Minha Experiência com Servidores Fantasmas

como eu criei e matei meus próprios demônios.

Atheris L.
CarpeNoctem
8 min readMar 26, 2022

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Arte por @loputyn

Eu não costumo dividir esse tipo de experiência publicamente porque, além de extremamente pessoal, falar sobre caoismo sempre de deixa com um ar de maluca (e não nego que eu talvez seja), porém dessa vez resolvi engolir um pouco da minha vergonha de parecer a lunática que sou para apresentar uma chave mágica que tem me auxiliado a resolver, compreender e aceitar em mim diversos processos que passaram anos sob um véu.
Então o que é a possibilidade de alguns me acharem uma maluca se posso dividir uma experiência que além de divertida tem sido muito útil?

E se você for um pouco mais cético ou não for muito fã de magia do caos, tente ver todo esse texto como um processo de escrita criativa, funciona maravilhosamente bem até certo grau! O diabo se esconde nos detalhes mesmo.

O que são Servidores Fantasmas?

Servidor fantasma é um termo (ou classificação) criado pela escritora brasileira Wanju Duli em um dos seus livros sobre caoismo.

Quem me segue em outras redes sociais, como o twitter, sabe o quão apaixonada pela produção da Wanju sou, tanto seus livros de caoismo quanto os de ficção, mas Servidores Fantasmas me chamou atenção pela premissa inusitada: se só criamos servidores para nos auxiliar, porque não criar servidores que nos imponham dificuldades? Que proponham desafios e tentem nos atrapalhar?

Calma que eu também achei absurdo quando li essa premissa durante o livro, “porque eu vou criar um servidor pra deixar a vida pior do que já está?” e pelas palavras da própria Wanju, usando o exemplo de um magista que luta com a constante escassez de dinheiro:

“Um sigilo para atrair dinheiro é uma medida que lida apenas com o problema imediato e não com a raiz do problema.
Você pode resolver isso temporariamente dessa forma. Mas e depois?
Talvez você considere essa questão um diabo, um fantasma, uma morte, um sofrimento de morte. Então olhe para ela como de fato é.
Convide, vamos supor, o servidor fantasma das suas questões financeiras e o desenhe como você o sente: uma morte, uma dor de morte, a dor da insegurança, de não saber se haverá comida amanhã. Você segue todo o processo de criação de servidores normais: você nomeia seu problema. Dar um nome a ele é importante. Assim ele não será apenas mais um fantasma sem nome.

E então ela prossegue:

“Então, eis o seu servidor fantasma, com um nome, com uma cara de demônio, assustador. Ele te visita durante a noite, vocês conversam, ele te tenta. Mas agora você o conhece.”

“No caoísmo o objetivo não é usar um monte de sigilos e servidores para obter qualquer coisa que você quiser em dois segundos. Não é isso que faz um bom mago. Isso te faz um bom feiticeiro, dizem os boatos.”

Acho que agora a ideia de criar seu fantasma antagonista parece mais palatável. Você irá dar vida, um nome e forma para seus demônios e sombras mais profundas, criá-los a partir do método de criação de servidores mais comum ou algum preferido e então, buscar formas de destruí-lo (ou não) para sempre em você. É uma grande jornada de auto conhecimento, agora suas sombras tem algo próximo de uma alma, assim como você, e uma feita de/por você.

Minha Experiência

Agora que entra aqui minha experiência porque, inicialmente, era apenas mais uma ideia diferentona no estilo caoista, apresentado por uma das minhas escritoras favoritas e eu gostaria de tentar. E dessa forma as coisas se desenrolam assustadoramente rápido e muito profundamente a partir do momento que decidi nomear meus fantasmas.

Primeiro as perguntas: qual fantasma eu gostaria de destruir em mim? Qual que me machuca o suficiente para que eu escolha como primeiro no corredor da morte dos servidores fantasmas? (porquê era TÃO óbvio que eu mataria algo que é tão terrivel em mim… certo?)

Assim, só essas poucas perguntas se desenrolaram de forma inesperada, já que pensei que escolheria algo como o exemplo; mataria a falta de dinheiro ou até minha timidez crônica, quem sabe algumas dificuldades acadêmicas! Porém, quando me fiz seriamente a pergunta a resposta que me dei foi: solidão, quero destruir o meu medo da solidão.

Ou seja, só o primeiro contato de pensar no que você deseja destruir é um exercício de sombras e autoconhecimento, um belo soco no estômago recheado de coisas que você não deseja encarar com demônios que te fazem tremer até os ossos.

E expondo ainda mais de mim, a solidão foi realmente algo que doeu muito com todas as mudanças advindas da pandemia e consequente isolamento; depois de mais de 2 anos eu ainda tinha amigos e colegas, mas não poderia evitar me sentir só agora que toda realidade ao meu redor havia mudado tão drasticamente. Me reinserir estava mais complicado já que não importava onde eu estava, ainda me sentia muito só.

Então eu dei um nome ao meu medo da solidão, criei um sigilo simples com esse nome (que não vou expor aqui, óbvio), fiz tudo de necessário para transformar esse medo em um servidor; de atributos até uma forma que parecia “certa” para mim.
Criei um demônio, um dragão, meu antagonista.

Se você pensar em fazer disso um processo de escrita criativa fichas de RPG podem te ajudar muito a dar nome e característica aos seus fantasma e um início a sua história!

“O servidor fantasma é como um demônio que te apresenta os seus fantasmas e te dá a oportunidade de lutar.”

Então Solidão (vamos chamá-lo assim), em sua forma de dragão, vinha espreitar durante momentos importantes, me causava vontade de chorar repentinamente, me perseguia no escuro, mas de qualquer modo ele já não fazia isso antes de “nascer”? A grande mudança é que agora ele não era uma dor disforma em mim e sim um alvo com nome. E assim começamos a nossa luta.

Pra mim, esse é o grande clímax do processo da criação de servidores fantasma: a forma com que essa luta se decorre, como esse servidor atua com sua semi-consciência e capacidade real de afetar sua vida e estados de espírito. Você o deu nome e poderes para isso, então ele irá te tentar e te atacar.

E para ilustrar melhor o processo, e evitar deixar esse texto ainda mais longo e repetitivo sobre mim, algumas passagens do meu diário mágico:

(Recomendo ao menos um espaço no bloco de notas do celular para quem decidir ao menos testar o método)

“Solidão nasceu com forma de dragão, ele me ataca as vezes e nos outros dias parece ficar descansando em algum lugar que não encontro dentro de mim. Ele deseja me destruir, sei disso, mas na magia dragões tem um papel muito mais importante que esse, eles representam o ego do próprio magista, então acredito, por enquanto, que para Solidão ter tomado essa forma ele representa um medo que se esconde no meu âmago, tentando me devorar sempre que encontra espaço e força.”

“Acho que finalmente estou me permitindo assentar algumas informações. O meu medo da solidão é, obviamente, muito mais sobre mim do que sobre a presença do outro, por isso ele é assim, um dragão. Se eu não me livrar desse medo não importa quantos estejam ao meu lado ou quão maravilhosos sejam, a solidão ainda vai tentar me devorar.”

“No fim, eu destruí Solidão, mas uma parte dele continua existindo em mim, já que construí-lo me fez entender que não apenas viver bem com a solidão, mas temê-la é importante para que eu continue buscando criar relações e fortalecer as já existentes. Eu sou um ser humano, sou social e preciso do medo de estar só, só que em pequenas quantias, pra continuar buscando pelo amor e amizade. A velha premissa do herói que precisa do vilão para que se mantenha o equilíbrio.”

Acredito que assim da para perceber o quão profundo, o aparentemente simples, processo dar nome ao fantasma pode levar a insights que “solucionam” ou te levam próximo a raiz do problema. Criar um servidor antagonista sobre certo controle seu te permite enxergar facetas das dores que ficam imersas demais para que possamos desnuda-las e assim curar, superar ou aceitar o que for melhor.

Encontramos os fantasmas sob comando do demônio, vemos que assim como Deus criou aquele que nomeia de o portador da luz, seu antagonista, criar um ser que vai contra você e te tenta a cada esquina é só um caminho mais rápido para alcançar a luz. Espiritualidade não é sobre isso a final? Mão esquerda o ou mão direita, todas levam ao mesmo caminho; são apenas vias diferentes e péssimas traduções e interpretações ao longos dos anos que mudaram um pouco as coisas (mas isso aí é outro texto).

No fim, eu posso dizer que já sabia de tudo que acabei por ver durante o processo, uma parte minha, meu fantasma, já sabia, mas só quando literalmente o vi em meus sonhos e viagens astrais, me fazendo engolir tudo através de uma narrativa, com um nome e forma, pude compreender com calma a realidade que sempre esteve ali sobre o medo e aceita-la. Apenas saber não era mais o suficiente.

Dessa forma, mesmo que você não veja como magia propriamente dita o exercício de dar nome ao seus fantasmas e conversar com eles já é, pra mim, um gigante exercício de evolução e autoconhecimento, além de uma possibilidade de criar arte. De qualquer forma, qual a grande diferença da arte para a magia?

Término o texto obviamente com a recomendação do livro da Wanju (é bem curtinho e provoca insights absurdos de bons!) e da prática de criação de Servidores Fantasmas. Talvez você chore um pouquinho, mas é bem divertido se ver como um herói que deve matar (ou não) seu maior demônio no fim.

Agora, por exemplo, estou travando uma péssima batalha com meu Desânimo Periódico, ao contrário da ferocidade inata do dragão Solidão o fantasma do Desânimo chora e implora para que eu não o mate como um covarde auto-piedoso (opa, olha a abertura pra autoanálise), mas na primeira oportunidade se esgueira na minha mente e atrapalha todos os meus planos… enfim, coisas que meu diário mágico precisa ouvir antes de você, leitore!

No fim do dia espero também dar nome e matar minha timidez (ou talvez fazer dela minha amiga, o processo te da MUITAS variantes, muitas mesmo) para que eu possa trazer mais textos de experiências para quem se encontrar aqui durante a própria jornada do herói!

E cuidado aos matar seus demônios, Nietzsche disse uma vez que eles podem ser o que há de melhor em você. Prossiga com cautela na sua própria narrativa mágica.

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Atheris L.
CarpeNoctem

Feiticeira alinhada ao caoismo com interesse em formas de magia relacionadas a morte e cultura moderna. Meu objetivo é conseguir difundir conhecimento.