Magia com Tesouras!

Atheris L.
CarpeNoctem
Published in
7 min readFeb 11, 2022

Cresci quase uma vida inteira entre os panos e retalhos que minha avó costurava. Dentro do pequeno ateliê improvisado dela, um quarto pequeno antes usado como depósito, eu ouvi as melhores histórias e pude ver minha vó construir vestidos, saias e blusas, além de também desmanchar e desfazer diversos deles para transformar em outros. Hoje a imagem dela sentada em uma mesa com sua máquina, coleções de alfinetes e agulhas, além de sua tesoura velha favorita e diversos tipos de tecidos me lembra muito a carta d’O Mago no tarot. Definitivamente, dentro daquele ateliê de costura, minha vó era uma legítima maga, transmutando entre seus tecidos e dando vida a imaginação.

Assim como minha vó se sentia livre para se expressar através da costura em sua velhice, acredito que as artes mágicas são também espaço para inventar e construir aquilo que se deseja. Nesse espaço eu sou maga tanto quanto ela em seu ateliê e gostaria de aproveitar para falarmos sobre artefatos que podem se tornar comuns aos dois ambientes: tesouras.

As tesouras são cercadas de crenças próprias e dependendo da sua região já pode ter ouvindo ou aprendido algumas das “simpatias” clássicas com esse objeto.

Por exemplo:

• Colocar uma tesoura aberta embaixo do travesseiro para banir pesadelos;
• Colocar uma tesoura na frente da casa, embaixo do carpete para proteger de visitantes mal intencionados;
• Derrubar uma tesoura ou quebrá-la é grande mal agouro.

E por aí vai.

A tesoura, além de ser um artefato prático e comum também trás um conjunto de simbolismos, crenças e utilizações mágicas que podem ser úteis para além do básico cortar.

Aquilo que é separado pelas duas lâminas da tesoura não pode mais ser reatado, mesmo que se possa criar novas coisas, não será mais o mesmo. Por isso a tesoura é um material de transmutação, ela corta, elimina, desfaz e deixa que a energia tome outro caminho.

O seu propósito mais comum é o de corte, simbolizando um rompimento, uma finalização e também uma grande proteção.

É provável que a utilização de tesouras na magia carregue uma herança muito forte das crenças populares italianas, popularmente conhecida aqui por “stregheria” que não é um termo bem aceito pela própria comunidade mística e bruxa italiana, mas enfim, tradicionalmente a tesoura sempre foi vista como um amuleto de proteção capaz de cortar principalmente o “malocchio” (famoso mal-olhado) e afastar indivíduos e seres indesejados de alguém querido ou da residência.

“O mais clássico método de quebrar malocchio é enchendo um vasilha com água, onde se despeja um pouco de óleo, analisando o comportamento desse na água. Se o óleo se acumula em bolhas está tudo bem, se ele se espalha de uma maneira incomum e se mexe por muito tempo você foi vítima de mal olhado. Então pegue uma tesoura, de preferência de ferro, e faça como se estivesse cortando acima da vasilha todo mal colocado sob você (ou a pessoa que está sendo ajudada). Depois despeje a água com óleo em outra vasilha e analise como se comporta novamente; cortando quantas vezes for preciso.”

Existem variações desse simples, porém efetivo, ritual de corte, com alguns trazendo rezas a santos comuns da tradição italiana (ou santos nacionais mesmo) como parte do processo até outros que utilizam a base do ritual para cortar outras coisas que não apenas “mal olhado”.

Simbologia da Tesoura

Como já citei antes a tesoura tem uma simbologia bem clara: ela corta, transforma aquilo que toca e é usada a centenas de anos na criação de diversas coisas. Tesouras são antes de tudo um item comum desde sempre em todas as casas.
O outro lado da simbologia das tesoura, referente a proteção, é parte do seu material, de seu formato e também das lâminas.

Deu para perceber ao longo do texto o quanto tesouras abertas são utilizadas? Principalmente quando se trata de repelir e proteger?

Acreditasse que isso é por que, além do material que irei explicar logo depois, uma tesoura aberta remete a cruz, símbolo sagrado de proteção capaz de repelir todo tipo de má energia e mau espírito. Por isso, é comum tesouras serem colocadas abertas em portas e tapetes da frente de casa ou embaixo do travesseiro para afastar aquilo que não é desejado.
E lâminas também tem um significado bem claro. Além de corte, lâminas são também usadas para ferir, proteger e atacar. Na tesoura elas aparecem como duas espadas, prontas para desmanchar aquilo que se por no meio e tendo o símbolo das espadas ligado ao elemento ar e ao campo da mente, ela auxilia a proteger e dissolver aquilo que perturba a paz mental e intelecto.
Em resumo, uma tesoura é também uma cruz e duas lâminas e desse modo carrega suas simbologias e utilidades.

O Material

E agora, vamos falar sobre o material da tesoura, que inevitavelmente, agrega a sua utilização e por isso preferi dar uma enfoque maior.
Mas lembre-se que meu objetivo é apresentar um utensílio que pode ser facilmente encontrado e utilizado para fins mágico, naturalmente, hoje em dia é mais fácil de se encontrar tesouras com cabos de plástico ao invés das de ferro ou aço, então utilize aquilo que está ao seu alcance. Porém, se você tiver como, recomendo amplamente uma tesoura de material metálico, principalmente ferro/aço.

O ferro é associação ao fogo e ao ar, o que torna um dos mais importantes dos metais. Segundo os egípcios, o ferro era capaz de afastar os maus espíritos e em diversas tradições é amplamente usado como meio de afastar o mal e a má sorte além repelir fadas e demônios. Objetos feitos de ferro, como ferraduras e pregos, também são conhecidos por trazer a boa sorte e proteção de casas!

Então se você tiver como conseguir uma tesoura inteira de ferro ou aço isso vai alavancar ainda mais o seu trabalho mágico e permitir melhores cortes e proteção.

Tesoura no Paganismo!

Tesouras também são artefatos recorrentes na representação da divindade Aisa (ou Atropho), considerada tanto a mais rígida das Moiras [divindades gregas que representam o destino, geralmente representadas como As Tecelãs], como a representação única do destino inevitável.
Ela é a representação da morte, a mais velha das moiras, muitas vezes retratada, junto as suas irmãs, como tão poderosas quanto o próprio Zeus.

“Far other issues Aisa (Aesa, Fate) devised, nor recked of Zeus the Almighty, nor of none beside of the Immortals. Her unpitying soul cares naught what doom she spinneth with her thread inevitable, be it for men new-born or cities: all things wax and wane through her.”
Quintus Smyrnaeus, Fall of Troy 11. 272 ff :

Aisa ou Atrophos porta uma tesoura em suas mãos, dando fim a tudo que um dia foi iniciado nos fios do destino. Sendo a representação dos finais, da morte e do início de novos ciclos, mais poderosa do que qualquer outro Deus é também uma divindade ctônica.

Tesouras são artefatos também comuns, e muitas vezes levados ao altar, em caminhos modernos de bruxaria. Encontrei sua utilização muito mais ressaltada no caminho chamado de “cottage witchcraft”, voltada a uma bruxaria do campo e da casa, repleta de magia popular, principalmente do folclore e tradição europeu, em que utilitários da casa — como tesouras e xícaras — são os protagonistas nas magias e altares! Muitas vezes as tesouras são usadas de substitutas ao tradicional athane ou boline (mais comum e na minha opinião mais coerente!) nessa prática moderna.

De qualquer forma, se for usada para fins mágicos – e principalmente se for levada ao altar! – é importante que você consiga uma tesoura nunca usada (ou que purifique uma) e consagre apenas para tal! Lembre-se que o altar é um espaço sagrado e mesmo que você inclua um objeto considerado mundano esse deve ter função mágica definida atraves de uma consagração.

Porém, levando ao altar ou não eu recomendo particularmente ter uma tesoura consagrada para rituais ou intentos mágicos específicos se você desejar utilizá-la. Não recomendo tentar abrir um círculo mágico, por exemplo, com uma tesoura de plástico que você achou na gaveta mais próxima. E como cortar um intento ruim com uma tesoura suja e abandonada? Magia precisa, antes de tudo, fazer sentido no seu inconsciente!

“I’m working on my own life story. I don’t mean I’m putting it together; no, I’m taking it apart. If you’d wanted the narrative line you should have asked earlier, when I still knew everything and was more than willing to tell. That was before I discovered the virtues of scissors.”

– Margaret Atwood

Por fim, depois de analisarmos simbologias, utilizações, materiais e até um método comum de corte/banimento com tesoura espero que esse artefato de algum modo possa ser incluído na sua prática magia e ainda mais explorado da maneira que sua criatividade permitir!

Mais uma vez, obrigada por ler e acompanhar até aqui mais um texto. Espero trazer ainda mais pequenas análises como essa para artefatos comuns como cordas, agulhas e chaves! Quem sabe o que a noite espera? Até uma próxima oportunidade.

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“Nunca se esqueça que a vida é curta, aproveite a noite.”

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Atheris L.
CarpeNoctem

Feiticeira alinhada ao caoismo com interesse em formas de magia relacionadas a morte e cultura moderna. Meu objetivo é conseguir difundir conhecimento.