Mariana
carteiro
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3 min readApr 21, 2021

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#31,5: odisseia do retorno

r. e s.,

temo avisá-los de que o impensável ocorreu: a última carta, que deveria ter sido entregue a um de vocês sem grandes percalços, foi vítima de um terrível e espantoso extravio. um possível motivo para isso é o fato de os correios estarem atolados e há anos não vermos um concurso para trabalhar na empresa — coisa que a., o antigo carteiro da rua, já nos dizia antes de se aposentar e mudar de estado. até então, morávamos todos próximos, acreditam?

aliás, soube que você se mudou recentemente, r., e torço para que o transporte de seus pertences tenha ocorrido sem danos e/ou grandes estragos. tenho certeza de que, nesse caso, nada que era seu veio parar até aqui por engano (embora acredite que estejam guardadas algumas recordações suas e de seu antigo apartamento aqui comigo).

mas já que comecei falando sobre extravios, preciso dizer que não é a primeira vez em que algo do tipo acontece: as cartas de uma vizinha quase sempre vem parar aqui em casa. religiosamente, cumprimos o ritual quase mensal que consiste em tocar a campainha da casa ao lado e retornar nossos pertences ao local devido. em algum momento (muito antes deste no qual temos vivido) recebemos em casa — embora não pelas mãos de a. — um livro que deveria ter ido para outro alguém. porém, mal pude avisar a alguém sobre o ocorrido e o carteiro já estava de volta para realizar a troca. neste momento, com a lembrança de volta à mente, me pergunto o que foi tão engraçado sobre a situação na época e aqui lhes pergunto (sem esperar de volta uma resposta), como teria sido se, num pacto silencioso entre nós duas, a outra remetente e eu tivéssemos guardado para nós mesmas os livros trocados, se jamais tivéssemos deixado o carteiro ciente do ocorrido? teria eu experimentado a vida dela por um dia e vice-versa, adentrado seus/meus gostos em um momento, conhecido-a/me a despeito de nunca termos nos encontrado sequer uma vez? as sensações provocadas pela leitura, os sentimentos, seriam meus ou dela? seriam nossos afinal?

a verdade, r. e s., é que tenho sofrido de saudade e também de dor — uma palavra que, em romeno, traduz aquilo que sentimos quando estamos separados de quem amamos. é a vontade de rever alguém, com o adendo da dimensão física, do tocar — que, junto da palavra “saudade”, chega próximo daquilo que todos parecemos estar sentindo nos últimos tempos uma vez ou outra (ou ainda a todo momento). no aqui, no agora, será que os romenos têm sentido mais dor ou saudade?

vez ou outra, também tenho adentrado os espaços de minha mente, r., desta vez os que guardam lembranças minhas, suas, nossas e de tantos outros. não tenho sentimentos sobre aquilo que não vivemos neste ínterim porque são memórias não concretizadas, momentos que jamais existiram e que não consigo bem formular dado o caráter ilusório de todas elas. tenho sentido nostalgia pelos encontros vividos e experimentados e, mais do que isso, anseio por aquilo que há de vir. em uma tentativa de me manter sã, tenho pensado que até ulisses retornou a ítaca no final das contas.

como uma das linhas finais, quero desejar um feliz aniversário a você mais uma vez, r. caso essa carta acabe extraviada por algum motivo, torço para que a pessoa que a receba possa compartilhar dos sentimentos (e principalmente do amor) aqui descritos.

de quem tem sentido muito e mal vê a hora de revê-los, beijá-los e abraçá-los e dividir os mesmos copos,
m.

obs: espero que gostem dos versos que coloquei junto à carta.

[…]

O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco,
percorrem teus caminhos, América.
Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.

(América, Carlos Drummond de Andrade)

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Mariana
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esqueço das horas e quase sempre me perco nos lugares