A quem interessa discutir o que é arte?

Vanessa Hauser
Carretel Arte & Jornalismo
3 min readJun 29, 2018

Por Wesley Andriel

Bonecos de pano feitos à mão presentes na 11ª Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Somos três estudantes de jornalismo. Decidimos debater personagens possíveis para entender o que seria arte e artesanato. Não demorou muito até que a produção de indígenas viesse em nossa memória. O Rio Grande do Sul possui inúmeras civilizações indígenas, a maioria delas com hábitos de produção de objetos feitos à mão. Cestas, colares, animais esculpidos em madeira, bolsas feitas de palha. Tudo isso ao mesmo tempo comércio, ao mesmo tempo para uso próprio.

Produzir essas obras demandam tempo, esforço e técnica. O que não é diferente de qualquer outra produção artística. Mas então por que o que está sendo exposto em um museu e o que está na calçada têm recepções diferentes?

Historicamente, estes povos resistiam ao produzir objetos a partir de técnicas repassadas de geração em geração. Além disso, existem questões políticas por trás destes trabalhos. O fato destas pessoas insistirem em produzir objetos para vendê-los em um lugar e espaço que os pressiona a deixar de ser o que são, corrobora com a ideia de que há muito mais do que um artesanato por trás disso. A ideia de civilização. Pensamos, então, em ouvir a população indígena.

Por que será que o artesanato produzido por vocês não está nos museus, em uma Bienal do Mercosul?

Para entrar em uma aldeia não era tão simples. Como abordar e não ser inconveniente? Saímos nas ruas na intuição de um primeiro contato, menos intimista, na ideia de conversar com os artesãos, as nossas fontes primárias. Já havíamos feito contato com estudiosos de arte no estado, mestrandos, doutores, que haviam nos deixado a par de várias discussões. Faltava saber dos indígenas.

O que isso vai trazer de bom para a aldeia? — nos disseram nas ruas. O jornalismo tem sempre essa ideia romântica e nem tão surreal de transformar sociedades. E convenhamos, nós não faríamos diferença alguma para a aldeia deles com a nossa reportagem. Então a quem interessa discutir o que é arte?

Insistimos. Conhecemos um jovem indígena que vendia oncinhas feitas de madeira no centro de Porto Alegre. Foi a primeira vez que ouvimos com todas as letras: não. Ele não daria entrevista, e também não entendia o porquê dessa discussão justo agora. “Tu já comprou alguma coisa de mim? Então porque vou ficar aqui falando se o meu trabalho é arte ou não?” Para ele, não era a primeira vez que jornalistas os procuravam para entrar na aldeia, filmar e ir embora. Como em uma situação de exploração. Como se estivesse instaurado, entre eles e nós, uma situação de interesses que, é claro, só favorecia a nós mesmos.

Nunca chegamos a entrevistá-los, nem mesmo a irmos a aldeia. Mas chegamos a cogitar derrubar nossa pauta, já que não tínhamos fonte primária. Então entendemos que o próprio silêncio deles, ou, nesses casos específicos, as suas negativas, também faziam parte da reportagem: muito mais como experiência do que como fontes.

Entender que somos três alunos de graduação, brancos, crescidos em casas com acesso à livros e toda forma de conhecimento acessível nos põe nitidamente em conflitos de interesses. Não importa para a população indígena de Porto Alegre em 2018 saber, em termos artísticos, por que havia peças de artesanato na Bienal do Mercosul feita por quilombolas e por que as suas estavam nas ruas. A discussão não são os elementos que tornam aquilo arte ou não. Curadoria, conceito, contexto. Não faz sentido discutir em termos aprofundados ou práticos a diferença entre arte e artesanato. É o nosso olhar de universitário que gosta de arte e frequenta museus que olha para os objetos e quer defini-los. E isso não é ao todo ruim. Mas não faz diferença alguma para as aldeias.

Executamos e publicamos nossa reportagem com as falas e silêncios que tínhamos. Juntamos aqui nossas inquietações. Partilhamos, nós três, de uma mesma experiência. Desde o começo da graduação, é a primeira vez que demos espaço a sentimentos e experiências dentro do jornalismo. Para além da pauta, firmou-se a sensação de que o jornalismo não funciona com roteiro. De que o processo diz muito, e às vezes mais, que o produto final: tanto na arte, no artesanato ou no jornalismo.

O lugar do repórter também é um lugar que fala.

Porto Alegre, junho de 2018.

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Vanessa Hauser
Carretel Arte & Jornalismo

Brazilian journalist living in Barcelona. Rebuilding a life style and trying to come back to writing as a real passion.