#1: Talvez eu morra de saudades

O Carteiro
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3 min readMay 11, 2021

M.,

Morro de saudades. A distância é um câncer na biologia do amor. A memória, infelizmente, não é nenhum remédio. Sofro com flashes que para mim chegam como se fosse você a fotografar os nossos encontros, nossas felicidades. Lembro de você e de sua máquina fotográfica, lembro de nós, casal perfeito, desses de porta-retrato. Morro de saudades, preciso repetir — e sei que o amor, o nosso amor, é feito de repetições.

Me dói comprovar a sua ausência ao escrever “gostaria que estivesse aqui, comigo”. Claro que sua visita à família é essencial, mas esses dias têm demorado tanto a passar. Ainda sinto na boca o gosto do demorado beijo que trocamos no aeroporto. Tem sabor de café, o café que eu tinha feito para você naquela manhã, o último que fiz desde aquele dia. M., morro de saudades de você e, na saudade, vivo dentro dessas lembranças. Queria acordar outro dia e ver o seu corpo dizendo adeus a mim e ao travesseiro, enquanto se prepara para outro dia trabalhando. Outro dia fotografando.

Metade das horas do meu dia são feitas de retratos seus. Acho curioso pensar que minha cabeça tem fotografado seus gestos desde o minuto que eu te vi pela primeira vez, de câmera na mão, é claro. Lembra? Você tirava fotos de pessoas anônimas cruzando a rua, em movimento, enquanto eu estava parado a alguns metros de distância, com meu café na mão, desejando não ter que voltar para o escritório. Às vezes me questiono se a semana que passou entre esse dia e o momento em que finalmente trocamos algumas palavras não foi apenas uma questão de sorte. A cada nova manhã eu sentava na minha mesa e pensava se você viria, e no intervalo você estava lá. Fotografando. E se minha timidez tivesse me atrasado um dia em falar com você? Você estaria lá? Eu estaria aqui?

Matuto coisas na minha cabeça, tento pensar em uma lógica, rio feliz com você no pensamento, mas não sei dizer o que faz duas pessoas sentirem atração. Não havíamos trocado uma palavra, cruzado olhares, e eu já queria saber tudo sobre você. Pode ter sido o detalhe no seu queixo, ou o jeito que suas orelhas apareciam sutilmente por trás da câmera, ou as bochechas, a depender da posição do equipamento e do meu olhar contra o sol. Por sorte, de novo, você também pareceu querer aprender sobre mim, mesmo com tantas outras pessoas ao seu redor, possivelmente pessoas incríveis, como você gosta de dizer que as pessoas são. Meu amor por você pareceu crescer assim, fragmentado. Um típico amor à primeira vista, de quem passou cinco dias te olhando e no final concluiu: paixão. Tivemos que sair naquele mesmo dia, dormir juntos naquela mesma noite (a lembrança da sua risada ao dizer “se um dia minha mãe perguntar, fizemos isso só depois do casamento” ainda me desestabiliza). Existe algo de muito inexplicável que faz com que queiramos dizer imediatamente para algumas pessoas coisas como essas, casamento, adoção de um cachorro, www.google.com apartamentos para alugar por dezessete reais pesquisar. Por algum motivo, com algumas pessoas, isso chega a ser confortável, seguro. M., lembra que, como em uma brincadeira que a gente não quer que acabe, respondi: casamos amanhã e repetimos a última noite pra sempre?

Mas faz apenas cinco dias desde a despedida no aeroporto. Comprei as balas que você gosta e comecei a assistir à série que você recomendou. Estranho e bom como o amor muda alguns hábitos (me sinto bobo de nunca ter provado uma bala de café). Morro de saudades, porque é isso que o amor faz quando encontra a distância e planta na gente a invenção de um sentimento de urgência: quero te ver ontem!

M., quando voltar, você escolhe o filme, está bem?

Maravilhado com a descoberta desse nosso amor, seu nome em cada centímetro desta carta. Em cada início de parágrafo. Em cada novo começo de mim. Queria poder te dar todos os beijos que tenho comigo, mas só posso por escrito. Assim que você voltar, resolvemos isso. Então, beijos, meu amor. Do seu,
U.

Esta carta faz parte da série “Talvez eu morra de saudades”. É a primeira de um total de quatro cartas desviadas pelo carteiro. De acordo com o código de rastreio, a previsão é que elas cheguem sempre às segundas de manhã.

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