Magia Feérica — Fadas e a Morte

Atheris L.
CarpeNoctem
Published in
6 min readMar 26, 2021

Se eu te perguntar agora o que é "o outro lado", me referindo ao pós morte, que tipo de coisa vem automaticamente na sua cabeça? Respostas como submundo, plano astral, céu, inferno podem ser os pensamentos mais comuns diante da pergunta. E partindo da ideia de que existe um outro lado, um possível entre-mundo permeado de outras criaturas que só podem ser vistas pela segunda visão e para onde nossa alma será levada após a morte, é que teceremos uma possível conexão inicialmente não-tão-obvia entre as brincalhonas fadas e o reino dos mortos.

É importante começarmos lembrando que a tradição feerica não é homogênea e que a crença entre uma possível ligação entre os mortos e as fadas pode não ser presente em todas as tradições e regiões que seguem o caminho, já que a ideia de fada pode ser atribuída a várias crenças. Além de que a atribuição de fadas como mortos não é uma sólida convicção entre folcloristas e mitologos. O propósito desse texto é apenas tecer uma possível relação que possa facilitar trabalhos mágicos que interseccionam ambos os caminhos.

John Bauer (1913)

A ideia de que o mundo dos mortos e o mundo as fadas se sobrepõem é igualmente sutil e comum de se observar. Folcloristas ja retrataram fadas de diversas maneiras como: os filhos de Eva, uma espécie de demônio, uma espécie independente, uma raça mais velha de humanos, anjos caídos e o que nos interessa nesse texto, os mortos indignos.

Não que a crença diga que todos que morreram se tornem fadas ou que todas as fadas sejam falecidos ancestrais, porém a morte está viva e presente nas crenças feéricas. E essa presença foi bem abordada por WY Evans-Wentz em “The Fairy-Faith in Celtic Countries” publicação onde o mesmo retrata diversas tradições e crenças que envolvem fadas que ele colecionou durante viajem e pesquisa em países celtas como Grã Bretanha, Irlanda e Bretanha. Em diversos momentos Evans demonstra a força da crença de que feéricos são ancestrais falecidos.

“Os idosos do condado de Armagh acreditam seriamente que as fadas são os espíritos dos mortos; e eles dizem que se você tem muitos amigos falecidos, você tem muitos amigos feericos, ou se você tem muitos inimigos mortos, você tem muitas fadas procurando te fazer mal.” WY Evans-Wentz

E a ideia de fadas como mortos com uma vida incompleta ou do reino das fadas (elfhame) como uma parte do ciclo de reencarnações também derivou de diversos fatores comuns em mitos, como histórias de fadas semelhantes a de fantasmas, a ideia de que não se deve comer no reino feérico do mesmo modo que não se deve comer a comida dos mortos, o termo islandês Sídhe que nos remota as fadas como seres que habitam abaixo da terra em um entre-mundos e as crenças populares citadas anteriormente.

Alguns exemplos dessas intersecções são os contos de Chauser que colocam Proserpina (equivalente a Perséfone grega) como rainha das fadas antes de submergir ao submundo, adquirindo uma ambivalência entre o mundo inferior e o reino das fadas após provar o fruto do outro-lado. A concepção de que as fadas roubam humanos para servirem a seu reino fazendo com que provém da comida é, provavelmente, um conceito comum para você e assim como nessa “versão” do mito de Perséfone e Hades é comum também que a prova do fruto do reino dos mortos o faz ficar preso permanente ao local.

Outro exemplo da ligação entre mortos e fadas são alguns mitos, como os das Banshees, consideradas mensageiras da morte; essas fadas, através de seus estridentes gritos que podiam ser ouvidos de quilômetros de distância, anunciavam a morte de um membro da família. Algumas versões do mito afirmam que Banshees já foram mulheres vivas cruelmente assassinadas.

A crença nas Banshees são uma clara demonstração de que os conceitos de fantasma e feérico se misturam diversas vezes, com feericos assumindo em determinados casos a concepção de ser cruelmente assassinado ou cuja morte foi indigna.

Faeries, Brian froud and Alan Lee, 1979

Evans-wentz encontrou também uma forte crença e contos populares na Bretanha, onde os feéricos eram conhecidas como “fées” ou “corrigans”, e geralmente eram entendidas como espíritos ancestrais alertando ou predizendo a morte.

“As semelhanças impressionantes que aparecem constantemente em nossa evidência entre as fadas aparições comuns e os fantasmas dos mortos mostram que muitas vezes não há diferença essencial e às vezes não distinguível entre essas duas ordens de seres, nem entre o mundo dos mortos e faerieland.” WY Evans-Wentz

Análises como a feita em “A Arte dos Indomados “ de Nicholaj Frisvold apresentam também possíveis similaridades entre Elfhame e o Submundo tecendo juntamente analogias entre Daimons e Djins que concedem desejos através de acordos e habitam do outro-lado como os nossos queridos feéricos.

“Então isso significa que depois de morrer eu estarei dançando em Elfhame com um fae igual os dos livro e com asinhas rosas penduradas nas costas?! Ou que se me matarem agora eu viro algum tipo de fada que grita?!”

Não.

Quero dizer, quem sabe? Não tem como saber o que acontece após a morte, cada um com seu credo ou seu não-credo, porém, continuando no fio das fadas-sídhe-elfhame Nigel Jackson em seu livro de bruxaria tradicional “The Call of the Horned Piper” nos apresenta a seguinte visão sobre o reino das fadas e o ciclo de encarnações:

“De acordo com a doutrina interna de faery-faith, a alma post-mortem desce para Elfhame e entra no estado de Sidhe, peregrinando como uma fada no outro mundo enquanto aguarda os padrões cíclicos corretos que permitirão que seu renascimento terrestre ocorra, geralmente no corpo de um descendente clânico. Os espíritos dos mortos tornam-se assim misticamente unificados com o coração interno da terra, fundindo-se com locais específicos, como colinas ou árvores, pois o mundo das fadas é a dimensão espiritual inerente que existe oculta dentro da paisagem natural como sua realidade arquetípica interna. O ‘humano’ e o ‘faery’ são os dois pólos de nosso ser entre os quais oscilamos através de nossos ciclos transmigracionais de renascimentos, nossas incontáveis ​​desencarnações e encarnações. Em outras palavras, os Sidhe estamos esperando o nascimento na Terra-média e nós somos os Sidhe aguardando nosso retorno a Elfhame. A Arte das fadas está preocupada em recuperar a totalidade de nossa consciência, unindo nossas naturezas humana e faery e ativando a "Visão dos Dois Mundos" ou "Segunda Visão", a faculdade de vidência em transe e visão espiritual direta em Elfhame. Os mortos assim, tornam-se fadas entre as encarnações e certas almas no submundo podem, com o tempo, passar por uma metamorfose completa das fadas e não mais encarnar como seres humanos - estes são os ‘Homens Mestres’ do folclore escocês.”

E mais uma vez, tecer essa relação entre nós, a morte e os feéricos não tem o objetivo de reiterar as fantasias New-Era de que alguns de nós são escolhidos descendentes de fadas ou reencarnações das mesmas de modo que esses possam se reafirmar e amaciar o próprio ego. Se seguirmos o raciocínio de Nigel o reino das fadas pode ser apenas mais um destino da alma de milhares pessoas e não de uns poucos escolhidos. O objetivo é apenas apresentar algumas ideias ambíguas e ainda discutidas no caminho feérico sobre a morte e outros mundos.

“O único veredicto que parece razoável é que o Fairy-Faith pertence a uma doutrina de almas; ou seja, que Fairyland é um estado ou condição, reino ou lugar, muito parecido, senão o mesmo, em que os homens civilizados e incivilizados colocam as almas dos mortos em companhia de outros seres invisíveis, como deuses, demônios e todos os tipos de espíritos bons e maus. Não só os videntes celtas educados e não educados concebem o País das Fadas, mas vão muito mais longe e dizem que o País das Fadas realmente existe como um mundo invisível dentro do qual o mundo visível está imerso como uma ilha em um mundo-oceano inexplorado, e que é povoado por mais espécies de seres vivos do que este mundo, porque é incomparavelmente mais vasto e variado em suas possibilidades.”

Fontes:

  • The Fairy-Faith in Celtic Countries. W.Y. Evans-Wentz;
  • The Call of the Horned Piper. Nigel Jackson;
  • Fairy and Folk Tales of the Irish Peasantry. W. B. Yeats;
  • A Arte dos Indomados. Nicholaj De Mattos Frisvold.

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Atheris L.
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Feiticeira alinhada ao caoismo com interesse em formas de magia relacionadas a morte e cultura moderna. Meu objetivo é conseguir difundir conhecimento.