ilegais. Portanto, tão perigosos que resultam na morte de milhares de mulheres saudáveis anualmente.

a imagem mostra um desenho de um barco em vermelho e azul com a inscrição “women on waves” na lateral
Women on Waves (Ilustração: Marina Mota/Fonte: gerador.eu)

É importante lembrar da realidade material do mundo, já que a criminalização da prática abortiva não importa, de maneira alguma, na necessária diminuição da conduta. Esse ato continuará a ser realizado de maneira insegura por mulheres que sofrem com a gravidez indesejada.

O número que abarca o assunto encontra-se na casa dos milhões, são tantas mulheres impedidas ano após ano de terem voz sobre uma experiência que as levou à beira da morte, desnecessariamente.

O aborto em um centro médico legalizado é um procedimento mais seguro do que ingerir uma injeção de penicilina, viagra ou até mesmo um parto. E, com certeza, mais seguros que um cabide e a alternativa, todos sabem, são os cabides.

Ou seja, milhões de pessoas são obrigadas a passar por processos de aborto clandestino isoladas, envergonhadas, transbordadas de culpa e dor física, vivendo um luto proibido, apenas por caprichos de um Estado vilmente governado por homens dotados do poder de decisão extremamente impactante para a vida de meninas e mulheres em todo o mundo.

Em resposta a essas mortes desnecessárias e violações aos direitos humanos das mulheres, a médica ginecologista ativista radicada em Amsterdã, Rebecca Gomperts — eleita uma das mulheres do ano de 2022 pela revista Glamour — , idealizou a criação da Organização Não Governamental (ONG) “Women on Waves” (WoW) cujo a tradução livre seria “Mulheres nas Ondas” — um nome curioso para se tratar de um tópico tão duro como o aborto, mas que se explica pela abordagem criada para driblar a problemática das diferentes leis que criminalizam o aborto mundo afora. Em águas internacionais (alto-mar), um navio responde às diretrizes legais do país da bandeira que arvora. Neste caso, temos a bandeira da Holanda, país em que o aborto não é criminalizado. De acordo com a lei holandesa, o aborto é legal para salvar a vida da gestante, preservar a saúde física e mental, casos de estupro ou incesto e por razões econômicas ou sociais.

O principal método abortivo realizado na embarcação é o medicamentoso, pela ingestão do Mifepristone e o Misoprostol, medicamentos que estão na lista da Organização Mundial de Saúde de Medicamentos Essenciais desde 2005.

fotografia da Dra. Rebecca Gomperts em uma sala médica, ela esta trajada com um agasalho marrom, tem olhos azuis e cabelo médio castanho.
Gomperts on board the Dutch clinic ship Sea of Change in 2001. The ship was preparing for a trip to Ireland. Photograph: Jerry Lampen/REUTER

Com uma onda de inovações, a ONG representou grandes avanços na agenda humanitária, mas criou também muitos reflexos simbólicos, pois se trata da chance de uma mulher, subjugada por um governo como uma “pessoa adulta incapaz de tomar decisões sobre seu próprio corpo”, abandonar a opressão arbitrária e condenatória de homens que criam e ditam leis.

Ao mesmo tempo em que dados da “Pesquisa Nacional de Aborto” mostram que mais de meio milhão de pessoas no Brasil recorreram ao aborto ilegal em 2016, o site da ONG humanitária no Brasil aparece indisponível. Já em 2018, o Ministério da Saúde afirmou que esse número poderia chegar a mais de um milhão.

“Aborto só será votado passando por cima do meu cadáver”

Fala de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ex-presidente da Câmara dos Deputados do Brasil

No dia 03 de agosto de 2018, dados foram apresentados ao Supremo Tribunal Federal na audiência pública sobre o aborto realizada pela fundadora da Women on Waves, a médica Rebecca Gomperts e a advogada e Coordenadora de Projetos da ONG, Letícia Zenevich, justificaram a ampla necessidade de aborto médico no Brasil, alegando que mulheres brasileiras seguem sendo criminalizadas por buscar seu direito à saúde, ao planejamento familiar, aos avanços da ciência, à igualdade e a não discriminação.

É válido citar que em janeiro de 2023, o governo Lula anunciou a sua retirada de uma aliança antiaborto liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, a chamada Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família.

três pessoas pintam uma parede branca com a frase “aborto seguro” seguido de um número telefônico
FOTO DE DIANA WHITTEN E CEDRIC ZOENEN

Em março de 2022 foi declarado pela Organização Mundial da Saúde OMS, que:

“Anualmente, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas com complicações causadas por abortos inseguros.”

com o destaque inferido pela Nações Unidas de que quase todas as mortes causadas por “complicações no procedimento feito de forma inadequada”, portanto são mortes “que poderiam ser evitadas”.

Durante a pesquisa de Mayana Rombo Prates, advogada brasileira, que discorre em sua monografia acerca do site Woman on Waves, é destacado a fala de Rebecca Gromperts sobre o protocolo adotado pela Women on Waves:

“após o procedimento abortivo são realizados cuidados de seguimento: a mulher deve retornar para embarcação após três a sete dias para uma varredura de ultrassom para garantir que o aborto esteja completo. Caso o aborto não esteja completo ou no caso muito improvável de uma gravidez em curso, a ONG estará equipada para realizar um vácuo aspiração ou curetagem, inclusive no mar. Complicações são raras, porém, caso aconteça serão capazes de tratá-las, trabalhando em conjunto sempre que possível, com médicos locais. Em última hipótese, existe a possibilidade de navegar com a mulher até a Holanda para realizar o procedimento. Sempre haverá equipe especializada a bordo com padrões de cuidados, conforme estipulado para clínicas especializadas em interrupção de gravidez na Holanda.”

foto do navio da ONG Women on waves em alto mar
http://www.womenonwaves.org/en/page/483/in-collection/2582/portugal-2004

ESSA HISTÓRIA RENDEU UM DOCUMENTÁRIO

Disponível em https://vesselthefilm.com

Produzido por Diana Whitten durante 7 anos acompanhando o trabalho da ONG, um belo documentário premiado nasceu ao registrar um pouco da história de WoW. Ele está disponível aqui e você pode assistir “Vessel” legalmente no Filmzie gratuitamente com comerciais nos intervalos, uma versão em espanhol também aparece disponível no YouTube. A obra também já esteve em várias plataformas de streaming e foi exibido em mais de 350 festivais. A importância além de histórico-bibliográfica deste material é acentuada pela fala da própria Dra. Gomperts, ja que, durante o filme, é explicado em vídeo como realizar um aborto de forma não insegura.

Cartaz por Empty The Sunrise

OS TENTÁCULOS

A organização Women on Web opera em dezessete idiomas, inclusive o português.

No ano de 2005 a médica, PhD, fundadora e diretora da Women on Waves intensificou as ramificações de seu projeto criando o site Women on Web, uma linha de contato direta que oferece ajuda humanitária através da internet e do telefone, baseando-se no direito à informação. O fundamento para a ONG é que todas tenham acesso a um serviço que considera fundamental, independentemente da nacionalidade, idade, raça, ideologia ou credo.

O serviço oferecido pelo site Women on Web é obtido através do preenchimento de uma consulta médica virtual em que cada mulher responde 25 questões sobre sua saúde. Após a consulta ser aprovada por um médico, um pacote contendo um kit de Mifepristona e Misoprostol é enviado e chega dentro de algumas semanas até a residência da mulher.

É constatado também em 2018 que a Women on Waves recebe em média 811 e-mails por mês de mulheres brasileiras, tornando o Brasil o terceiro país que mais procura os serviços da ONG, ficando atrás da Irlanda e da Polônia.

A Organização Women on Web opera em dezessete idiomas, inclusive o português. Conta com vídeos explicativos de como funciona um aborto, o vídeo contou com o trabalho de uma artista brasileira e tem tradução até para o dialeto Yorubá. Segundo o próprio site, ratificado pela advogada brasileira Letícia Zenevich, em 2018, a cada mês, o Women on Web recebeu aproximadamente 10 mil e-mails de todas as partes do mundo. Em mais de uma década de atuação, a organização já respondeu a e-mails de mais de meio milhão de mulheres no mundo inteiro, vindos de países como o Brasil, Sudão, Chile, Arábia Saudita e Irã.

Foto com fundo azul e 7 comprimidos brancos dispostos no formato de um hexágono
https://aidaccess.org/en/page/202312/media-about-aid-access

NAVIO DO ABORTO

O “Navio do Aborto”, como ficou conhecido é uma embarcação marítima semelhante as habituais, mas conta com uma estrutura médica móvel aprovada para realizar o procedimento de aborto seguro em alto-mar.

A ONG parece dotada de uma criatividade sem limites para dobrar as mais variadas restrições impostas, já que inicialmente, por contenção da normativa do ministério dos transportes holandesa, WoW precisou da ajuda do escultor Joep van Lieshout, responsável pelo design da clínica no navio que transformou, literalmente, a embarcação numa obra de arte — contornando a fiscalização imposta pelas autoridades holandesas.

FOTO: Paulo Cunha/Lusa Women on Waves clinic ship in international waters, off the coast of Portugal, in 2004.

OFENSIVA DE NAVIOS DE GUERRA

O revés veio a galope já que o escândalo serviu de combustível para o incendioso debate acerca do tema e, em menos de dois anos depois do ocorrido, o aborto foi descriminalizado em Portugal.

A primeira ação da ONG poderia ser considerada falha, já que nenhum aborto foi realizado pela equipe na ida a Belfast — Irlanda, no entanto, foi possível constatar o alcance da ação, já que, durante cinco dias em que o navio esteve no porto irlandês, prestou esclarecimentos de saúde reprodutiva, contracepção e métodos abortivos à mais de 300 mulheres. Além disso, centenas de curiosos visitaram o local, rendendo aos ativistas participação em entrevistas, workshops e talk-shows que abordaram extensivamente a proposta da WoW.

É constatado pela equipe de WoW que a prática do aborto dentro do navio em si não é o objetivo final da ONG, a mensagem deve navegar para muito além das mulheres que aguardavam na orla, em Portugal, a Dra. Gomperts ensinou o passo-a-passo de todo o processo abortivo em uma entrevista televisionada em Rede Nacional.

“Munida de um robô controlado à distância, a ONG controlou, de Amsterdã, o robô responsável por entregar pílulas abortivas a mulheres que realizavam uma manifestação, em prol da modificação do tratamento legal ao aborto na Irlanda do Norte.”

Um drone paira pelo ar carregando caixas com comprimidos abortivos

Outro caso demonstrativo foi durante a ida da embarcação à Polônia, onde as ativistas foram recebidas ao coro de grupos anti-aborto gritando frases como: “assassinas de bebês poloneses” e “nazistas”. O que ninguém esperava veio numa pesquisa promovida pela “Centrum Banania Opinii Spolecznej” da Polônia, que mostrou uma variação de 17% no posicionamento da população em prol do aborto, isto é, a proporção de poloneses que apoiavam a legalização do aborto passou de 44% para 61% após a visita da WoW.

Mas talvez, a expedição mais emblemática da ONG tenha sido em sua viagem a Portugal, onde seu pequeno navio médico foi recebido por gigantes navios de guerra portugueses, a ordem veio do Ministro da Defesa de Portugal, que quis impedir a ancoragem da embarcação.

Porém isso só significou outra vitória para WoW, já que em 2009, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (ECHR) determinou que o artigo 1064 da convenção, que garante a liberdade de expressão, foi violado pelo Governo Português nesta ocasião. O revés veio a galope já que o escândalo serviu de combustível para o incendioso debate acerca do tema e, em menos de dois anos depois do ocorrido, o aborto foi descriminalizado em Portugal.

https://news.un.org/pt/story/2022/03/1782252#:~:text=Anualmente%2C%2039%20mil%20mulheres%20morrem,recomenda%C3%A7%C3%B5es%20para%20cuidados%20no%20procedimento.

O LARGO TERRITÓRIO MARÍTIMO

De acordo com Gilbertoni, o direito à “Passagem Inocente” é possivelmente a maior limitação da soberania Estatal sobre o seu mar territorial.

Dentro do universo de estudos das Relações internacionais apesar de tantos retratos de políticos apertando as mãos e criando novos contratos o assunto guia é sempre sob a máxima de que os Estados têm o direito soberano, por isso cada um toma decisões correspondentes às suas respectivas nações, o pacto de não interferência prevê a independência e legitimidade de cada governo, e, às vezes, países que guerreiam entre si sentam lado a lado em conferências mundiais.

Contudo, é preciso levar em conta que cerca de 71% da superfície terrestre é revestida pelas águas dos oceanos, sendo irrefutável que o mar é o maior meio biológico do planeta chamado “Terra”. O que nos leva a obviedade de que as águas também são um campo de batalha permeado por desejos e guerras. As disputas no meio internacional são tão frágeis quanto o temperamento dos homens e seus pequenos reinos, por isso, a ampliação dos interesses conjunta à capacidade de explorar cada vez mais recursos, trouxe também algumas determinações internacionais.

Em 1958, em Genebra, novos acordos foram traçados e os dispositivos legais de cada Estado a respeito de suas costas marítimas expandiram, os países se comprometeram com seu direito soberano sobre o mar que banha suas costas até uma distância de 200 milhas náuticas. Determinações desse tipo são exatamente o que dita se uma zona petrolífera pode ou não ser propriedade de um país, por exemplo.

Durante a convenção de Montego Bay — UNCLOS, 1982 — foi assignado o estatuto dos navios, entre vários artigos o 92 se destaca:

ARTIGO 92 — Estatuto dos navios

1. Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado.

De acordo com Gilbertoni, o direito à “Passagem Inocente” é possivelmente a maior limitação da soberania Estatal sobre o seu mar territorial. E é exatamente por essa brecha que Women on waves navega, a postura internacional determina que o “Navio do Aborto” por si só, não viola a paz, não apresentando ameaça à segurança do Estado.

JOGO DE SOMA NÃO ZERO

Compassivamente, uma mulher pode dar a volta ao mundo e adentrar as mais variadas facetas para enfrentar centenas de legislações diferentes entre si, mas em quase todas ela o fez. Com muita dignidade, sem mortes, e com zero violência a ONG enfrenta, há mais de vinte anos, o mais incendiário dos debates a respeito do sexo feminino: o direito ao aborto.

A grande ideia endossada por Rebecca Gomperts e outros ativistas pelos direitos reprodutivos das mulheres não termina por aqui, e seu começo tampouco é correspondente aos dias atuais. Por anos, as mulheres disputaram seu direito de controle sobre seu próprio corpo — e ainda o fazem e farão, mas tem força notar que assim como o mundo parece criado e ordenado pelos homens, seu jogo é imperfeito e dentro dele mesmo conseguimos algumas vitórias. No mais, fica perceptível que com um pouco de informação, a camada social de um país parece corresponder com ideais libertários.

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Giulia Cortazio
CARPAS
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Bacharel em relações internacionais porque achei se tratar de outros tipos de relações..