#10

stéphanie
carteiro
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3 min readNov 23, 2020

r.,

solar foi receber um poema seu na última carta. trocar cartas com um poeta é solar.
achei interessante que sua carta mencionou o filme feliz como lázaro, um filme que eu não gostei tanto porque não entendi bem. não é o caso de ter desgostado, sabe? é de não ter gostado. é de ter ficado neutra. a observação que cabe aqui, porém, é de que é realmente bonito. “lindo”, assim como “feliz”, é uma palavra forte. mas voltamos àquilo: lhe é lindo porque é você, me é bonito porque sou eu. isso sim é lindo.
nesta carta ainda falo de subjetividade. no parágrafo anterior e à frente. veja: eu li nas últimas semanas o conto “the curious case of benjamin button”, uma edição gratuita pra kindle que peguei na amazon. ele foi escrito pelo fitzgerald, autor de o grande gatsby — livro que ainda não li. me decidi por ler o conto por curiosidade, porque o curioso caso de benjamin button, do david fincher, é um dos meus filmes favoritos. sou apaixonada pela história do benjamin do filme, pela história de amor dele com a daisy e pelo modo como todas as histórias são contadas ali. digo com plena convicção de que vi esse filme mais de cinco vezes e que chorei em todas. benjamin button nasce um bebê velho e, ao amadurecer, rejuvenesce fisicamente. se apaixona cedo por alguém que viria a ser o amor de sua vida. encontra diversas pessoas que o transformam ao longo da vida à medida que ele se transforma por si só. como a vida, claro, mas com um olhar atento a quão significativo e lindo é o encontro: era ele porque havia o outro. porque havia a interpelação, a troca, o diálogo. (aliás, sobre diálogos: bakhtin fala sobre a importância da fala para se entender o que se está pensando. talvez o encontro seja um paralelo disso: a importância do encontro para se entender quem é.)
bom, tudo isso para contar uma coisa curiosa: o conto do fitzgerald é muitíssimo diferente do filme. quando eu digo muitíssimo, eu realmente digo muitíssimo. na verdade, só não digo “diferente em absoluto” porque a base da história é a mesma: uma criança que nasceu velha. o resto, foi uma interpretação — não, uma reformulação, uma recriação — do fincher. ele fez a leitura dele do conto, preencheu as lacunas do texto, adaptou a narrativa, criou um significado, se tornou coautor da história. a vida é cheia de adaptações. talvez a vida seja feita de adaptações. o que eu leio dela, transformo e adapto. então crio.
fitzgerald, provavelmente, escreveu o conto após ler alguma coisa que o impactou. a leitura do diretor, portanto, deu origem a uma obra que impacta a minha leitura da vida. hoje eu escrevo esta carta, que talvez te impacte. mas isso depende de quem eu sou e de quem você é e de quem somos um com o outro. depende também do que digo. depende de como, quando e onde eu digo. de como, onde e quando você escuta. são tantas variáveis. é, então, ainda mais lindo quando algo nos impacta: como, dentre tantas chances, tantas combinações, somos realmente tocados? que sorte.
aqui faço um gancho com o que você comentou sobre segredos na última carta. concordo: o segredo seu que guardo é diferente do segredo original, que eu ressignifiquei. a questão é que ele ainda é seu segredo. seu. unicamente seu. independentemente da leitura que eu faço dele, é algo rico a você (e eu ressignifico talvez porque não entenda, porque quero fazer que seja rico a mim). o segredo original existe, assim como o conto do fitzgerald. é um fato. a leitura que eu faço dele é acumulativa. o resultado: inúmeros segredos, assim como inúmeras interpretações, assim como inúmeras adaptações. são histórias e histórias.

abraços desta para quem parece impossível não falar de leitura,
s.

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