#20: amor sem eu te amo

stéphanie
carteiro
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4 min readFeb 1, 2021

r.,

mas e quando a gente ama sem dizer “eu te amo”? quando a gente ama sem dizer que ama? quando a gente ama e ninguém sabe? quando a gente ama e ainda nem sabe que ama?

já peço desculpas. não parece nada legal começar uma carta com tantas perguntas assim. não é como se eu mandasse “r., [pula uma linha] tudo bem? como vai a família? e a a.?”. comecei como se quisesse questionar seus argumentos da última carta, mas não é o caso. são perguntas mesmo. não questiono seus argumentos, apenas quero mais. foi você quem abriu a porteira.

quando li sua carta, assim que recebi, achei difícil. depois reli e achei um pouco mais fácil. hoje, antes de começar a escrever esta, li de novo e posso dizer que entendi tudo. é o que eu quero que aconteça na minha vida de forma geral (sobretudo ao ler a obra do borges): fazer até compreender. será que com o amor é assim? amamos uma, duas, três vezes para acabar amando melhor no final? com isso não quero dizer que devemos, necessariamente, amar uma, duas, três, quatro, cinco pessoas diferentes. quero dizer apenas que podemos amar de formas diferentes ao longo da vida, mesmo que seja apenas uma pessoa.

como nós não somos uma pessoa só a vida toda, a cada novo “eu”, como você diz, amamos uma coisa nova. ou não nova, apenas diferente da anterior. ou ligeiramente diferente. algumas pessoas têm a sorte de amar sempre a mesma pessoa — que, na verdade, não é a mesma pessoa, já que ela não é a mesma a vida toda -, pois o amor vai mudando e, mesmo assim, ele ainda funciona. outras pessoas têm a sorte de amar várias pessoas, e conhecer o novo a cada vez.

r., está tão difícil escrever sobre isso, você nem sabe. parece algo muito claro na minha cabeça, mas impossível de pôr no papel. não é fácil falar de amor. penso no começo da sua carta, “a linguagem, não importa qual, nada mais é do que um artifício voltado à expressão de um desejo humano”. penso em quando, na terapia, g. me disse que o sonho é a manifestação do desejo. não sei o que uma coisa tem a ver com a outra, apenas lembrei.

fugi demais da sua carta, aliás. volto às minhas perguntas iniciais. apesar de concordar com o que você me disse, penso realmente no amor sem o eu te amo. afinal, quantas vezes a gente tem a sorte de dizer isso na vida? de poder confiar à outra pessoa essa entrega? é preciso muita coragem para dizer “eu te amo”. coragem para perceber o amor como um fato, coragem para decidir compartilhá-lo, coragem para arriscar o abandono, coragem para ouvir que é, ou não, amado de volta. o espaço do “eu te amo”, então, com possessão, despossessão, pré-abandono etc., é muito bem definido, é muito específico. mas me pergunto quando, realmente, em vez de falar “eu te amo” você diz “seus pães chegaram, vou levar aí”, ou “escuta essa música”, ou “topo” para qualquer coisa que pareça importante para o outro. e esse amor? um amor sem palavras. um amor que existe, a gente sente que existe, a gente sabe que existe, e não precisa de mais nada. em que momento se dá o abandono nesse amor?

esse parágrafo me fez lembrar de um querido e velho amigo com quem, também, não precisava dos eu te amos. a gente se abandonou em algum momento, não deu tempo nem de ver se foi porque mudamos, porque o amor mudou ou o quê. me bateu saudade.

em teoria, eu pretendia nesta carta falar do amor de casal, o tão falado amor romântico, mas pensando melhor, vale para todos os outros. afinal, é como diz aquele livro do valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis: “o amor é uma estupidez intermitente mas universal”.

aliás, muito obrigada pelos pães, minha mãe gostou bastante. um dia mando alguns para a sua casa, ou, quando tudo passar, podemos ir lá juntos. é uma cantina daquelas em que eles cozinham o macarrão numa peça inteira de queijo derretendo, sabe? parece incrível. a cachorra e torto arado agora estão no meu novo criado-mudo, ao meu lado enquanto escrevo essa carta. espero lê-los logo. são tantos livros, né? tantas coisas para ler… espero que dê tempo (a vida).

por fim: você acredita que eu recebi uma carta de outra pessoa? foi uma resposta a uma das que enderecei a você. é a prova de que, de fato, tem alguém abrindo nossas cartas e lendo, só ainda não sei como. de qualquer forma, foi uma surpresa tão boa, fiquei tão feliz. espero que venham mais cartas-surpresa assim.

um beijo desta que é tão clichê quanto uma comédia romântica,
s.

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