A Marca de Caim

Atheris L.
CarpeNoctem
Published in
6 min readMay 28, 2021

“Nós, que carregamos a marca, podemos muito bem ser considerados pelo resto do mundo como estranhos, até mesmo insanos e perigosos. Nós tínhamos acordado, ou estávamos despertando” – Demian

Por incrível que pareça esse termo não se referem a nada espiritual – ao menos não inicialmente – mas é tão recorrente em algumas leituras, e tão significativo e intimista para mim que achei válido deixar um texto no mundo sobre ele mesmo que ninguém leia. Então, se você está lendo isso, eu acredito que o diabo se esconde nos detalhes e por algum motivo você caiu aqui, espero que algo tão meu encontre um pedaço em você.

Disclaimer: esse é um dos textos onde a autora está muito animada com algo bastante significativo para si mesma e trata isso como se descobrisse o mundo, pode ser que não faça muito sentido, prossiga por conta própria e boa viajem.

Ler toma sempre um pedaço da minha vida muito maior do que eu esperava, seja ler um livro, e-book ou virar a noite lendo páginas e paginas de um site interessante. Tudo isso fez com que ao longo dos anos eu acumulasse certa quantidade de “conhecimentos-particularmente-inúteis” que em qualquer mínima conversa ou posterior leitura faça meu cérebro confuso e ansioso percorrer caminhos únicos e estranhos. Um desses “conhecimentos” – ou referenciais que eu guardo a anos e anos – é a expressão “Marca de Cain” que, coincidência ou não, sempre acabo encontrando novamente em outros livros e simbologias espirituais.

A ideia de marca de Cain sempre foi a minha favorita, de longe, e para contextualizar ela se refere a figura bíblica de Caim, irmão de Abel, o primeiro assassino que recebe de Deus uma marca na fronte que o diferencia de todos os outros.

Inicialmente, pensar em Cain, que assassinou o próprio irmão, como necessário ou até admirável da situação sooa quase absurdo, não é? Pelo menos foi assim que inicialmente soou para mim e para Emil Sinclair, protagonista de Demian, livro que me introduziu a passagem natural de todos pelos “Cain” e de sua linhagem de pessoas marcadas. Porém, hoje, eu também te afirmo que a Marca de Cain não é um mal.

Espero que todo mundo, ou pelo menos você que está lendo, já tenha passado por um momento durante a infância ou adolescência em que cometeu conscientemente uma “maldade” pela primeira vez e ao mesmo tempo que tentava compreender os sentimentos gostou de ter cometido tal ato. Como um pequeno choque de realidade em que você percebe que ao cometer um pecado não é um ser maravilhoso e puro, um divisor de águas na sua vida, um sair do mundo luminoso e se tornar Cain.

“E eu, que já era Caim e levava a marca na fronte, imaginara naquele instante exato que o sinal não era um estigma infamante, mas antes um distintivo e que minha maldade e infelicidade me faziam superior a meu pai, superior aos homens bons e piedosos.” – Demian

Receber a marca de Cain se torna uma analogia para compreender nosso lado ruim e visceral como algo natural, o pecado necessário, parte da nossa “linhagem”.

Não no sentido de que cometer assassinatos como Cain seja algo bom, não é esse o ponto. Mas sim, compreender que o mundo feito apenas de luz e boas maneiras que provavelmente presenciamos e fomos educados na infância com os pais (caso você, assim como eu, tenha crescido em casa católica) e ouvimos falar através de religiões é ilusório, falso e vai contra nossa verdadeira natureza que é a compreensão de que algo verdadeiramente ruim, instintivo e visceral que se agrada com o que condenam como pecado nos habita. Compreender isso é se tornar diferente dos que buscam constantemente o mundo de luz, sempre tentando retornar a o estado de paz antes de provar o fruto do bem e do mal ao invés abraçar a marca do primeiro assassino na fronte como nós.

Aqueles que compreendem que o bem e o mal, assim como o pecado, são intrínsecos e trazem o conhecimento trazem a marca de Caim e mesmo “marcados” e vistos como transgressores, são livres.

Portanto, o que quero dizer é que a marca que Caim carregava não era uma maldição de Deus, era a representação da sua liberdade e iluminação.

Albrecht Dürer, Cain Killing Abel, 1511

Lembra que eu disse lá no começo que “marca de Caim” não tem nada haver com espiritualidade inicialmente? Então… o problema é que, a pessoa que escreve isso está afundada em espiritualidade até o pescoço, e por mais esforço que faça para manter esse texto em: uma-explicação-básica-da-marca-de-cain-como-um-rito-de-iluminação-natural, não conseguiria, porque existem caminhos e crenças espirituais em que é reverenciado como analogia aqueles que carregam o sangue-bruxo, os descendentes de Caim.

Consegue imaginar a alegria da autora durante essa “descoberta?” (avisei que seria um daqueles textos de pessoas tratando coisas comuns como a maior descoberta de suas vidas).

No Antigo Testamento, o ferreiro e caçador Tubal Cain é considerado descendente de Caim, o “primeiro assassino” agricultor e construtor de cidades a quem também se atribui a invenção de pesos e medidas. Nas tradições esotéricas, supunha-se que Caim era o resultado de uma ligação proibida entre Eva e Samael (Lúcifer). Tubal Cain também é uma figura muito significativa na Maçonaria Esotérica e isso também pode estar relacionado com a bruxaria tradicional, pois foi sugerido que elas influenciavam uma à outra

– Liddell, 1994

Em alguns caminhos da bruxaria tradicional, como afirmado por Liddell, e da maçonaria – como a maioria dos autores acreditam que foi a iniciadora dessa corrente cainista que a bruxaria tradicional e sabática herdou – a bruxa como aquela que tem uma linhagem diferente dos demais, explicando sua natureza disruptiva, são relativamente comuns em diversas correntes.

Um desses caminhos da bruxaria tradicional que inclui a crença da linhagem de Caim é o Cochranianismo, corrente de bruxaria tradicional fundada em 1951 pelo bruxo inglês Robert Cochrane, em que o Deus das bruxas neo-pagãs recebe vários nomes: Tubal Caim, Brân, Wayland e Herne. Tubal Cain (ou Qáyin) é descendente de Caim, o primeiro assassino, e portanto, aqueles denominados bruxos/bruxas teriam seu sangue-bruxo herdado do primeiro assassino, sendo assim uma linhagem transgressora.

Tem uma quantidade grande de aprofundamento e explicação sobre cainismo na bruxaria tradicional e outros sincretismos cristãos utilizados como “códigos” para estados gnosticismo de iluminação (assim como a própria ideia de sangue-bruxo herdado de Caim que falamos um pouco aqui) e portanto eu acabaria escrevendo outro texto me aprofundado nessa perspectiva do sangue-bruxo e gnosticismo luciferiano já que pretendo manter a linha “introdutória” nesse. Seria uma possível parte dois do texto, talvez. Porém, minha intenção era apenas apresentar o termo e parte de sua simbologia de transmutação e transgressão que não precisam estar necessariamente ligados a bruxaria ou espiritualidade.

“A Arte se manifesta no sangue e no espírito dos que são indomados, que não se submetem ao julgamento de qualquer um, a Arte vive naqueles que reconhecem a beleza no caos monstruoso. Bruxas não domesticam sua fera interior, não limitam sua liberdade, enfim, bruxas são plenas em si mesmas e, portanto, não deixam na mão de outros o seu poder.” – Michael Nefer

Espero que esse texto tenha, em algum nível, te feito enxergar a beleza, necessidade e poder por trás de tua transgressão. Honre a marca que você carrega.

Fontes:

  • A Arte dos Indomados – Nicholaj de Matos
  • Demian – Hermann Hersse
  • The Children of Cain – Michael Howard
  • Os Pilares de Tubalcain, a tradição luciferiana – Michael Howard

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Atheris L.
CarpeNoctem

Feiticeira alinhada ao caoismo com interesse em formas de magia relacionadas a morte e cultura moderna. Meu objetivo é conseguir difundir conhecimento.