r.,
também tenho a sensação de que nossas cartas têm sido lidas por outras pessoas, mas confesso não saber como isso seria possível. até parece que outra caixa de entrada que não a sua recebe estes e-mails. de qualquer modo, não precisa se preocupar: esta carta, uma vez enviada, não será mais minha.
eu tinha planejado te escrever falando sobre o seu dicionário e sobre o jogo da amarelinha, que comecei a ler outro dia, mas mudei de ideia. isso porque, quando recebi a notícia da morte do thiago blumenthal, da lote 42, fiquei desconsertada. já adianto: eu não o conhecia, apenas sabia quem ele era, mas é impossível não se abalar com a morte de uma pessoa tão nova, sobretudo quando não se espera por algo do tipo (sendo que, querendo ou não, a morte é, sim, sempre, esperada). fui olhar o twitter dele e, até dois dias antes, tudo estava normal. as pessoas recuperaram um post dele sobre a morte, de agosto: “Meses antes de morrer, há exatos 5 anos, Sacks escreveu q qdo as pessoas morrem elas não podem ser substituídas, pois deixam buracos q não dá + pra encher. É o destino de todo homem encontrar o próprio caminho, viver a própria vida, morrer a própria morte. Somos instantes”. somos instantes.
uma das coisas que mais me abalam é como me é fácil esquecer a morte. e é estranho escrever isto, r., durante uma pandemia, com tantas mortes voltando a acontecer todos os dias. apesar do risco iminente de se contaminar, apesar de pessoas estarem perdendo pessoas amadas, apesar do medo de pessoas amadas se contaminarem e morrerem, o mundo apenas segue. porém, de repente vem a notícia de que alguém morreu assim, de súbito, mesmo sendo jovem. então me lembro que também sou jovem, você é jovem, que maria vitória era jovem e que nada nos exime de morrer a qualquer momento. que a vida não é um dia depois do outro pra sempre, mas que tem um último dia, e ele pode não demorar para chegar. o melhor lugar do mundo é aqui e agora, já dizia gil.
fiquei comovida esta semana vendo a notícia de um jovem rapaz que foi para os estados unidos realizar um sonho e, enquanto estava lá, sofreu um acidente e faleceu. coincidentemente, ele havia enviado para os pais logo antes de morrer alguns presentes e uma carta, dizendo o quanto os amava e agradecendo por tudo o que fizeram. todo o pacote enviado por ele chegou aqui no brasil no dia seguinte de sua morte. r., me arrepia tanto pensar nisso: ser consolado por quem não só não existe mais, mas que também é, involuntariamente, a causa de sua tristeza. um encontro único entre a vida e a morte.
quando escrevo cartas para o futuro, acho que tento fazer algo do tipo. imagino que várias coisas terão morrido durante o tempo que a carta demora para chegar — eu terei superado algum problema que hoje me angustia, terei conquistado algo que eu queria (portanto, a vida sem aquilo que eu queria teria acabado) — , e recebê-la será um consolo, um aviso de que tudo bem, vai ficar tudo bem.
talvez esta nossa troca pelo carteiro também seja algo do tipo. certamente quando você ou eu morrermos, ou você e eu morrermos, estas cartas serão um consolo para alguém. espero, então, que realmente haja alguém abrindo estas correspondências.
de qualquer maneira, me peguei pensando: como seria a entrada “morte” no seu dicionário? se eu montasse meu próprio dicionário, eu definiria “vida” como “uma série de encontros” ou um clichê parecido. colocaria também, como exemplo da acepção, a seguinte frase de o jogo da amarelinha: “Andávamos sem nos procurar, mas sabendo que andávamos só para nos encontrar”. não sou tão boa com as palavras como você, e nem consigo explicar a conexão que faço na minha cabeça entre a frase e a palavra, mas existe. e tudo bem não explicar, acho. estaria apenas no meu dicionário. e poucas coisas são tão subjetivas quanto escrever o próprio dicionário.
a democracia nunca morre, mas parece sempre em vias de. continuemos atentos.
um abraço,
s.
obs.: já que falou de haneke, tem um bom filme dele sobre morte: o sétimo continente. veja, se puder. mas cuidado que é pedrada.