Por que eu parei de trabalhar com tecnologia — e por que eu voltei

Ju Utsch
Carreira | Thoughtworks
8 min readMar 8, 2017

A tarde era quente, e um grupo de adolescentes se sentava em frente a bancadas abarrotadas de fios, numa sala abafada um pouco escura. Uma menina, de uns dezessete anos, aparava um cabo de rede azulado. Branco-e-verde, verde, branco-e-laranja, azul, branco e azul, laranja, branco-e-marrom, marrom, todos os fiozinhos alinhadinhos com esmero e na ordem correta. Hora de cortá-los. As mãos suavam, de calor e ansiedade, a garota ia ficando nervosa: é que seria avaliada logo em seguida pela precisão e qualidade do cabo.

O professor da turma observava sua ansiedade de longe e se aproxima.

— Tá difícil aí?

— Tá, tá sim, eu sem querer estou ferindo os fios na hora de cortar… — diz ela, na expectativa de uma palavra de conforto ou uma dica para fazer a tarefa.

— Que nada. Aposto que se você estivesse fazendo unha, cortaria direitinho. — deu uma risadinha, e em seguida saiu.

O ano era 2010, e essa menina era eu.

Não era a primeira vez que eu seria insultada numa sala de aula da prestigiada instituição federal onde estudei Informática. Na verdade, esse tipo de situação era comum. Tão comum que não nos questionávamos o porque daquilo existir, apenas resumia em: gosto deste professor, não gosto daquele. Ouso dizer que não gostava da maioria.

Em outro ataque, um professor chegou em sala de aula no dia 8 de março e disse: hoje vou fazer uma dedicatória as meninas da sala! Escreveu no quadro: “Fascinação” e mencionou a música interpretada por Elis Regina. Depois, com o marcador, juntou a letra “s” e “c”, escrevendo “Faxinação”.

Eu tive um professor terrível em uma dada disciplina focada em automação. Mas eu era apaixonada pelo conteúdo. Estudava, experimentava. Fui a primeira da minha turma a terminar com sucesso o trabalho de automação com sensores de um elevador. Meu único problema era que eu não sabia ficar calada. Já no último ano, leitora ávida de Lola Aronovich, eu resolvi reagir. Nenhum comentário ficaria sem resposta, e obviamente represálias vieram. Em um trabalho em grupo, onde o grupo inteiro entregara o mesmíssimo trabalho, feito em conjunto, as notas eram uma escadinha. O menino do grupo ficou com a maior. A outra menina, mais quieta, um pouco menos. E eu, a encrenqueira do grupo que gostava do assunto e tinha feito a maior parte, uma nota suficiente apenas para não ser reprovada.

Não é a toa que a grande maioria das mulheres da área de computação evade o curso no primeiro ano. Estudar torna-se um campo de guerra, e na minha época a guerra era solitária. Falar sobre machismo na área de TI ainda não era comum, e nós, meninas, não compartilhávamos impressões juntas. Eu, mesma, não tinha esse interesse. Eu achava que era um dos caras. Eu andava com eles, ria com eles, me divertia com eles e estudava com eles. Meu erro foi esse: achar que por isso, seria tratada como um deles. A resposta é: não, não seria. Minha aparência física seria escrutinada, sofreria todo tipo de assédio moral, e quando mandasse bem, seria completamente invisível ou irrelevante. Mesmo com os estímulos constantes dos chefes e colegas onde eu cursava estágio (que acreditavam em mim, em meu potencial e minha capacidade como programadora), eu desisti. Eu acreditei, por fim, que aquele espaço não era meu. Eu imaginei mais cinco anos de inferno num curso de Computação. E na hora de prestar o vestibular, escolhi Comunicação Social, para dedicar a outras de minhas paixões: criação visual e escrita.

Era final de 2015, e após voltar de uma temporada de um ano em Recife, eu procurava emprego para sair da casa da minha família. Depois de curto tempo de procura, era estagiária numa startup de geração de conteúdo, mas mesmo assim não estava muito feliz. Meu desejo era sair de casa logo, e por mais que tivesse boas perspectivas de crescimento em um prazo curto, não sabia muito bem se aquilo era pra mim. Comecei a fazer alguns trabalhos freelancers bobinhos como webdesigner ou customizando Wordpress, mas me sentia muito defasada. Afinal, se passaram cinco anos desde que eu havia parado de programar e provavelmente uns 83 novos frameworks de Javascript haviam surgido desde então. Eu me sentia como se tivesse ficado presa numa câmara criogênica e acordado cinco anos depois. Resolvi que voltaria a estudar programação, mas não sabia exatamente como, tamanho o desestímulo. Até que Reuben, um amigo da época de CEFET, compartilhou um link que iria mudar minha vida: um dojo de Python promovido pelo grupo Pyladies.

Passei a frequentar todos os dojos promovidos pela Thoughtworks. E aos poucos voltava ao sentimento bom de ver o programa compilando com o resultados desejados, lembrando do sentimento gratificante e me sentindo num espaço seguro. Fui me reconectando comigo, com a menina de quinze anos gostava de ver o compilador de C rodar. Mas ainda assim, não tinha grandes pretensões senão criar pequenos sites para gerar uma renda extra. Não, eu não tinha pretensões de ser programadora. Um certo dia eu fui a um dojo por lá e quem abriu a porta foi o Lucas, pra nosso mútuo susto. Conhecera o Lucas nos movimentos sociais anos atrás, e ele nem sabia do meu interesse pela programação. Guardem essa informação.

Um tempo depois, duas janelas sobem na tela do meu computador: bizarramente dois amigos, sem conversar entre si sobre isso, me mandaram simultaneamente o mesmíssimo link: a inscrição do projeto Outreachy, tocado por uma série de instituições, para estimular grupos minoritários na tecnologia. Eram Reuben e Luiz, antigos colegas de sala do curso de informática. Eu dei uma risada. Eu, tentando uma bolsa de estágio de concorrência internacional, em tecnologia ainda por cima?

migo seus loko

Demorou um tempinho pra eu levar Luiz e Reuben a sério. Luiz se ofereceu pra estudar comigo. Reuben me deu a dica de um projeto interessante pra escolher. Ambos revisaram meus textos, meu inglês e meu código na inscrição, embora eu ainda não estivesse satisfeita.

Faltando apenas um dia para encerrar a inscrição, exausta por dividir faculdade, trabalho e estudos em outra área completamente diferente, eu resolvi desistir. Argumentei que não ia dar tempo de mandar algo de qualidade. Foi quando Luiz interveio — ele disse que se eu não me inscrevesse, ia pegar o link do repositório e mandar por mim. Eu levei a sério a ameaça e resolvi me inscrever por mim mesma.

Corta pra Março de 2016, eu enviando currículos pra alguns lugares. A janela sobe e é Lucas de novo, perguntando quando eu ia passar meus dados pra ele. Dessa vez, decidi que ia mandar. Já tinha uns meses que ele pedira pela primeira vez o meu currículo para o processo seletivo da Thoughtworks. Mas, mesmo depois de ter concluído o Outreachy fazendo um estágio de verão onde estudei o básico de Python e Javascript na Mozilla e passei uns dias em San Francisco, eu ainda não me sentia pronta. Eu achava que isso implicava ser uma programadora de verdade (talvez eu achasse que fosse uma programadora iniciante era uma programadora de mentira?). Eu achava que tinha que estudar mais antes e entrei num estágio onde fui tirando os restos de nitrogênio líquido: aprendi o básico do Git, tive uma introdução a Orientação a Objetos e trabalhei numa aplicação um pouco mais complexa, com colegas que compartilharam conhecimento comigo. Acabei cedendo e enviei o currículo pro Lucas.

No meio do caos de carros, motos, riquixás, mãos, contramãos e gente, ficava encafifada com a graça e tranquilidade com a qual um cachorro atravessava a rua ileso. A Índia não é para principiantes, mas esse daqui já é veterano, pensava eu, enquanto tentava chegar no outro lado para pegar a van. Trabalhando há cerca de dois meses na Thoughtworks, fui enviada com mais 80 e poucas pessoas do mundo inteiro para passar um mês e meio estudando desenvolvimento de software e justiça social em Pune. Foi uma das experiências mais ricas e transformadoras da minha vida, mas não posso dizer que foi fácil. A cada nova rodada de conceitos, um mundo novo de conhecimento entrava em mim e eu tentava absorver tudo, equilibrando um monte de pratos conceituais pra que tudo não caísse no chão. Hoje, 7 meses de casa depois, ainda me pego equilibrando pratos. Junte a falta de experiência e de conhecimentos à necessidade de se provar duas vezes por ter um curso de Jornalismo no currículo e de por acaso ter o gênero feminino.

Acabei aprendendo algumas coisas. Perguntar “que porra é essa???” é um dos meus maiores aliados pra me tornar uma programadora melhor. Não tenho vergonha nem intenção alguma de ocultar o que eu não sei.

Acabei aprendendo também que a melhor arma contra o machismo ainda é o apontamento assertivo e direto dele, e desde que o outro esteja disposto a aprender, estarei disposta a ensinar.

Aprendi que, entre as mulheres, estou em uma das posições mais privilegiadas que existem. Experimente ser uma mulher na TI sendo negra e/ou LGBT e veja seus problemas se multiplicarem em muitas, muitas vezes.

Se eu pudesse fazer um grande TLDR desse textão, seria o seguinte:

que eu saí da área porque estava mais ocupada em sobreviver do que em estudar. Que eu nunca me senti parte dela, nem que minha presença ali fosse relevante até então.

Que eu voltei a trabalhar na tecnologia porque alguém acreditou em mim antes que eu mesmo acreditasse. Então, minha gratidão amorosa pros meus amigos queridos: Luiz, Reuben, Lucas (que me ajudou durante todo o processo, e insistiu muito que eu já era capaz), sem vocês talvez eu até estivesse por aqui. Mas com certeza teria sido mais difícil. Lucas Hanke, que veio depois, e reforçou tudo isso, lembrando do que me segura pra trás. E aos caras que se esforçam em aprender todos os dias, provando que ser um homem na TI pode ser algo tóxico, nocivo, indiferente, ou pode simplesmente mudar tudo. Incentivem mulheres. Priorizem mulheres.

Mas o que é mais importante… eu queria encerrar com um agradecimento que vai para Lorena, que foi a primeira mulher desenvolvedora com quem eu compartilhei o local de trabalho na vida, mas também as aflições, os medos, as angústias; vai para Fran, primeira desenvolvedora com quem eu compartilho um projeto e também suas dificuldades de cada dia; a Turah, que segurou tantas barras junto comigo e botou a maior fé em mim; depois vieram tantas outras mulheres incríveis, e esse número a cada dia aumenta. isso faz parte de um esforço coletivo, que parte especialmente das mulheres da Thoughtworks, que desde o recrutamento até o desenvolvimento se esforçam pra que lá seja um dos melhores lugares para ser uma mulher tecnologista. Você não pode querer ser o que não pode ver, e eu tenho a sorte de ver quem eu quero ser todos os dias. Obrigada por tudo.

Um pequeno adendo pra adicionar a foto do incrível dia de hoje… Mulheres Thoughtworkers pararam e foram para as ruas!

Seguimos juntas!

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